“Quando uma menina é violada, torna-se impura. E tudo aquilo em que toca torna-se impuro também”

Neealana Naushin tem 22 anos e é amparo para muitas meninas e mulheres no Bangladesh. Ajuda vítimas de violação a encontrar casa, dá agasalhos a trabalhadoras sexuais e aulas aos seus filhos para que entrem na escola. Decidiu partilhar com o mundo o trabalho que fazia em Daca através da imagem. Este ano, o seu documentário Is being raped the end of the victims’ lives? foi apresentado na sede da ONU e premiado pela PLURAL+. Para a jovem, o reconhecimento internacional é um meio para atingir o seu grande objectivo: fazer com que meninas e mulheres andem pelo seu próprio pé no Bangladesh.

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À hora de jantar, na sede da Organização das Nações Unidas em Nova Iorque, interrompeu-se a música, desligaram-se as luzes. Surgiu a imagem, projectada na parede, de uma menina, protegida com um véu vermelho, sentada na cama de um quarto pequeno e desbotado no Bangladesh. “Os meus pais morreram quando eu era nova. Vivi com a minha tia e o meu tio. Um dia ele disse que tinha uma tarefa para mim (…). Era numa escola velha fechada. Entrámos numa divisão e ele começou a tocar-me de forma imprópria. Depois violou-me.”

O desabafo de meninas vítimas de violação em Daca, a maior cidade do Bangladesh e capital deste país que acaba de votar em eleições legislativas, chega ao resto do mundo através de Is being raped the end of the victims’ lives?, o documentário de Neealana Naushin que venceu este ano um prémio da Plural+, iniciativa conjunta da Aliança das Civilizações das Nações Unidas e a Organização Internacional para as Migrações.

Seja na sede da Organização das Nações Unidas ou no Museu de Televisão e Rádio de Nova Iorque, o trabalho de Neealana desperta a mesma reacção no público: olhares fixos no ecrã e um profundo silêncio que só quebra quando surgem os aplausos, que passam de tímidos a expansivos em poucos segundos.

O arranque da exibição de Is being raped the end of the victims’ lives? aconteceu em Novembro mas o trabalho de Neealana vai estar por todo o mundo em 2019, em eventos escolares e conferências da Plural+. Ocupar os palcos e treinar as apresentações são novidades para esta jovem habituada a sentar-se na plateia. “Eu via muitos filmes sobre mulheres, ouvia muitas apresentações. Foram os filmes da Tania Rashid [da revista VICE] que me encorajaram a mostrar o meu trabalho em vídeo”.

Sem formação em audiovisual, Neealana, com a ajuda de um amigo, aventurou-se a testar máquinas e a imaginar planos de imagem. “Eu quis fazer este documentário porque queria que as pessoas sentissem aquilo que senti quando vi os filmes de Tania.” Para a jovem, a prioridade não é a estética da imagem ou o perfeccionismo no som. “O documentário tem a utilidade de ser uma forma efectiva e interessante de mostrar o meu trabalho”, conta.

Os números do crime

Is being raped the end of the victims’ lives? é apenas a ponta do icebergue do trabalho que Neealana tem feito junto da sua comunidade. Vive em Daca e é longe das câmaras que passa os dias, a trabalhar com vítimas do crime de violação, um “dos mais silenciosos do país”, afirma ao PÚBLICO.

Em 2017, houve um total de 783 vítimas de violação, 225 mulheres e 553 crianças. Os dados deste ano, contabilizados até Maio, registam 92 violações a mulheres e 225 a crianças. Neealana garante que há muitos casos que não são denunciados e nem aparecem nas estatísticas. “Uma rapariga violada não quer que se saiba. No Bangladesh, nunca mais falam com ela, ninguém a aceita. E muito menos a vão ajudar a voltar à sua vida normal”, conta. Ela própria já se sentiu discriminada: “Acham que eu também fui violada e que por isso é que tenho a inspiração de trabalhar com elas”.

Os dados da associação de protecção de Direitos Humanos no Bangladesh, a Odhikar, relativos a 2017 mostram ainda que 108 crianças e 93 mulheres sofreram violações em grupo. Este ano, até Maio, foram registados 43 violações em grupo a crianças e 44 a mulheres.

Em 2017, 18 crianças e 14 mulheres acabaram por morrer depois de serem violadas. Este ano, desde Janeiro a Maio, 8 mulheres e 14 crianças não sobreviveram à violência.

