Em 2019 os andróides não vão sonhar
Estamos a chegar ao ano negro do icónico Blade Runner. O mundo não é igual ao do filme – mas há semelhanças. Quer saber onde a ficção esteve perto de ser tornar realidade?
Em 2019, um detective faz uma perseguição a tiro pelas ruas escuras e permanentemente chuvosas de Los Angeles. Dispara a primeira vez e falha. Dispara outra vez e acerta na fugitiva, uma mulher que trabalhava como dançarina num bar. Ensanguentada, e seminua por baixo de um impermeável transparente, a mulher continua a correr. Na fuga desenfreada atravessa montras e portas de vidro. Cai morta dois tiros depois, num chão coberto de estilhaços cortantes. A polícia chega de imediato. A mulher não era humana. O corpo estendido era resultado de uma invenção genética. A missão do detective era abatê-la e o incidente não era digno de grande registo, apesar de a “mulher” – como acontecia com os outros modelos mais avançados da sua espécie – ser capaz de sentir emoção, medo, dor e empatia. O homem regressou ao seu carro voador e foi comer numa banca de rua.
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Em 2019, um detective faz uma perseguição a tiro pelas ruas escuras e permanentemente chuvosas de Los Angeles. Dispara a primeira vez e falha. Dispara outra vez e acerta na fugitiva, uma mulher que trabalhava como dançarina num bar. Ensanguentada, e seminua por baixo de um impermeável transparente, a mulher continua a correr. Na fuga desenfreada atravessa montras e portas de vidro. Cai morta dois tiros depois, num chão coberto de estilhaços cortantes. A polícia chega de imediato. A mulher não era humana. O corpo estendido era resultado de uma invenção genética. A missão do detective era abatê-la e o incidente não era digno de grande registo, apesar de a “mulher” – como acontecia com os outros modelos mais avançados da sua espécie – ser capaz de sentir emoção, medo, dor e empatia. O homem regressou ao seu carro voador e foi comer numa banca de rua.
Naquela cena do filme Blade Runner, Zhora é um andróide criado em laboratório à semelhança dos humanos e concebido para o tipo de tarefas que estes não querem fazer. O trabalho de Rick Deckard é matar quatro replicantes que fugiram de uma colónia espacial e regressaram à Terra com um propósito desconhecido. O filme, uma adaptação de um livro de Philip K. Dick, desenrola-se num 2019 ficcionado há muitos anos.
Estamos prestes a entrar no verdadeiro 2019 rodeados de máquinas cada vez mais inteligentes e capazes de alguns comportamentos autónomos. O telemóvel sabe onde estamos e dá dicas úteis mesmo sem lhe perguntarmos nada. Os algoritmos de empresas como o Google e o Facebook antecipam e condicionam comportamentos – em alguns casos, conhecem-nos a fundo. Discutimos quem deve ser sacrificado pelos carros que se conduzem sozinhos em caso de acidente. Debatemos os impactos da inteligência artificial no trabalho e quão dispensáveis se tornarão alguns humanos. Armas robóticas, como as que vigiam a fronteira entre as Coreias, trazem dúvidas sobre quem está a matar no momento em que a bala é disparada. E chegamos a este novo ano com a notícia ainda fresca de que um cientista chinês manipulou embriões geneticamente.
Apesar do ritmo do desenvolvimento científico e tecnológico, o 2019 de Blade Runner, com os seus replicantes de poderes sobre-humanos, as colónias espaciais e os carros voadores, está longe do 2019 do mundo real. Em alguns casos, é muito mais sofisticado. Noutros, e como muitas vezes acontece na ficção científica, o filme imagina uma realidade menos tecnológica do que aquela em que boa parte das pessoas hoje habita.
