O bolsonarismo na favela

O novo Presidente do Brasil atacou verbalmente mulheres, gays, negros e pobres. Jair Bolsonaro, que toma posse no dia 1 de Janeiro, teve forte apoio da elite branca. Mas nem por isso a periferia deixou de votar nele. O que terá levado tantos moradores de favelas a escolhê-lo? O P2 esteve em algumas do Rio de Janeiro à procura de respostas.

Foto
Pilar Olivares/Reuters

Na sede do circo Crescer e Viver onde trabalha Richard Gomes Estrela, 20 anos, há uma enorme tenda de lona azul de onde sai e entra gente. Hora de almoço e a cantina serve carne, feijão, legumes grelhados. Estão a organizar um festival e a actividade é intensa. Richard acabou de ganhar um prémio na mostra competitiva de abertura do festival com um número de acrobacia e lira.

Passando pelos cartazes a anunciar espectáculos, aponta orgulhoso para um deles, onde um corpo está contorcido na lira, de uma flexibilidade impressionante: “Aquele ali sou eu.”

O Crescer e Viver é um projecto que junta arte e transformação social, desde os seis anos fazendo acrobacia, contorção, aéreo, malabarismo, teatro, dança e ballet. Neste momento, Richard só se dedica mesmo ao circo, deixou de estudar.

No início, o Crescer e Viver era “tudo isso aqui”, diz. Aponta para uma área onde agora há prédios altos na Praça Onze, à boca do metro. É uma zona com carências sócio-económicas e privações habitacionais, onde as casas estão visivelmente degradadas.

Foto
Richard Gomes Estrela durante uma sessão de treino no circo Crescer e Viver Arquivo Circo Crescer e Viver

Jair Bolsonaro (Partido Social Liberal) chegou a Presidente da República — toma posse a 1 de Janeiro — e a extrema-direita no Brasil venceu em várias frentes, com grande apoio de cidades mais ricas, incluindo o Rio de Janeiro, mas nem por isso deixou de ter votos da população mais desfavorecida e discriminada. No estado do Rio de Janeiro chegou quase aos 68% e na capital passou os 66%.

Entre quem estava no escalão económico mais baixo de todos, segundo uma sondagem do Ibope, a maioria votou Fernando Haddad (Partido dos Trabalhadores, PT) mas na fatia seguinte — a de quem ganha até dois salários mínimos, 440 euros — Bolsonaro teve uma ligeira vantagem (47% contra 53%). Foi também entre os jovens dos 25 aos 34 anos que o candidato da extrema-direita conseguiu a maior aceitação, com 49%. As mulheres também preferiram Bolsonaro a Haddad.

Não foi o único candidato com posições extremistas a vencer. Estando no Rio, há que acrescentar a eleição de Wilson Witzel, com quase 60% dos votos como governador, um homem que defendeu a intervenção militar nas favelas e a licença para matar quem fosse visto com armas. “O correcto é matar o bandido que está de fuzil. A polícia vai fazer o correcto: vai mirar na cabecinha e… fogo! Para não ter erro”, disse.

Richard Estrela foi um dos que elegeram Bolsonaro. Leva-nos a sua casa bem no meio do bairro. Passamos por uns edifícios degradados, ele bate numa das portas de onde sai música alta. Há raparigas de biquíni a tomar “banho de lage”; usam copos de água para refrescar o corpo estendido ao sol para bronzear.

A casa de Richard vai sofrer em breve remodelações. Numa das áreas da entrada, sem tecto, espalham-se latas de bebidas gaseificadas e outros objectos entre as ervas que crescem. Da cozinha saem dois gatos magros. “Estão rolando muitas críticas sobre Bolsonaro, mas a gente em casa votou nele no segundo turno”, comenta. “Pela segurança. Aqui é um bairro muito perigoso à noite por causa de traficantes e tiroteios”, diz. “Sei que ele pode acabar com projectos sociais, que ele pode liberar as armas. Mas votei mais nele para colocar respeito na sociedade, que falta.” Como é que Bolsonaro o fará, Richard Estrela não sabe. Mas acredita que arranjará forma de colocar os bandidos na cadeia, “botar mais polícia na rua”: “Todo o momento tem assalto, alguém sendo baleado. Talvez com ele a segurança seja melhor”, responde sem grande convicção ou ideia de como, na prática, o Presidente irá resolver aquilo que ele quer que resolva.

