Lisboa, Centro Comercial das Bugigangas
Mais um mini-argumento para o debate sobre a cidade. Em 17 ruas da Baixa de Lisboa, há 103 lojas de bugigangas para turistas.
Quando há dias contei as cadeiras das esplanadas da Rua Augusta — são 912 — um leitor escreveu esta frase no site do PÚBLICO: “Se quer uma cidade sem turismo, vá para Pyongyang!”
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Quando há dias contei as cadeiras das esplanadas da Rua Augusta — são 912 — um leitor escreveu esta frase no site do PÚBLICO: “Se quer uma cidade sem turismo, vá para Pyongyang!”
Foi estranhamente inspirador. Passou-me pela cabeça dedicar-lhe esta última crónica do ano. Afinal, foi neste leitor que mais vezes pensei enquanto varri a Baixa de Lisboa, rua a rua, a contar as lojas.
Não quero convencer ninguém, muito menos quem acredita que a defesa da cidade se faz no duelo capitalismo versus comunismo. O comunismo não faz bem à saúde, nem à economia, nem às cidades. Colocá-lo na equação vem com pelo menos 62 anos de atraso. O duelo é outro. Queremos um centro histórico vazio ou com habitantes? Queremos uma Lisboa-Disneylândia ou uma Lisboa inteligente? Uma Lisboa sem critério ou com visão? Um centro-cenário-para-turistas ou um centro capaz de atrair turismo a longo prazo sem expulsar os residentes, nem destruir o “mix funcional”? O duelo é entre uma cidade banal e de plástico e uma cidade genuína e distintiva.
A única coisa que quero é oferecer mais um miniargumento para o debate e insistir que é possível melhorar as nossas cidades.
Correndo o risco de déjà vu, depois das cadeiras, fui contar as lojas de bugigangas. Não percorri toda a Baixa, muito menos todo o centro histórico. Cingi-me às 17 ruas da grelha pombalina central: as dez paralelas que descem para o rio (Madalena-Nova do Almada) e as sete que atravessam na perpendicular (Comércio-Santa Justa).
Neste rectângulo, contei 616 lojas a funcionar (dezenas e dezenas estão fechadas). Destas, 103 são lojas de bugigangas (ímanes, miniaturas da Torre de Belém, porta-moedas de cortiça e T-shirts do Ronaldo), 12 alugam bicicletas e carrinhos, seis são “mercearias” com “traditional food” que se anunciam como “olive shop”, e 13 vendem vinho, quase sempre com “experiências” e “wine tasting”. Somado, são 134 lojas que existem a pensar nos turistas.
Esta é uma pequena amostra. Não cheguei à Sé nem ao castelo de São Jorge ou a Alfama, onde as bugigangas reinam e ocuparam farmácias, papelarias, mercearias, padarias, oculistas e ateliers de costura. Às 134, podemos somar dois terços dos cafés e restaurantes (151) — e aqui estou a ser simpática. Total: 234 lojas para turistas.
No ano passado, a Câmara Municipal de Amesterdão proibiu a abertura de novas lojas para turistas em 40 ruas do centro histórico. Havia 280. Ao anunciar a medida, o vice-presidente disse que ter tantas lojas iguais prejudicava a cidade.
Os critérios da minha contagem serão diferentes, mas não muito. Em Amesterdão, consideraram lojas para turista os lugares onde se vendem souvenirs, queijos e bilhetes (para os canais e os museus) e se alugam bicicletas.
Como Amesterdão, o nosso CBD (Central Business District) arrisca-se a tornar-se um CCB (Centro Comercial das Bugigangas).
O comércio da Baixa ainda tem algumas “funções raras” que definem os CBD: encontrei uma chapelaria, um escritório da ILGA, o velho Polycarpo das facas, sete retrosarias, seis lojas de ferragens e material eléctrico, dois sapateiros, três gravadores, quatro lavandarias, oito cabeleireiros e barbearias, duas sex shops e o Animatógrafo do Rossio. Também há uma residência universitária, lojas de tatuagens, decoração, lãs e tecidos. As ourivesarias são pouco mais de 20. Há alguns serviços (finanças, registos, bancos e correios). E pouco mais.
O resto é monótono. Contei 151 cafés e restaurantes, muitos dos quais indistintivos. Se todos os menus voassem e caíssem trocados, os empregados de mesa não notavam. Há 101 lojas de roupa, sapatos e malas. E contei 41 hotéis e guest houses.
Em 2019, não vou contar candeeiros, não se preocupem. Se alguém quiser contar as lojas de bugigangas do resto do centro histórico, é um serviço público bem-vindo e candidato a coffee break. Até lá, vou estudar os programas de viagens que o escritor José Luís Peixoto organiza com a agência Pinto Lopes a Pyongyang. Antes que chegue a democracia e as bugigangas.