Nunca uma mulher mijará como um homem
Camille Paglia gosta muito de ser provocadora e colocar-se numa posição teórica contrária a tudo aquilo que o actual feminismo defende. Mas os seus argumentos, afinal, não têm qualquer novidade porque se limitam a recuperar visões ultrapassadas do feminino e do masculino, das hierarquias, convenções e relações de poder instituídas entre os homens e as mulheres.
Reivindicando a categoria de “feminista dissidente” e “feminista libertária” alimentada por um ideário que diz ser uma extracção dos anos 60 e da vaga feminista dessa época (“Eu sou o espírito dos anos 60, que está de volta para assombrar o presente”), Camille Paglia mobilizou uma máquina de guerra contra o feminismo do nosso tempo, muito especialmente o “feminismo académico” (como ela lhe chama, com desprezo), isto é, os “women studies” e os “gender studies”, que se desenvolveram, primeiro, nos Estados Unidos e chegaram depois à Europa com enorme vigor.
Camille Paglia gosta de expor, em alta voz, essa pretensão de rebeldia, entoando frases pensadas para provocar uma reacção imediata, a indignação ou o aplauso, e fornecer material abundante a quem se entretém a fazer antologias de citações. Eis algumas, para abrir o apetite: “Deixar o sexo às feministas é como ir de férias e deixar o cão ao cuidado de um embalsamador.” “Nada define melhor a decadência do Ocidente do que a nossa tolerância em relação à homossexualidade aberta e ao transexualismo.” Como é que a autora de Personas Sexuais se mobilizou para esta missão de salvar as mulheres e os homens do feminismo contemporâneo ou, se quisermos, de salvar o feminismo “à la Paglia” do feminismo dominante (“dominante” significa: aquele que a autora constrói como a sua bête noire)? O conjunto de artigos reunidos em Mulheres Livres, Homens Livres, escritos e publicados em jornais e revistas ao longo de mais de duas décadas, esclarece esta questão. E, no actual contexto em que se deu a eclosão do movimento MeToo, eles podem ser lidos como elementos de um cenário de guerra aberta.
Em resumo, estes são os argumentos que Paglia esgrime contra a vaga feminista que se impôs nas últimas décadas: 1) O feminismo, cheio de boas intenções, mas implacável nos seus ditames, tornou-se um mecanismo controlador do pensamento e instituiu formas de censura; 2) Dotado de uma fúria proibitiva e proteccionista, o feminismo tende a infantilizar as mulheres e a transferir toda a responsabilidade das relações sexuais para os homens; 3) As teorias do género, fornecendo o quadro conceptual ao feminismo actual, erradicam o biológico e a natureza no sexo e na diferença sexual em favor de um “construcionismo social”, eliminando também nessa operação o que há de violento e originariamente maldito no sexo; 4) O feminismo é um novo “rousseauismo”, ao atribuir as causas de todo o mal à sociedade e às convenções culturais; 5) As universidades americanas e os meios de comunicação social estão tão corrompidos pelo feminismo e pelos “women studies” que se tornaram os lugares do “sexismo institucionalizado”; 6) O feminismo está a enfraquecer os homens e, por conseguinte, a civilização que foi construída por eles. Logo, as mulheres só têm a perder se não defenderem a existência de homens fortes, se não reconhecerem a função do apolíneo, que consagra o triunfo do macho sobre a fêmea, e se não perceberem que “não houve nem nunca haverá harmonia sexual”; 6) O resultado do feminismo maistream é um novo puritanismo que interrompe e oblitera as conquistas dos movimentos de libertação sexual. Contra aquilo que diz ser um feminismo anti-sexo, Paglia assume um “feminismo pró-sexo”, reivindicando “a revolução sexual” dos anos 60.