Por outro lado, as mulheres que sobrevivem vêem a sua vida mudar de um dia para o outro. “Não podem entrar em casa como faziam, não podem dormir na mesma cama que outro membro da família, com uma irmã… Se a família estiver a jantar, não podem sentar-se à mesa”, diz Neealana.

Uma mulher violada no Bangladesh tem a sua identidade esquecida. “Passa a ser encarada apenas como uma mulher impura”, explica a jovem. “Na nossa religião [islão], as mulheres são consideradas napak [impuras em bengali] quando têm relações sexuais com outro homem sem ser o seu marido. Quando são violadas, é considerado que elas tiveram sexo com outro homem.”

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"Ele vendeu-me"

No vídeo vencedor da Plural+, outra mulher, de véu rosa, conta que a culpa do que lhe aconteceu é do homem que amava. “No início, eu não percebi mas ele vendeu-me. Ele levou-me para perto de Sonargaon [a sul de Daca e junto ao rio Meghna] e deixou-me lá. Os amigos dele apareceram e violaram-me. Eu ouvi que ele levou 15000 taka [15,73 euros] para me vender.”

Neealana recorda o que lhe foi relatado por esta vítima já depois da gravação para o documentário: “Contou à mãe que tinha sido violada. A mãe perguntou-lhe porque é que ela entrou sequer em casa. Proibiu-a de dormir na sua cama. Disse para ela dormir lá fora, na varanda”.

“Quando uma menina é violada, tudo aquilo em que toca torna-se impuro também”, diz Neealana. “Até na escola isto acontece. Quando os pais sabem que uma criança foi violada, não querem que os seus filhos andem com ela. As crianças acabam por sair da escola”.

Para muitas meninas bengali, o casamento é um sonho ​– ​que fica destruído quando acontece uma violação: “Nenhum homem quer casar com uma mulher que foi violada. Porque ela já esteve com outra pessoa. Aliás, há muitas histórias de mulheres que casam e não contam que foram violadas. Quando o marido descobre, divorciam-se”.

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Media: tornar a violência em entretenimento

Para Neealana Naushin, “quando as notícias identificam as vítimas, e até partilham fotografias" estão a piorar a situação e a confundir informação com entretenimento. "Se há apenas o relato de uma rapariga que foi violada, isso é uma história. Mas se tens o nome, a informação que a rapariga trabalhava ali, estudava ali, fazia aquilo quando foi violada, a notícia torna-se viral.”

Neealana critica ainda os métodos usados por alguns meios de comunicação para chegar à identidade das vítimas: “Já vi muitos casos de pagarem por informações ou vídeos".

No Bangladesh, a Constituição garante a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa desde que respeite uma “restrição razoável”, como indica o Press Freedom Status. Em 2018, num total de 180 países no Índice de Liberdade de Imprensa Repórteres sem Fronteiras, o Bangladesh ocupava o lugar 146. Ou seja, é o 34.º país do mundo com menos liberdade de imprensa. “É muito difícil encontrar uma notícia que possa ser utilizada contra o Governo”, nota Neealana. Quem tenta, por outro lado, expõe-se a uma situação de enorme perigo. Segundo os dados da Odhikar, no ano passado, 1 jornalista foi morto, 24 foram feridos e 11 foram ameaçados

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Manifestação em Daca ANDREW BIRAJ/ reuters

A incompetência da polícia e a ameaça dos violadores

Apesar de discriminadas em casa, na rua, na escola, há mulheres que decidem reportar o crime. Mas a polícia falha na ajuda: “[A polícia] é muito insensível. Perguntam onde é que o homem tocou, o que é que ele fez ao pormenor. Depois, eles é que decidem se o que a vítima diz é válido ou não”.

A incompetência da polícia para lidar com vítimas de agressão sexual foi reconhecida em Julho pelo Supremo Tribunal de Bangladesh, que pediu ao Governo reformas imediatas na legislação.

Nas 18 recomendações expressas pelo Supremo é sublinhada a obrigatoriedade de a polícia registar as queixas de violação, independentemente do local da ocorrência, sem atrasos ou discriminação. Segundo o tribunal, deve mesmo haver uma punição caso a polícia se rejeite a considerar um caso, por considerar a informação insuficiente.