Foto
Num país onde há periferias sem água canalizada, mas com Internet, Bolsonaro tirou partido da utilização das redes sociais em grande escala, inspirado por eleições como a do actual presidente dos EUA, Donald Trump Ricardo Moraes-Pool/Getty Images

Nunca foi assaltado, mas no bairro onde vive já ouviu serem disparados muitos tiros.

Jovem negro e assumidamente homossexual, Richard Estrela diz que o discurso homofóbico de um Presidente que fala em “cura gay” e fez vários comentários racistas não o impediram de votar nele. “Ofender até ofende. Eu saio à noite e tenho o maior medo de encontrar homofóbico na rua e querer me bater. Mas não acho que Bolsonaro está incentivando, não. Criaram um fake [news] em cima dos discursos dele.”

A família sempre o aceitou, tanto que chegou a apresentar o único namorado que teve. Mas Richard acha-se diferente de outros homossexuais. Não concorda “com tudo o que fazem os gays”. Por exemplo, não concorda que os casais homossexuais expressem os seus afectos como os heterossexuais, beijando-se em público em frente a crianças. Acredita, por isso, que de alguma forma Bolsonaro irá colocar ordem na “moral e bons costumes”.

A dada altura, ele e o padrinho, com quem vive desde os seis anos, falaram sobre em quem votar na segunda volta. De camisa de alças, este ex-motorista que agora está reformado chega à cozinha para nos explicar que o seu voto foi para Bolsonaro por ser “uma verdadeira incógnita”. O sentimento anti-Partido Trabalhista (PT) é grande. “O Haddad sei que seria mais corrupção, uma bandalheira.”

Foto
Júnior Perim, fundador do Circo Crescer e Viver Roberto Pontes

No escritório do Crescer e Viver, o coordenador Júnior Perim, 46 anos, ex-secretário municipal de Cultura do Rio de Janeiro, comenta que Bolsonaro “falou ao imaginário popular porque a população é vítima de crime”. Continua: “Há uma certa hipocrisia que pode minar a democracia brasileira, uma incapacidade de os sectores progressistas da intelectualidade fazerem autocrítica sobre a ausência de uma agenda para a segurança pública pela esquerda. Não são apenas as operações policiais que geram danos colaterais, é também o cara que está a ser assaltado numa comunidade [favela] e que comprou o celular em dez meses.”

Segundo o Atlas da Violência, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), em 2016 houve mais de 62 mil vítimas de homicídio e 71,5% foram negros. A taxa — que é superior a 30 mortes por 100 mil habitantes — é também 30 vezes mais alta do que a da Europa.  No Rio de Janeiro, depois de uma descida entre 2003 e 2010 de 44,6 para 29,8, a taxa de homicídios voltou a subir para 31,7 em 2016.

Júnior Perim critica o Governo PT por ter estado 14 anos no poder sem resolver o problema da segurança, sem dar resposta aos homicídios no Brasil. Perim quer acreditar que “a dimensão litúrgica do cargo e a instituição Presidência da República vão reorganizar a fala de Bolsonaro”.

Ele e as propostas dele

A questão da segurança é central para muitos dos analistas. Atila Roque, historiador, ex-director executivo da Amnistia Internacional e actualmente director da Fundação Ford no Brasil, sublinha que a violência está concentrada nas periferias, com os jovens e negros a ser as principais vítimas: “Se compararmos as taxas de homicídio no Leblon [bairro rico do centro do Rio] são tão baixas quanto a Suíça mas se pegar na Baixada Fluminense [periferia da área metropolitana do Rio de Janeiro] vai chegar a patamares altíssimos. A violência é selectiva em termos territoriais e de perfil populacional.”

Foto
Patrulhamento das Forças Armadas na Vila Kennedy, favela da zona oeste do Rio Pilar Olivares/Reuters

Apesar de o racismo, o machismo e os preconceitos fazerem parte da sociedade, a novidade foi existir um candidato que teve apoio de pessoas que não são necessariamente racistas e homofóbicas, mas que não encontraram opção e votaram nele, analisa. “Não devemos cometer o erro de achar que todo o mundo que votou Bolsonaro foi cooptado pelo pensamento dele. Temos de escutar com atenção o que é que o campo dos direitos humanos não foi capaz de conquistar ao longo destes últimos dez anos e perdeu para as igrejas evangélicas fundamentalistas: não tratámos da segurança pública e eles foram avançando.”