Assim resumidos, os argumentos de Camille Paglia até parecem vir do interior do campo feminista, embora de um “feminismo dissidente”, como reivindica a autora: polémicos, às vezes em conflito com os valores e os territórios conquistados nesta guerra milenar, outras vezes pouco razoáveis no modo como reduz o inimigo a uma caricatura em que é difícil vislumbrar uma figura verdadeira, mas passíveis de serem discutidos no interior do feminismo. Porém, as coisas complicam-se, ou melhor, tornam-se terrivelmente simplificadas, quando analisamos mais de perto o discurso de Camille Paglia. Percebemos isso perfeitamente quando a vemos reduzir aos chavões costumeiros o quadro teórico e de pensamento que enquadra o feminismo americano: “O afastamento pós-modernista da procura da verdade factual subverte a razão de ser das universidades e dos professores que deviam servi-las. É confrangedor ver os alunos a serem alimentados com este caldo pós-modernista: a história é uma narrativa; toda a narrativa é uma ficção; a objectividade é impossível, e, assim, que importância tem saber o que é e não é real?” (pág. 259). Rousseau é um culpado longínquo, mas há culpados mais próximos, os do costume nestes discursos também costumeiros e que são hoje recitados por todo o lado: Foucault, um “manipulador sinuoso”; Hélène Cixous, “senhora de uma pieguice viscosa que exibe uma prosa diarreica”; Luce Irigaray, “a pomposa cadelinha de colo dos frequentadores de cafés parisienses”; Judith Butler, “autora da teoria queer, tão epigonal quanto ignorante”, and so on. Como é óbvio, esta linguagem picante não serve para nenhuma discussão séria e, no que diz respeito à french theory, fica-se por uma caricatura da versão, já de si muitas vezes caricata, da leitura que dela foi feita nos Estados Unidos. Neste e noutros domínios o discurso de Camille Paglia é irmão gémeo das prelecções do psicólogo canadiano Jordan Peterson (com o qual já colaborou e a cujos livros já deu o aval), essa vedeta planetária que esteve em Portugal há pouco tempo a mostrar o seu espectáculo.
Os argumentos “feministas” de Paglia, à primeira vista, poderiam ser uma reacção próxima daquela que está a instaurar uma fractura profunda no feminismo francês. Um dos sintomas dessa fractura foi o texto publicado em 9 de Janeiro de 2018, no jornal Le Monde, assinado por cem mulheres (entre as quais, Catherine Deneuve), fazendo a defesa da “sedução”, da necessidade de não a confundir com a violação, denunciando ao mesmo tempo um clima de delação e de caça às bruxas, instaurado pelo movimento MeToo e pelo seu congénere francês que adoptou um título e uma hashtag acusadora: #balancetonporc. E em Outubro de 2018 uma revista francesa, Lignes, nitidamente de esquerda — de uma esquerda crítica e libertária —, dedicou o seu número 57 ao “neofeminismo”, responsável pelo “movimento dogmático de neopuritanismo higienista e castrador”. Num dos artigos aí incluídos, da autoria da escritora e filósofa Véronique Bergen, chega-se mesmo a evocar Deleuze, quando ele fala do “devir fascista das antigas minorias”.
Ora, Paglia pode coincidir com estas vozes críticas — manifestações de brechas significativas do feminismo — na denúncia do puritanismo, das virtudes da delação e da censura. Mas o seu discurso é de outro tipo completamente diferente: regressivo, antifeminista, propagandístico, de uma debilidade teórica total. Chegamos ao fim e apetece perguntar: de onde vem a fama desta mulher e o seu poder de irradiação? Com as suas metáforas da feminilidade biológica e procurando uma identificação mitológica do feminino com a natureza (onde não falta sequer a referência à inscrição lunar), Camille Paglia entra num tipo de discurso a que os italianos chamam o discurso do pressapoco, do mais ou menos. Em certos momentos, parece que estamos a ler os mesmos argumentos misóginos usados pelo jovem vienense Otto Weininger (1880-1903), o autor de Sexo e Carácter. Mergulhando nas profundezas mitológicas (“o corpo feminino é uma máquina ctónica”) que essencializam o feminino, o eterno feminino, Paglia chega à “metáfora básica da mulher”. Qual é ela? Como se sabe desde sempre, é “o mistério, o oculto”. Está visto que “o corpo da mulher é um local sagrado e secreto”. E assim chegamos ao famigerado “continente negro”, que ressurge implicitamente em muitas passagens deste livro. Na visão de Paglia, a mulher está entre o mistério lunar e a relação com a baixa materialidade da terra, entre o sublime e o ignóbil: “As mulheres, tal como as cadelas, agacham-se junto à terra.” Fazem-no para mijar, ao contrário dos homens que mijam de alto e se projectam para além do Eu (e aí temos a projecção masculina, responsável por toda a história universal, contra a introjecção feminina improdutiva e sem história). De resto, a concentração e a projecção são interpretadas como metáforas genitais masculinas. A projecção masculina é efémera, “o homem entra triunfal e retira-se enfraquecido”, o que faz do acto sexual uma alegoria do declínio histórico. E assim entramos num campo semântico-especulativo dominado por analogias, metáforas e alegorias muito conforme a uma filosofia em que nada precisa de ter rigor, porque basta que tudo seja pressapoco.
