O que este campeão dos caminhos off-road andou para aqui chegar
Rui Cardoso é um resistente do off-road. Aos 65 anos, o jornalista e aficcionado do todo-o-terreno acaba de vencer na sua categoria a maratona de 24 horas de Fronteira. “O que importa não é ser rápido; é estar lá quando a bandeira desce”.
A uma semana do arranque de Dakar, a maratona-mor do todo-o-terreno, Rui Cardoso é, aos 65 anos, um exemplo de resistência do off-road, mesmo sem nunca ter corrido na prova-rainha. Tudo começou por uma carolice que terminou com a vitória, este ano, na sua categoria (Promoção A, em que correm jipes mais parecidos com os de série) em Fronteira, uma maratona de 24 horas que se cumpre por uma pista de 16 quilómetros que, “a cada volta, é diferente”. Entre a descoberta do todo-o-terreno e este pódio passaram-se três décadas de um caminho sinuoso, ao longo do qual ninguém, nem o próprio, poderia antever que tudo viria a encaixar-se qual puzzle perfeito. Mas, com o bichinho do TT sempre a roer, não poderia ser de outra forma.
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A uma semana do arranque de Dakar, a maratona-mor do todo-o-terreno, Rui Cardoso é, aos 65 anos, um exemplo de resistência do off-road, mesmo sem nunca ter corrido na prova-rainha. Tudo começou por uma carolice que terminou com a vitória, este ano, na sua categoria (Promoção A, em que correm jipes mais parecidos com os de série) em Fronteira, uma maratona de 24 horas que se cumpre por uma pista de 16 quilómetros que, “a cada volta, é diferente”. Entre a descoberta do todo-o-terreno e este pódio passaram-se três décadas de um caminho sinuoso, ao longo do qual ninguém, nem o próprio, poderia antever que tudo viria a encaixar-se qual puzzle perfeito. Mas, com o bichinho do TT sempre a roer, não poderia ser de outra forma.
Nascido em Lisboa, em 1953, cresceu em Tomar e só regressaria à capital por altura do liceu, seguindo depois para Engenharia Electrotécnica, no Instituto Superior Técnico, durante os turbulentos anos de 1970. Nessa altura, estava longe de imaginar que o seu futuro estaria mais ligado às letras do que às engenharias e muito menos acreditava ver-se enfiado num fato de corridas. Mas, em plena época de movimentos estudantis, não tardou a envolver-se nas lutas — o que lhe valeu ser um dos 70 expulsos em Novembro de 1973 — e os estudos foram deixados um pouco de lado.
Foi, assim, que teve o seu primeiro contacto com a escrita: através da redacção de panfletos e comunicados. Regressaria à faculdade já depois da revolução de Abril de 1974, com um ano perdido, mas nem por isso com menos bagagem. É por esta altura que conhece João Garcia, com que se iniciaria nas lides dos jornais. “Em 1977, não era muito diferente do que é hoje; acabava-se o curso e a questão do que se iria fazer na vida colocava-se.” Ainda tentou um estágio na CP, seguindo os passos do avô ferroviário, mas não havia vagas.
Acabaram ambos, por um acaso, nas vindimas de Alenquer, o que deu origem a uma reportagem que lhes abriu a porta do Diário Popular, onde, lembra Rui, tinham um director que defendia que “trabalhadores não saneiam trabalhadores”. A posição de José Manuel Rodrigues da Silva, que destoava do que acontecia em algumas redacções pelo país, deu-lhes o conforto de se iniciarem no jornalismo sem medo de expor as suas ideias. Durante a década de 80, ainda passou por projectos como o 24 Horas ou o Independente.
É na época em que está de passagem pela revista Face que descobre as viagens fora de estrada, quando é convidado a integrar um passeio de UMM com o seu Citroën Dyane. “Não fazia ideia sequer do que era tracção às quatro… A primeira descida não correu lá muito bem”, confessa. Mas a semente estava lançada: comprou o seu primeiro UMM e tem a sua primeira experiência no mundo da competição quando é convidado para ir à pendura na segunda edição da Baja de Portalegre, numa altura em que “não eram precisos fatos, em que os capacetes eram os que havia lá por casa ou que os cintos usados eram os de origem”.
“O carro”, conta, “desfez-se pelo caminho”, mas foi a diversão que o levou a nunca mais abandonar as corridas. “Não tinha nem dinheiro, nem talento, para ser profissional”, mas não perdia uma oportunidade para alinhar na grelha de partida: correu o Troféu UMM, a Baja 1000 (com direito a banho de 7Up que “era o champanhe dos pilotos da treta”) e as 24 Horas de Soure, prova realizada já depois de os UMM terem perdido a homologação para correr em provas internacionais e que daria origem às de Fronteira, com José Megre à cabeça.
A dada altura, alinha numa grande viagem off-road, de Trancoso, concelho de Viseu, a Santiago de Compostela, Galiza: “Quando voltei, a revista onde trabalhava tinha fechado”, graceja, o que o levou a vender o trabalho ao semanário de Pinto Balsemão. A sua entrada para o Expresso coincide com a saída de vários pesos pesados para a criação do PÚBLICO, e a sua formação em Engenharia vale-lhe um lugar na secção de Ciência. Mas as corridas não foram postas à margem. Ao mesmo tempo que fazia o seu caminho no Expresso, de onde saiu há um ano e onde editou a secção do Internacional, tendo acumulado funções de director da Courrier Internacional, ia conhecendo outros caminhos.
Entre 1994 e 1998, coordenou os Guias do Expresso, tarefa que o levou a conhecer o país de ponta a ponta e pelo avesso. “Costumo dizer que fazer todo-o-terreno é um pouco como ir à descoberta do que acontece quando saímos para ‘trânsito local’”. Mesmo assim, a vontade de correr não esmoreceu, numa busca pela superação, quer física, quer mental. “Em Fronteira, o que pode fazer a diferença é a capacidade de adaptação porque o que é verdade numa volta já não é na seguinte.” Pela pista alentejana, que inclui subidas acentuadas, descidas rápidas, curvas sinuosas, linha de água ou saltos cegos, o pensamento rápido, a capacidade de desenrascar (como naquela vez em que ficaram sem luzes e acabaram a corrida graças a lanternas a pilhas) e de encontrar soluções fora da caixa são, por vezes, factores mais decisivos que ter motor.
À medida que o dia vai passando, também a pista se torna mais difícil. E quando a noite chega tudo se complica. “As sombras, as luzes, a falta de visibilidade” juntam-se ao frio e ao cansaço. Mas também “é à noite que a prova se vence”, quando a lama quase engole os carros e não se vê nada para lá do vidro pára-brisas. Quem conseguir chegar ao raiar do sol em pista e sem problemas de maior, quase de certeza que conseguirá chegar ao fim.
Rui admite não ser o mais veloz. Nem ele nem o seu actual carro, um Patrol GR que “deve ser o mais antigo que lá anda”, com 120cv a puxarem por duas toneladas. Mas, sublinha, em Fronteira, “o que importa não é ser rápido; é estar lá quando a bandeira desce”. E, ao fim de 21 anos, a bandeira desceu.