Imaginar o futuro
Blade Runner chegou aos cinemas em 1982, pela mão do realizador Ridley Scott, que dois anos mais tarde assinou um famoso anúncio publicitário da Apple ao primeiro computador Macintosh. Naqueles anos, começava a revolução dos computadores pessoais. Os avanços da Apple, da IBM e da Microsoft haveriam de colocar uma destas máquinas em cada secretária. Mesmo naquela altura, e excepção feita a alguns entusiastas como Bill Gates e Steve Jobs, já não seria fácil antecipar a explosão de computação que se seguiu. O mundo do filme, porém, foi imaginado muito antes. Remonta ao tempo em que os computadores eram máquinas do tamanho de grandes armários, usadas em algumas universidades, empresas e ocasionais organismos públicos.
Blade Runner é uma adaptação do livro Do Androids Dream of Electric Sheep?, de Philip K. Dick ("Será que os andróides sonham com ovelhas eléctricas?"). Foi publicado em 1968. Naquelas páginas, a narrativa distópica numa Los Angeles pós-nuclear passava-se em 1992. Como muita da ficção científica escrita em torno da era de ouro da exploração espacial (Neil Armstrong pisou a Lua em 1969), Do Androids Dream With Electric Sheep? (tal como Blade Runner) mostra-se muito mais confiante no desenvolvimento das viagens no espaço e da robótica do que no avanço das tecnologias de comunicação e informação. Se Philip K. Dick tivesse acertado, a Humanidade estaria hoje espalhada por colónias noutros planetas e à procura de uma cabine telefónica quando quisesse falar com alguém. E continuaríamos todos a fumar dentro de escritórios com a naturalidade de quem toma um café.
Quanto aos carros voadores de Blade Runner, há sinais de que podem vir a ser realidade. A Uber tem planos para pôr a voar uma espécie de helicópteros que eventualmente acabarão por fazer as viagens sem piloto humano. Também já existem alguns “carros voadores”, um misto de automóvel e avioneta – mas são diversões para excêntricos com fortuna e não veículos produzidos em massa. No Dubai, já foram testados uma espécie de drones capazes de transportar passageiros e foi até feita uma demonstração de uma moto voadora para equipar a polícia. São ainda experiências.
Não vale a pena procurar demasiado em Blade Runner visões prescientes do quotidiano hiperconectado e digital em que hoje vivemos. Há uma cena em que Deckard (interpretado por Harrison Ford) pega em fotografias em papel e as coloca dentro de um aparelho semelhante a um pequeno televisor. Numa coisa essa cena acertou: o detective dá comandos de voz ao aparelho, antecipando uma das mais recentes apostas da indústria tecnológica, que tem invadido o mercado com assistentes digitais e colunas inteligentes, como a Echo, da Amazon, e a Home, do Google. Numa outra cena, o detective faz uma chamada de vídeo com Rachel, uma replicante a quem foram implantadas memórias humanas e com quem Deckard desenvolve uma relação amorosa. Mas o ecrã está embutido numa parede. Não há nada naquelas cenas nada que se assemelhe sequer a um telemóvel dos anos 1990, quanto mais a um smartphone moderno.
Também entramos em 2019 com as vozes da comunidade científica a avisarem que as alterações climáticas trarão danos profundos ao ambiente. Não é a catástrofe nuclear que mergulhou a Los Angeles de Blade Runner numa chuva permanente, mas o impacto para a vida no planeta poderá ser semelhante. No filme, a maioria dos animais está extinta e os humanos criam réplicas, sejam feitas de plástico e metal, ou de material genético. No livro de Philip K. Dick, este tema é mais explorado: Deckard tem uma ovelha eléctrica e, como a generalidade das pessoas, sonha com o dia em que tenha dinheiro suficiente para comprar um animal de carne e osso.
Ao contrário do que acontece no filme, estamos hoje muito longe de ter colónias no espaço para onde os humanos (os mais abastados, pelo menos) possam fugir da devastação climática. Por ora, a colonização espacial é ainda um sonho de super-ricos como Elon Musk, o criador da Tesla, e Jeff Bezos, o fundador da Amazon. Ambos têm gasto muitos milhões a desenvolver foguetões. No caso de Bezos, o investimento já lhe valeu críticas por parte de trabalhadores da Amazon descontentes com as condições laborais. A desigualdade social também é visível nas ruas de Blade Runner, onde um estrato economicamente inferior fica confinado à vida deprimente e poluída na Terra enquanto é bombardeado com publicidade a uma vida melhor no espaço. Entre os ricos está o magnata Dr. Tyrell, dono da corporação que cria os replicantes.