Com 23 anos, Luca Santana sai todos os dias às 10h de casa, na Vila Kennedy (uma favela na zona oeste) para demorar cerca de 1h30 ou 2h até ao emprego de vigilante num banco na zona sul (a zona abastada). Trabalha em part-time, ganha um salário de menos de mil reais (228 euros), que dá para “sobreviver, não para viver”.

Ainda mora com os pais e com os irmãos. Muitos lá em casa — nem todos — votaram em Bolsonaro. Ele não deu o seu voto ao actual Presidente na primeira volta, apenas na segunda. “Não penso nele como um salvador, nem votei por gostar dele. Mas a gente não atura mais o PT. E não votei em Bolsonaro, votei nas propostas dele.”

Isto porque depois de ler as propostas dos dois candidatos concluiu que “entre Bolsonaro e Haddad era impossível votar em Haddad”. Por exemplo, o candidato do PT queria “reduzir as penas” de prisão — mais concretamente, sugeria alterar a lei para dar prioridade a pena de prisão para crimes violentos e ter penas alternativas para crimes não violentos. “O Bolsonaro é o oposto, o preso tem que permanecer na cadeia, não tem que ser solto. Acho que soltar o presidiário só ia aumentar o crime. Já dá para ver que ele [Haddad] não vive a mesma realidade, não fala a mesma língua do povo. A gente vive assassinato, estupro…”

Foto
Para a activista e dinamizadora social Eliana Sousa e Silva, “é chocante” o facto de a favela se identificar com um discurso que contradiz a sua própria vida e as suas escolhas PIlar Olivares/Reuters

Assaltado duas vezes, ameaçado porque não tinha nada numa delas e “salvo” porque a polícia apareceu, Luca Santana considera que a questão da segurança no Brasil só se resolve com o “confronto directo”.

Não é que concorde com tudo o que Bolsonaro defende, nomeadamente a posição de que “bandido bom é bandido morto” ou com a castração química para violadores em troca de redução da pena. Mas acha que “é preciso reprimir, apertar o cerco, não abrir o espaço para que os bandidos tenham acesso às armas”.

As ideias de Bolsonaro são “as mesmas que o povo sente de revolta com toda esta situação”, diz. Porque “ele conhece esse espaço e as pessoas que enfrentam este tipo de situação”. Concorda “plenamente” com a solução que apresenta de reforçar a polícia federal e a polícia civil. Quanto ao radicalismo do Presidente, é algo que não o incomoda. “Sinto a raiva que ele tem por essa situação do Rio de Janeiro. A questão do racismo, da homofobia e misoginia, não vi nada disso.”

Embora não tenha ilusões de que Bolsonaro vá mudar o Brasil, acredita pelo menos que vai “melhorar”.

Conexão EUA-Brasil via evangélicos

Para chegar a Chapadão, em Pavuna, uma das favelas no Rio de Janeiro com menor índice de desenvolvimento humano, tem de se atravessar a cidade e andar quase uma hora de carro. Estamos em meados de Novembro e a viagem é suficientemente longa para perceber que chegámos bem à periferia, fora do centro do poder. Passamos por várias favelas com as suas casas de tijolo, fios eléctricos pendurados, contentores de água azuis, antenas de televisão a perder de vista. Na Pavuna, como em todas as outras favelas brasileiras, há néones de igrejas evangélicas. Numa das entradas do complexo onde vivem quase 209 mil pessoas está justamente o edifício moderno da Igreja Universal do Reino de Deus.

Foto
Sinara Rúbia DR

Do terraço de casa de Sinara Rúbia, a vista não é muito diferente do que fomos vendo pelo caminho noutras favelas. Nem tudo na paisagem é homogéneo: há casas inacabadas e outras que podiam ser uma moradia em qualquer outra zona do centro da cidade. A Pavuna tem sido notícia sobretudo por causa de episódios de violência como assaltos, mortes ou fogos ateados em autocarros.

A feijoada está pronta. Passam-nos uma cerveja e indicam-nos os pratos para encher com arroz, couve mineira e laranja, tudo o que compõe uma das mais conhecidas refeições brasileiras. À mesa sentam-se vários jovens que participam da Agência de Redes para a Juventude, um programa que estimula pessoas entre 15 e 29 anos — e que são moradores de favelas e periferias — a transformarem ideias em projectos de intervenção.