Também a associação de protecção de direitos humanos Odhikar diz, com base na monitorização que faz em terreno, que as vítimas de violação são tratadas como culpadas pela polícia, o que faz com que muitas tentem encobrir o caso. Acontece também serem ameaçadas caso decidam reportar o crime. Neealana diz que tem conhecimento de "muitas histórias de violadores que dizem aos pais [das vítimas]: eu violei uma das tuas filhas, se denunciarem, violo as outras”. Continua: “Por exemplo, conheci a história de um pai que testemunhou a violação da sua filha. Ele estava amarrado mas ouvia os gritos da filha enquanto estava a ser violada. No fim, disse-lhe: 'Tens mais duas filhas, se fizeres queixa eu ou os meus rapazes vamos fazer o mesmo a elas’”. Ninguém fez queixa.

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Desde 2017, Neealana já ajudou 12 vítimas de violação, com menos de 17 anos, a entrarem em centros de acolhimento dr

Uma ideia de lar

“Como comecei a ouvir imensas histórias de raparigas que eram pressionadas a sair de casa, tentei perceber como as poderia ajudar a longo prazo. Comecei a ser a ponte entre elas e as shelter homes [casas de abrigo para crianças que sofreram abusos]”. Desde 2017, Neealana já ajudou 12 vítimas de violação, com menos de 17 anos, a entrarem nestes centros de acolhimento. A maioria das vítimas tem entre 13 e 15 anos.

Estas casas não têm as condições ideais, “mas são um espaço seguro”, uma ideia de lar: “Jogam, cozinham, lavam a roupa, pintam, ajudam-se umas às outras a pentearem-se. Não querem sair muito à rua, normalmente só o fazem quando precisam de comprar algo.”

Para Neealana, estes centros de acolhimento são uma forma de estas 12 meninas continuarem a estudar. “Quando chegar a idade para entrarem na universidade, vou trabalhar com toda a minha força e dedicar o meu tempo a prepará-las para os exames”, conta. “Só vou conseguir respirar quando as vir entrar para a faculdade.”

Casar com o violador

No dia 27 de Fevereiro de 2017 foi aprovada uma nova legislação que permite que raparigas menores se casem — nomeadamente com os violadores —, se se tratar de “um caso especial” e se os pais considerarem que o casamento é do “melhor interesse” para a menina.

A lei não esclarece quais são “os casos especiais” nem o que poderá ser considerado “melhor interesse”.

Segundo a agência Reuters, o Governo defende esta medida para proteger a honra das meninas que engravidam. Mas organizações como a Girls Not Brides defendem que a medida legitima a violência sexual e incentiva ao casamento de menores — segundo um relatório de 2016 da UNICEF 52% das raparigas do Bangladesh já estão casadas quando têm 18 anos

Para responder às críticas, o Governo garantiu que os casamentos iriam depender de escrutínio e aprovação dos tribunais.

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A prostituição está legalizada no Bangladesh. Na fotografia, prostituta reclama melhores condições de trabalho e direito a segurança social RAFIQUR RAHMAN/reuters

Trabalhadoras sexuais: um desfecho

Nestes dois anos de trabalho, Neealana ouviu as histórias destas vítimas, não só para serem filmadas para o documentário que apresentou na sede da ONU mas também em momentos íntimos de partilha. Com as histórias, percebeu que há um desfecho comum a muitas mulheres: “As portas fecham-se todas, e algumas só têm a opção de serem trabalhadoras sexuais”, explica. As preocupações de Neealana duplicaram e quis também conhecer de perto as condições de vida destas mulheres.

No Bangladesh, a prostituição está legalizada, o que permite uma hierarquia de trabalhadoras sexuais: em hotéis ganham entre 12000 e 15000 taka (125,34 e 156,68 euros) por cliente; em residências, entre 2000 e 5000 taka (20,89 e 52,23 euros); em bordéis, entre 200 e 550 taka (2,09 e 5,74 euros); na rua, entre 80 e 200 taka (0,84 cêntimos e 2,09 euros). “As trabalhadoras de rua mal têm dinheiro para alimentar os filhos. Algumas vivem em barracas, outras, as mais novas, conseguem ficar nas casas do Drop In Center [programa da UNICEF que assegura casa, alimentação e apoio psicológico a jovens em situações vulneráveis]”, conta.

Neealana começou a visitar as prostitutas de rua em zonas de Daca onde sabe que o fenómeno é gritante: Manda e Mugdapara. “Não é fácil o primeiro contacto. Fazer com que elas tivessem confiança para falar comigo foi uma grande conquista. Desconfiavam por eu as querer ajudar, ou desconfiavam de eu saber falar inglês, ou por ter um telefone.”

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Muitas trabalhadoras sexuais vivem em localidades recônditas do Bangladesh. “Elas não sabem o que é ter outra vida. Não têm satélite, não têm TV. Não sabem o que são direitos humanos, ou direito à saúde, à educação”, conta Neealana.