Inteligência não-humana
Em Blade Runner, os replicantes são criados para fazer os trabalhos difíceis e perigosos, para combaterem em batalhas e para serviços sexuais. Os modelos mais avançados (os Nexus 6) não têm apenas mais força e rapidez do que os humanos, mas são também capazes de desenvolver emoções.
Fora da ficção cinematográfica, o século XXI tem assistido a um crescendo de inteligência artificial. Na maior parte dos casos, são robôs ou sistemas informáticos concebidos para serem muito eficazes numa determinada tarefa: montar uma peça de um automóvel, transportar prateleiras nos armazéns da Amazon, decidir que anúncio publicitário mostrar ou a quem conceder crédito bancário. Tal como no filme, há também quem esteja a vender bonecas (e bonecos) sexuais dotados de alguma inteligência artificial. Não são exactamente Pris, a replicante criada para prazer dos militares em serviço fora da Terra, mas estas bonecas são capazes de entrar em jogos (básicos) de sedução – e até têm suscitado debate sobre a forma como os humanos se devem relacionar com elas.
Por outro lado, algumas empresas – como a Deep Mind, do Google – pretendem desenvolver uma inteligência artificial genérica: não um sistema informático eficaz numa tarefa determinada, mas uma inteligência mais versátil e, nesse aspecto, semelhante à dos humanos. Entre outros feitos, os cientistas da Deep Mind criaram programas de computador capazes de aprenderem sozinhos a jogar xadrez e Go (um jogo de tabuleiro chinês). O programa é capaz de se tornar melhor jogador do que os humanos com apenas algumas horas de treino. No filme, Roy, um dos Nexus 6 que Deckard tem de abater, demonstra que a inteligência da criação superou a do criador ao derrotar Tyrell numa partida de xadrez.
A aproximação entre humanos e andróides é um dos temas do filme. “A adaptação ao ecrã opta por focar-se mais directamente do que o livro na relação entre comércio e tecnologia, e no estreitamento drástico da separação entre humanos e máquinas”, explicou o académico Douglas Williams, que escreveu um artigo sobre o filme publicado na revista científica International Political Science Review. “Na verdade, os andróides supersofisticados, ou replicantes, estreitaram a tal ponto a separação que lançam sérias dúvidas sobre a possibilidade de manter o próprio fundamento daquela distinção.”
Em Blade Runner, os testes Voight Kampff permitem distinguir um humano de um replicante, analisando as reacções a perguntas concebidas para provocar uma reacção emocional. Quando os replicantes começam a ser capazes de desenvolver emoções e empatia, a fronteira torna-se mais ténue. Porém, em 2019, ainda estamos muito longe dos replicantes e ninguém sequer confunde Aibo, o cão robótico da Sony, com um cão verdadeiro.
“Se nos considerarmos o único agente inteligente que é capaz de fazer algo, e depois vem uma máquina que o faz melhor, então quem somos nós?”, questionava, numa entrevista ao PÚBLICO, o filósofo Luciano Floridi, especialista em filosofia da informação. “A questão é: de que forma a humanidade é única se tudo o que fazemos pode, em princípio, ser feito por uma máquina?”
Numa das cenas finais do filme, Roy – num monólogo muito aclamado e que foi parcialmente improvisado pelo actor Rutger Hauer – revela o lado humano do replicante. Após salvar a vida de Deckard, e angustiado com a morte iminente, recapitula alguns momentos dos seus quatro anos de vida, antes de concluir: “Todos esses momentos vão perder-se no tempo. Como lágrimas na chuva. É altura de morrer.” Também a última frase de Deckard no livro de Philip K. Dick é sobre a vida das coisas artificiais: “As coisas eléctricas também têm as suas vidas. Por insignificantes que essas vidas sejam.”