Marcus Faustini, 47 anos, é o mentor. Cresceu em favelas diferentes, nomeadamente em Cesarão. Formado em teatro, faz cinema e usa a arte como metodologia, formando jovens que ajudam outros jovens. A agência já actuou em 40 favelas e pôs na rua projectos de cem pessoas, estando presente em vários locais do Brasil e Reino Unido.

No grupo há vários evangélicos, todos moradores de favelas. Ao declarar o seu apoio a Bolsonaro, Edir Macedo, fundador da Igreja Universal do Reino de Deus e proprietário da RecordTV, facilitou-lhe um enorme apoio. Quando o candidato da extrema-direita se tornou, então, Presidente da República, algumas igrejas evangélicas fizeram festa nos seus espaços, conta Ellen Rose, 26 anos, arquitecta.

“Isso é muito grave”, comenta esta jovem, uma possível futura pastora que dirige uma célula da igreja. Tem tatuado à volta do braço “nada nos poderá separar do amor de deus que está em cristo jesus nosso senhor”.

Ellen Rose está muito distante do radicalismo de algumas igrejas evangélicas no Brasil, nomeadamente as neopentecostais. Tem uma atitude bastante crítica em relação ao Presidente. “Na minha igreja tem gente que votou no Bolsonaro, mas tem gente que não votou também.” Ela confessa que conseguiu “virar o voto” de umas 20 pessoas ao falar do lado violento do Presidente: “As pessoas caíam na real. Diziam: ‘Espera aí, de facto estou votando numa pessoa horrível, que é uma pessoa inaceitável.’ Inaceitável pelo discurso anti-democrático, de apologia à tortura, violento, racista, xenófobo, homofóbico. Nada disto é velado, é tudo muito aberto.”

Bolsonaro disse abertamente ser a favor da tortura e da ditadura militar, proferiu discursos de ódio homofóbico e racista e não teve pudor em defender posições machistas, nem afirmar que irá banir os opositores. Estão disponíveis na Internet, em vários vídeos no YouTube, as imagens.

Foto
Jair Bolsonaro Pilar Olivares/Reuters

Ellen Rose diz que alguns eleitores evangélicos se identificavam porque ele foi vendido como alguém com ética.

João Baptista, mais conhecido como “Big” por causa do seu porte físico, estudante de audiovisual com 20 anos, também evangélico, sublinha que entre a comunidade os argumentos para votar em Bolsonaro passavam muito por: “Não negoceio meios princípios e Bolsonaro tem princípios cristãos.”

O discurso teve aceitação porque o Brasil é conservador, acrescenta Ellen Rose. Mas não só: “Há uma onda americanizada. Ouvi demais a galera falar que o Bolsonaro é o nosso Trump. Os evangélicos norte-americanos também elegeram Trump e há pastores que fizeram a cabeça de pastores nacionais. Nós sabemos que o povo evangélico elegeu Bolsonaro.”

Brasil encoberto pelo politicamente correcto

Os jovens evangélicos que se sentam nesta roda de conversa não são como aqueles que defendem Bolsonaro. Foram reunindo as razões pelas quais os que lhes são próximos votaram nele. Carol Du Pré, 24 anos, lembra-se de ter ouvido como explicação dos seus irmãos a promessa de Bolsonaro poder “trazer ordem e acabar com a corrupção”.

No seu projecto social, acontece muitas vezes, por causa dos tiros na favela, que algumas crianças não apareçam. “A gente vive numa favela dominada pelo tráfico. Aquilo que diziam é que Bolsonaro era o candidato que mais trazia uma ‘solução’ para a guerra das drogas. Muito moleque é preso, sai da cadeia e volta a cometer os mesmos crimes, ou então roubam e matam, mas só tardiamente são punidos ou nem chegam a pagar pelos seus crimes. A justiça é tardia, falha. E o discurso do Bolsonaro fala sobre a justiça que nos atinge directamente, que é a do tráfico”, explica.

Outro tema que as irmãs falavam muito lá em casa: “Criou-se uma aversão ao PT, diziam que o Haddad ia soltar o Lula. Isso deixava elas indignadas porque ele foi preso por corrupção.”