Aplicados aos homens, os argumentos que buscam a sua razão probatória em metáforas da natureza e da mitologia servem para explicar a “hegemonia masculina no domínio das artes, das ciências, da política”. Eis os termos dessa explicação, baseada mais uma vez na “analogia entre a fisiologia sexual e a estética”. O que diz essa inferência analógica? Diz, de maneira muito eloquente, que “toda a realização cultural é uma projecção [antes tinha ficado claro que a projecção é uma metáfora exclusiva do masculino, bem visível quando ele mija sem precisar de se agachar], um desvio em direcção à transcendência apolínea, e que os homens estão anatomicamente destinados para tal projecção”. E aí temos a superioridade masculina, à prova de todas as destituições visadas pelas “fantasias utópicas” do feminismo, destinadas a soçobrar perante uma inveja originária que é “a inveja do pénis”, uma inveja que se literaliza e se torna mais circunstancial do que originária nesta situação pragmática descrita por Camille Paglia: “O conceito freudiano da inveja do pénis demonstra ser realmente verdadeiro quando um homem se arrasta para fora de um bar e alegremente se alivia num beco escuro, para fúria das suas amigas que, também elas, estão quase a rebentar de vontade.”
A “vontade de poder” masculina é um traço essencial do homem (não esqueçamos que Paglia está sempre a reconduzir-nos ao domínio das essências). Na cultura ocidental “não há relações que não sejam de exploração” e, por isso, uma outra “fantasia utópica” do feminismo não libertário nem dissidente, oposto ao da autora de Mulheres Livres, Homens Livres, é o de pensar que pode haver uma relação simétrica e que tem de se libertar da violência que historicamente e miticamente o acto sexual representa — uma violência dos homens sobre as mulheres, bem visível no poder reservado aos primeiros de mijar sem se agacharem. “As mulheres nunca saberão quem são, enquanto não deixarem os homens serem homens.” E, atenção, isso de ser homem implica uma iniciação que não deve ficar sujeita às tolerâncias que estão a arrastar o Ocidente para a decadência. “Ter sexo com uma mulher é uma das condições para um rapaz se tornar homem”, adverte a lésbica Camille Paglia. E porque não se pode separar o sexo das relações de poder, a não ser colocando-se contra a natureza, como as feministas, e porque são os homens que geneticamente ocupam a posição superior na hierarquia do poder (e o que é a cultura ao pé da carga genética? Até o seu gosto pelas artes, Camille Paglia explica-o pela sua origem italiana: “Há em nós, os italianos, uma relação com a arte de ordem genética”), as mulheres incautas e estupidamente imprudentes correm, pelos seus gestos e ousadias, o risco de ser violadas: “Uma mulher que vá a uma festa de caloiros está a entrar numa casa com testosterona por todo o lado, cheia de cactos espinhosos e armas prontas a disparar. Se lá for, deve ir munida de uma prudência a toda a prova (....). As feministas chamam a isto ‘culpabilização da vítima’. Eu chamo-lhe bom senso.” A versão portuguesa desta fábula americana da jovem que vai a uma festa de caloiros, bebe uns copos e sai de lá violada é a história de proveito e exemplo contada por um juiz que extraiu a seguinte moralidade do caso que teve de julgar: não é impunemente que uma jovem nórdica ousa entrar na coutada do macho ibérico. Camille Paglia é tão feminista como este juiz. E tão sofisticada nas suas elaborações teóricas como um juiz que faz de guarda de fronteira de coutadas onde se preservam espécies universais com a ilusão de que são autóctones.