A jovem começou a doar caixas com roupa, mantas, sapatos, copos, talheres, pratos, produtos básicos de higiene. Desde 2017, já conseguiu fazer 5 doações, que chegaram a mais de 350 trabalhadoras sexuais.

Sem apoio de nenhuma organização, Neealana aproveitou o privilégio de pertencer a uma família que conhece “muitas pessoas ricas”. “A minha mãe trabalha nas coisas da nossa casa, mas o meu pai está numa empresa de reparação de helicópteros”, explica. Quando se prepara para uma distribuição, pede a amigos que partilhem nas redes sociais. "E as pessoas enviam muitas coisas. É uma elite que tem muito dinheiro e a quem as coisas não fazem falta”, conta.

As trabalhadoras sexuais começaram a aceitar as ofertas e a sentarem-se nas reuniões que Neealana prepara para lhes falar de cuidados de higiene aquando da menstruação e da importância de terem sexo protegido. “Elas dizem que os clientes não querem usar preservativo. Mas eu insisto para elas lhes respondrem que são elas que podem ficar grávidas.”

Por 500 takas ao dia

Em 2017, Neealana fez um documentário sobre as trabalhadoras sexuais de rua em Daca. As primeiras imagens são da azáfama da cidade, mas depressa somos transportados para os corredores cheios de lixo à entrada dos quartos destas mulheres. A primeira  que se senta com Neealana conta que costumava trabalhar com a irmã, até se ter casado. Com um filho de seis meses, o marido abandonou-os. “Um tio trouxe-me para esta profissão. Eu recebo 500 takas por dia [5, 22 euros]. Dou 100 takas ao meu tio e outros 100 à proprietária. O resto uso para comprar comida para o meu filho”.

Há outra mulher, visivelmente mais velha, que diz já não conseguir trabalhar 6 ou 7 vezes por dia. “Agora ela trabalha duas ou três vezes porque tem de continuar a dar de comer aos filhos. Como está grávida, só pode ter sexo sentada. Ou seja, só pode fazer sexo anal”, conta Neealana.

Embora já tenha ajudado cerca de 350 trabalhadoras sexuais, Neealana visita regularmente 22 mulheres. “Vou ter com elas, já me conhecem, sabem que podem falar”, conta. Dedica-se também à educação dos filhos destas trabalhadoras sexuais e já ajudou 47 crianças a conseguir entrar em programas escolares do Estado. “As mães pedem-me muito este apoio. Elas querem que os filhos estudem, querem que eles vão para longe, que possam viver num sítio limpo e seguro”.

Educação: "Quando a tens, nunca te abandona"

A educação é panaceia para todos os males. “É a nossa melhor amiga: quando a tens, nunca te abandona. Fica contigo para sempre”, explica. Neealana está no último ano de um programa de graduação na Asian University for Women, em Chittagong, a seis horas de comboio de casa. Às vezes, está cansada. “Tenho tanto sono que já cheguei a não conseguir acabar exames.” O esforço é compensado porque é nesta universidade que conhece mulheres do Afeganistão, Butão, Cambodja, China, Índia, Indonésia, Malásia, Myanmar, Nepal, Paquistão, Palestina, Sri Lanka, Síria, Vietname.

Na Asian University for Women, que aceita estudantes independentemente do rendimento da família, Neealana estuda Política, Filosofia e Economia: “Quero preparar-me para um dia ir para Harvard”, sorri. E fundou a ONG Disha Foundation para “criar condições sustentáveis para todas estas mulheres”.

“Aqui, temos pela primeira vez tudo para nós. Por que não?”

“Eu devo muito à minha faculdade. É um espaço único. Os nossos direitos à educação têm sido esquecidos. Nós, mulheres, temos poucas oportunidades na vida. Os homens levam sempre os nossos direitos, eles apoderam-se das nossas oportunidades. Aqui, temos pela primeira vez tudo para nós. Por que não?”

“Na minha cidade, uma rapariga tem de se casar, de se aquietar, ter crianças. A sociedade continua a enclausurar mulheres, a considerá-las mais fracas do que os homens, que apenas servem para a reprodução e não para ajudar a economia”, conta. “Eu fui ensinada a ter medo dos homens, por serem mais fortes. Não são. Não podemos deixar que se aproveitem do nosso medo.”

*A jornalista esteve em Nova Iorque para receber também um prémio da Plural+