Carol du Pré dinamiza aulas de pintura na igreja, mas o objectivo não é a doutrinação. O pastor cedeu uma sala para o seu projecto com as crianças. Aqui está um exemplo de uma das razões que faz o sucesso e crescimento dos evangélicos, apontam: o facto de ocuparem um espaço deixado vazio pelo Estado nas zonas mais pobres. Como lembra Veruska Delfino, coordenadora da agência, a igreja acolhe a comunidade, tem as suas políticas de assistência local para a melhoria da vida das pessoas. E reúne um atributo importante: “É confiável.”

É confiável porque está ali, completa Marcus Faustini. “O Governo só vai às favelas com a polícia. E a esquerda também não vai lá.”

Veruska Delfino explica: “Se um líder de uma igreja fala que tem que votar no candidato X, que ele é o cara de Deus, que o outro traz um kit gay que vem com cartilha ensinando que pode beijar menino e menina e é contra os princípios da igreja, mesmo que isso seja falso, ele vota.”

Na verdade, o Brasil “é racista, homofóbico mas estava encoberto pelo politicamente correcto”, diz César Varella, 19 anos, actor que conhece de perto pessoas mais conservadoras, como o pai. Extrovertido, falador, vai acrescentando dados a conversa: “Quando chega alguém como Bolsonaro que fala isso e não é punido, as pessoas que estão caladas há muito tempo vêem ali a oportunidade de ser quem são sem terem de se moldar, sem sofrerem represálias.”

Foi determinante, acrescenta Marcus Faustini, o tema da segurança, algo que afecta a vida das pessoas mais pobres no Rio de Janeiro que “não gostam” de acordar com armas, com tráfico e violência. “A esquerda esteve muito tempo no poder, esquecendo as favelas como qualquer outro Governo.”

“Ninguém mais vai precisar de tolerar”

Acabado de ser pai e a escrever um livro sobre essa experiência, Felipe Salsa, 27 anos, dançarino, toca noutro ponto importante, que é a capacidade de comunicação de Bolsonaro. Muitos políticos “falam bonito” mas “nem toda a gente de comunidade entende”: “Você também tem que saber traduzir, explicar.” Já “Bolsonaro falava directamente, era simples.”

Foto
Marcus Faustini nota que Bolsonaro ganhou em favelas onde os chefes do tráfico disseram para as pessoas não votarem nele DR

Esta é uma questão central, continua Marcus Faustini, porque as causas como o feminismo ou a luta de minorias fecharam-se sobre si próprias e entraram “numa linguagem de classe média universitária”, critica: “São lutas numa estrutura de linguagem de elite, comportamental” que não chega às favelas. Veruska Delfino complementa: “Quando a esquerda radical vem comunicar com a base, traz aquilo que acha que é bom e não procura saber como a gente constrói o mundo que a gente quer. Quem cresce na periferia sem pai quer ter uma família tradicional. Bolsonaro traz uma radicalidade que é contra esses princípios da diversidade, diz que vai botar ordem na escola. Depois aparecem as notícias falsas. Fica muito difícil lutar contra a sua candidatura...”

Até porque é uma candidatura que vem sendo preparada há muito tempo. Juliana Carmo, 19 anos, estudante de Engenharia de Alimentos, lembra-se de ver a cara de Bolsonaro a circular na Internet há uns anos, mas como motivo de gozo entre os seus amigos. De repente, o gozo tornou-se realidade. “A campanha dele foi toda muito virtual. Entrávamos no Twitter e as pessoas acreditavam nas fake news e replicavam-nas. Ele conseguiu mexer com gente mais jovem, mas também com o pai e a avó”, analisa. O pai “superconservador” concorda quando ele diz que não quer um filho gay ou quando fala de bandidos mortos porque isso “replica o que muita gente diz há anos”.

Marcus Faustini nota ainda que Bolsonaro ganhou em favelas onde os chefes do tráfico disseram para as pessoas não votarem nele. “Então foi um voto de rebeldia, um voto revolucionário, de esquerda. De alguma maneira, Bolsonaro captou uma energia de esquerda, de oposição, anti-sistema.” Por isso também conquistou jovens.

No grupo trocam-se impressões sobre a postura física de Bolsonaro, as frases bombásticas, a rapidez com que discursava e desaparecia deixando os eleitores com “bombinhas”.

