A espera que transforma

Romance sobre a incerteza da espera e a decepção: a história de uma mulher que ao longo de décadas tenta resistir a uma ideia de amor.

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A prosa introspectiva de Javier Marías distingue-se da da maioria dos autores espanhóis Rui Gaudêncio

Javier Marías (n. 1951), aquele a quem já chamaram “o menos hispânico dos escritores espanhóis”, regressa com Berta Isla, um romance em que nos interroga e nos sacode enquanto recupera algumas personagens da sua magnífica trilogia O Teu Rosto Amanhã. À semelhança do que acontece em alguns dos seus livros mais recentes, também neste existe uma personagem dividida entre a cultura inglesa (estudou em Oxford, universidade onde Marías também leccionou) e a cultura espanhola: Tomás (Tom Nevinson), filho de pai inglês, cresce em Madrid (onde muito novo conhece Berta Isla, a mulher com quem se virá a casar), mas faz os estudos universitários em Inglaterra.

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Javier Marías (n. 1951), aquele a quem já chamaram “o menos hispânico dos escritores espanhóis”, regressa com Berta Isla, um romance em que nos interroga e nos sacode enquanto recupera algumas personagens da sua magnífica trilogia O Teu Rosto Amanhã. À semelhança do que acontece em alguns dos seus livros mais recentes, também neste existe uma personagem dividida entre a cultura inglesa (estudou em Oxford, universidade onde Marías também leccionou) e a cultura espanhola: Tomás (Tom Nevinson), filho de pai inglês, cresce em Madrid (onde muito novo conhece Berta Isla, a mulher com quem se virá a casar), mas faz os estudos universitários em Inglaterra.

É durante este período estudantil, depois de se ver envolvido num assassinato e de aparentemente ser chantageado, que os serviços secretos ingleses o recrutam — ele é um superdotado para línguas, para imitar tons de voz e sotaques — e passa a ser enviado em missões de espionagem, com uma longa carreira como infiltrado. Dito isto assim, poderá parecer ser este um romance noir ou uma história cheia de aventuras com espiões. Não é. É “apenas” a história de uma mulher que espera porque acreditou numa ideia de amor — e por isso será testada ao longo de décadas.

Berta Isla casa com Tom pensando que o conhecia desde sempre, e tendo a convicção de que estão destinados a ficarem juntos — talvez tivesse sido esta ideia, mais do que qualquer outra, o que a fez esperar por um amor que idealizara e que nunca chegaria. Mas, na verdade, Berta nada sabia de importante sobre Tom — ele obrigara-se a esconder algo de todos, mesmo dela, e durante toda a vida. “Quem se habitua a viver à espera nunca consente por completo que esta termine”, diz o narrador; e dirá também a personagem mais tarde.

Assim começa o romance, em frases precisas que lhe dão o tom: “Durante algum tempo não teve a certeza se o seu marido era o seu marido (...). Às vezes acreditava que sim, às vezes acreditava que não, e às vezes decidia não acreditar em nada e continuar a viver a sua vida com ele, ou com aquele homem semelhante a ele”. É a partir desta espécie de mote — será repetido no final do romance, desta vez pela boca de Berta Isla — que Marías começa o seu trabalho, no seu estilo inconfundível, de desocultação das névoas, de escavar até às raízes, e muitas vezes é aqui que ele encontra a chave que desperta o desejo —, um dos seus temas preferidos, apesar de muitas vezes dissimulado por outras forças mais visíveis. Para Javier Marías a literatura (os romances que escreve) parece funcionar sempre como uma forma de se chegar ao conhecimento, tentando antes descobrir os mistérios que as personagens guardam, aquilo que nelas está invisível e que aos poucos vai saindo da penumbra das suas vidas. A sua prosa introspectiva (característica que o distingue da maioria dos autores espanhóis, e cada vez mais acentuada), bastante digressiva e heterodoxa, serve para, aos poucos, ir tornando clara uma tentativa de compreensão do mundo. A acção narrada torna-se reduzida (acontece cada vez mais nos seus romances), algumas cenas descritas parecem quadros ou cenários imóveis, como se fosse necessário parar o tempo para se conseguir perceber melhor a vida.

Este é um dos romances mais complexos de Marías, onde tudo parece exageradamente apurado: desde o estilo de longuíssimos períodos que serpenteiam entre o relato e a reflexão, até à alternância de narradores numa construção narrativa que parece delineada ao milímetro. As próprias referências literárias, por vezes em jeito de citação (Shakespeare, T. S. Eliot, Dickens), algumas na voz narrativa de Berta, não são mero jogo literário ou tentativas de legitimação do texto, mas antes funcionam como a voz do oráculo que anuncia o destino. Javier Marías joga com um narrador na terceira pessoa, que lhe permite um afastamento para digressões reflexivas e apontamentos humorísticos de vez em quando; no entanto, é a voz de Berta que esse narrador muitas vezes glosa, essa mulher chamada Isla (Ilha), que mais não é do que, mais uma vez, uma espécie de destino a cumprir: a solidão anunciada no seu baptismo.

Berta Isla é um romance sobre a decepção, a ignorância e a incerteza da espera: a história de uma mulher que ao longo de décadas tenta resistir a uma ideia de amor, e que se vai apercebendo que essa história, a da sua vida, se resume a umas linhas na narrativa da vida de alguém com quem viveu muito tempo e que não conhece.