O futuro segundo Miguel Soares

O filme de animação criado para o projecto Art Cycles revela-nos a utopia de um futuro talvez não tão longínquo.

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Quando descobrimos o trabalho de Miguel Soares, no final dos anos 90, surpreendeu-nos a originalidade de um projecto que, na época, procurava as pequenas falhas no desenho dos jogos de computador para criar, em imagens virtuais, situações imprevistas, não perceptíveis aos utilizadores habituais desse tipo de entretenimento. O interesse pela imagem deste tipo, e a capacidade de a modificar e de a criar, levou entretanto, nas duas décadas que se seguiram e muitos outros projectos depois, a que se colasse a etiqueta de “arte digital” à obra de Miguel Soares. O apelido será talvez injusto, na medida em que reduz um trabalho diversificado à natureza técnica da imagem que produz. Afinal, hoje até a maior parte da fotografia será digital, o que não significa que pensemos nela quando utilizamos essa expressão.

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Quando descobrimos o trabalho de Miguel Soares, no final dos anos 90, surpreendeu-nos a originalidade de um projecto que, na época, procurava as pequenas falhas no desenho dos jogos de computador para criar, em imagens virtuais, situações imprevistas, não perceptíveis aos utilizadores habituais desse tipo de entretenimento. O interesse pela imagem deste tipo, e a capacidade de a modificar e de a criar, levou entretanto, nas duas décadas que se seguiram e muitos outros projectos depois, a que se colasse a etiqueta de “arte digital” à obra de Miguel Soares. O apelido será talvez injusto, na medida em que reduz um trabalho diversificado à natureza técnica da imagem que produz. Afinal, hoje até a maior parte da fotografia será digital, o que não significa que pensemos nela quando utilizamos essa expressão.

No âmbito do ciclo MNAC/SONAE Art Cycles, Miguel Soares foi convidado a desenvolver um projecto que tem agora a sua exposição nas instalações do Museu do Chiado. Composto por fotografias e um filme de animação, ambos obtidos a partir de imagens fixas e de síntese digital, narram e documentam a história de um suposto robô de terceira geração, ou seja, um tipo de robô ainda não existente, mas que será dotado de “inteligência” própria, capaz de comunicar e de desenvolver soluções autónomas para problemas identificados. A história do filme conta-se rapidamente: assistimos ao nascimento de um robô antropomorfo, embora sem cabeça, que possui um olho azul na extremidade de cada ombro. O robô é construído, convive com os humanos nas suas tarefas e nos seus momentos de lazer, até que aprende a modificar a máquina que o criou. Mais tarde, um encontro com o monólito de 2001 Odisseia no Espaço (o filme de Kubrick) dá-lhe o poder de transformar outras máquinas, como automóveis, em formas metálicas líquidas, ectoplásmicas, especulares embora deformantes. Um pouco antes disto, ocorreu uma manifestação de robôs, que no filme marcham empunhando cartazes onde se podem ler várias reivindicações usuais neste tipo de ocasiões. Entre a “multidão”, descobrimos uma pequena personagem vermelha e amarela que já entrara noutros projectos assinados por Miguel Soares.

Trata-se assim de um enredo linear, facilmente compreensível, que nesta descrição omite a subtileza visual das imagens finais, bem como o jogo com os processos de apropriação que têm sido de alguma forma a imagem de marca do trabalho de Miguel Soares desde o seu início. Pensamos, evidentemente, no monólito já mencionado e na personagem que participa na manifestação; mas também numa visão de certo modo optimista, esperançosa, pós-apocalíptica. Tudo correu bem; os habitantes da terra que Miguel Soares nos mostra não eliminaram os humanos, e este mundo, que é também resultado da sofisticação tecnológica, estará mais próximo do de Metrópolis, de Fritz Lang (uma outra utopia onde o sentimento humano pode aniquilar os malefícios da máquina) do que o de outras obras cinematográficas distópicas que estão muito longe de nos revelar um futuro risonho. De Matrix a Inteligência Artificial, o cinema insiste em mostrar-nos um espelho dos nossos maiores medos, de preferência a criar cenários simpáticos, felizes, onde aparentemente os problemas da poluição omnipresente e do aquecimento global foram resolvidos, e onde não falta um pôr-do-sol que parece saído de um quadro de Friedrich, atravessado por um grande pássaro que plana à frente dos nossos olhos. Esse é o mundo do futuro aqui imaginado por Miguel Soares.

E, no entanto, isto não é cinema. É um projecto de arte contemporânea, feito obrigatoriamente sem os recursos milionários dos grandes estúdios de efeitos especiais, e que vive da citação em abismo do cinema, como já referimos, e da literatura — visto que o velhinho Frankenstein, que ronda já os 200 anos de idade, é o primeiro não-humano a adquirir vida própria no imaginário moderno. O título do projecto, LUZAZUL, é um palíndromo composto pelas palavras luz e azul, que se pode ler de forma especular. A luz azul que o termo evoca é obviamente a dos olhos do robô, mas também a de todos os ecrãs que nos rodeiam já e que substituem a visão dos humanos que surgem representados no filme. Este espelho que a palavra convoca acentua assim, mais uma vez, a função projectiva do trabalho de Miguel Soares, que não se faz unicamente a jusante, no campo da narrativa futurística, mas também a montante, reflectindo todas as imagens captadas pelo cinema, impressas pela literatura ou fixas pela fotografia, do possível futuro para a nossa espécie e o nosso mundo. E convém acrescentar que, em suportes tão voláteis como o são as redes sociais, Miguel Soares tem também desenvolvido um interessante projecto de fotografia de espaços urbanos descaracterizados banhados pela mesma luz azul que aqui convoca — este, agora, não do futuro, mas do presente em que vivemos.