Sinara Rúbia acentua: a forma de ele falar, “a irritação, a energia, o tom de voz”, o “não querer ir à televisão” aproximou as pessoas. O mais grave: “Ele não precisou de explicar qual o plano de Governo, qual o projecto dele para o Brasil.” César continua: “Ele chegava com um textinho, só o título, enquanto a esquerda falava de segurança de uma forma que as pessoas não entendem.”

Ouviu-se muitas vezes a crítica à falta de informação dos eleitores. Na verdade, são comuns entre os apoiantes de Bolsonaro atitudes negacionistas sobre as suas posições mais radicais: “Não disse, não fez, são fake news.” Quem votou no Bolsonaro é mal informado?

Foto
Veruska Delfino DR

Veruska Delfino acha que é necessário um maior diálogo com o eleitor que não é activista mas está preocupado com a saúde, a segurança, a educação. Não é óbvio para esse eleitor que Bolsonaro viola direitos. Até porque falta formação política no Brasil, analisa.

Tem-se falado muito da radicalidade do novo Presidente, catalogado como extrema-direita, mas poucos usam a palavra “fascista”. César Varella não sabe se ele tem força suficiente para ser um fascista ou se o seu discurso já o torna um fascista. “Pessoas negras, professores e educadores votaram no Bolsonaro mesmo ele falando tudo o que ele falou.” Isto explica-se, diz Faustini, porque é errada a ideia da esquerda de “que as pessoas se reconhecem prioritariamente na sua identidade de origem”. É um retrocesso a sua eleição: aumenta os riscos de ataques a direitos fundamentais, afirma. A questão, acrescenta Carol Du Pré, é que a Constituição no Brasil proíbe a tortura e Bolsonaro defende-a. As pessoas concordam com as ideias extremistas, aprovam-nas e “já vira lei”. Juliana: “O Bolsonaro não vai chegar aqui e matar todo o mundo, quem vai fazer é o clube de fãs dele.”

Sinara Rubia, activista do movimento negro, faz uma autocrítica. “O voto de pessoas negras ou mulheres no Bolsonaro mostra o nosso distanciamento dessas pessoas enquanto activistas. A nossa produção intelectual está falando de quem para quem?” O seu medo é de que, se não forem tomadas precauções, o risco de alastramento de fascismo seja maior. “Aí o bicho vai pegar e vai ser uma era. Eu tenho muito medo.” Juliana vai mais longe: “Tenho medo de morrer.”

Já depois da roda, com música a tocar e a festa a começar, Sinara Rubia encosta-se ao muro do terraço, com a Pavuna e os seus telhados desalinhados a estenderem-se pelo horizonte. Com o semblante preocupado, confessa: “Acho que somos um país muito mais conservador do que a gente pensava. Hoje entendo a força da palavra ‘tolerância’. Quando você trabalha a tolerância você vai trabalhando politicamente, no imaginário das pessoas, o respeito, o tolerar aquilo a que elas têm resistência. Quando um governo como o do Bolsonaro legitimiza e impulsiona a intolerância, ninguém mais vai precisar de tolerar.”

Relação clientelista com os políticos

Quem sai e quem entra do Rio de Janeiro a partir do aeroporto passa necessariamente entre o complexo da Maré, um conjunto de 16 favelas que foi artificialmente unido, com 140 mil pessoas e uma autêntica cidade dentro da cidade que começou a ser ocupada na década de 1940.

A carrinha onde seguimos é parada por um jovem de espingarda em punho, sem camisola, a vigiar quem entra e sai e num cerco a quem travar o tráfico de droga e de armas.

Para se ter uma ideia da dimensão, mais de 96% das cidades no Brasil não têm este número de habitantes, diz Eliana Sousa e Silva, 56 anos, que chegou à Maré com sete anos. Há 20 iniciou aquilo que viria dar origem ao projecto Redes da Maré, organização para o desenvolvimento daquele território, que se divide em várias áreas, do apoio a mulheres até às crianças e segurança. Contabilizam as violações de direitos e homicídios — por exemplo, em 2017, houve 42 vítimas de homicídios na Maré em sequência de confrontos armados com a polícia ou o tráfico, as crianças tiveram menos 35 dias de aulas (ou seja, 17% dos dias lectivos) e os postos de saúde funcionaram menos 45 dias por causa disso.

Foto
Militares no Complexo da Maré, Maré, um conjunto de 16 favelas que foi artificialmente unido Ricardo Moraes/REuters

Se o processo continuar, aos nove anos uma criança terá menos um ano e meio de escola, afirma Eliana Sousa e Silva. Isto numa favela em que em 1997 apenas 0,5% tinham acesso à universidade: hoje essa percentagem cresceu e 1200 moradores já entraram para a universidade.

“A favela é vista como única e por isso a polícia vem em carros blindados para enfrentar o exército inimigo que somos todos nós”, diz a fundadora numa visita às várias valências do projecto, que inclui biblioteca para crianças. “O direito à segurança pública não foi estabelecido aqui. Isso foi responsável pela violência.”

Na Redes da Maré há um projecto em que se contabilizam o número de violações de direitos pela polícia, comunicam por WhatsApp com outras redes. Por exemplo, desde que Bolsonaro foi eleito que Eliana Sousa e Silva tem recebido mais imagens chocantes nos seus grupos de chat. Mostra algumas com vídeos e fotografias de operações policiais. Numa delas vemos um monte de corpos em cima uns dos outros numa carrinha, mortos.

“A relação dos políticos com a favela sempre foi muito conservadora e clientelista”, afirma. “E isso faz com que as pessoas nas favelas não tenham a noção real da importância do seu voto e de que isso vai trazer uma mudança directa para a sua vida”, analisa. “É por isso que o voto é conservador. Bolsonaro pegou um discurso muito forte de que teria de haver uma mudança, atingiu intermediários que têm acesso a essas pessoas e que passaram esse discurso muito bem.”

Há anos que Eliana Sousa Silva se debate com as diferentes oposições ao seu trabalho social. Chegou a ser questionada pelos chefes de tráfico sobre as suas intenções, é questionada por outros poderes sobre a origem dos fundos — a Redes tem financiamento de organizações internacionais como a Open Society Foundation.

Foto
Eliana Sousa e Silva: “A favela é vista como única e por isso a polícia vem em carros blindados para enfrentar o exército inimigo que somos todos nós” DR

Analisando em maior profundidade, acha que “é chocante” o facto de a favela se identificar com um discurso que contradiz a sua própria vida e as suas escolhas — “pessoas negras, homossexuais, que foram os mais atacados”. É por isso que há uma lição a estudar, afirma, pois esse voto “foi para além da sua identidade, daquilo que as representa”. Por outro lado, “muitos que vivem na favela têm a mesma visão preconceituosa e estereotipada da favela onde vivem” do que os outros.

Um dos objectivos da Redes é precisamente romper com essa representação negativa: “Porque há grupos armados, violência, acção violadora da polícia e existe a visão de que todo o mundo que mora ali tem relação com esses grupos armados e com as actividades ilícitas”, diz.

A Redes da Maré conseguiu a colaboração da justiça para ajudar a cumprir direitos básicos dos cidadãos durante as operações da polícia, como a obrigatoriedade de mandado nas rusgas. “E Bolsonaro diz que a polícia pode agir do jeito que achar. Imagina um policial despreparado e doido para matar.”

Nem todos ficaram surpreendidos com a eleição do Presidente de extrema-direita. Moradora da Maré, a deputada estadual Renata Souza, do PSOL — foi chefe de gabinete de Marielle Franco, assassinada este ano —, é uma delas. “Porque não foram votos apaixonados de defesa intransigente da sua agenda. O que a gente ouviu muito foi que votariam no Bolsonaro porque ele ia atacar os corruptos, que ele era ético e que essa coisa de ele falar contra os negros e as mulheres era bobeira porque ele faz muita brincadeira. Bolsonaro foi encarado como essa pessoa de fibra que tem capacidade de fazer frente contra a corrupção.”

Agora, acrescenta, vai ser preciso mobilização, trabalhar com os sectores mais vulnerabilizados, a população LGBT, negra e as mulheres. “A gente tem que estar forte e organizado a partir de debates concretos dentro e fora do Parlamento. Vamos ter que nos reorganizar na nossa sociedade para que a barbárie não vire política pública e o medo não seja o instrumento principal dessa política.”

A análise da coordenadora pedagógica da casa das mulheres da Redes da Maré, Andreza Jorge, também moradora, é um pouco diferente. Entre um percurso pelo complexo em dia de chuva, com valões onde boiam garrafas, lixo, ratos e outros animais que são portadores de doenças contagiosas, vai comentando aquilo que moradores de outras favelas repetem: a distância do poder político com estes espaços. “Dentro desses micro-universos, o voto em Bolsonaro pode ser uma forma que os eleitores encontraram de fazer justiça contra os civis armados e contra o tráfico de que eles discordam. O lance é que esses eleitores não entenderam que ele é visto como parte do pacote.”

A falha que a esquerda não calculou

Falta ainda outra dimensão importante, a da comunicação e das redes sociais que chegam em força à periferia. Bolsonaro é um Presidente eleito pelo WhatsApp e pelas redes sociais, dialogando directamente por estes meios com os eleitores sem passar pelo confronto político e ideológico com os adversários.

Neste momento com 8,8 milhões de seguidores na página de Facebook, Bolsonaro tinha a maior percentagem de eleitores com acesso a redes sociais, segundo uma pesquisa do Datafolha. Também era entre os seus eleitores que estava a fatia maior de pessoas que liam notícias sobre política no Facebook e WhatsApp.

Foto
Dríade Aguiar Mídia Ninja

Dríade Aguiar, 28 anos, é gestora de comunicação da rede de colectivos Fora do Eixo e uma das fundadoras do Mídia Ninja, um projecto alternativo de informação que tem 16 milhões de seguidores. Sempre conectada às redes sociais, a especialista divide os eleitores de Bolsonaro em vários tipos. Há os que realmente acreditam naquilo que ele diz e que, apesar de serem a maioria discursiva, em termos numéricos são uma pequena percentagem: “É essa galera que faz barulho, comenta e gera ódio” Há o grosso dos votantes, pessoas “esperançosas” — a combinação de instabilidade política, crise económica e caos mediático levou a que a maior parte votasse anti-PT. E há uma terceira fatia que “se encanta pela personagem de Bolsonaro como aquele ‘pai’ que vai resolver as coisas”.

Num país onde há periferias sem água canalizada, mas com Internet, Bolsonaro tirou partido da utilização das redes sociais em grande escala, inspirado por eleições como a de Donald Trump. “A grande sacada é que ele entendeu onde estão as pessoas e como chegar a elas de forma mais efectiva. Ele sabe que na política a verdade é um detalhe e conseguiu jogar com isso. A gente está falando de um homem que tem um certo apelo carismático, extremamente menosprezado e que é limitado politicamente. A grande coisa é que ele tem uma máquina e sabe o que colocar nela. Soube fazer uma matemática que vai para além da máquina e que é uma falha que a esquerda mundial não conseguiu calcular.”

Usou também, como nenhum outro candidato, o discurso identitário, forçando “todos os candidatos” a “navegar” com ele, considera esta mulher negra e defensora de direitos LGBT. O Brasil é estruturalmente um país conservador, analisa, com uma grande fatia da população que não concorda com as quotas para negros ou direitos homossexuais mas “que não votaria contra”. “A área progressista do Brasil é programa social e desenvolvimento económico, mas a disputa por direitos não é de todos. Sabia que essa é a nossa existência, mas não estava à espera de que um líder usasse isso como plataforma. Porque até agora os líderes ignoraram isso, até o Lula. Ele não falava sobre mulheres, sobre negros, era o avanço de classes.” De qualquer forma, Dríade acha que este debate foi “de nicho”: na hora de votar, o que pesou ao eleitor foi educação, segurança, saúde.

Quem ficou com medo agora foram pessoas que ainda “não tinham elaborado sobre os problemas que tiveram”. Os negros, a comunidade LGBT, as mulheres têm medo, mas não vem de agora. “Por muito tempo o medo era inconsciente: se você é uma pessoa negra, LGBT, de periferia e mulher nasce com medo. Depois passa a vida descobrindo que esse medo tem nomes: pode chamar racismo, machismo. O medo agora tem um nome próprio: Bolsonaro.”

Na Mídia Ninja, a “atitude mais revolucionária” que vão ter é continuar com os projectos. “Não estou a dizer que a gente não vai fazer uma frente de resistência. Mas se a gente parasse ia perder o grande trunfo que é sermos nós mesmos — e é justamente disso que ele tem medo.”