“Posso dar-te um tiro na cabeça e fazer o mesmo à tua família”
Uma investigação do jornal The Guardian denunciou vários casos de jogadoras da selecção feminina de futebol do Afeganistão que foram violadas e assediadas pelo presidente da federação do país e por outros altos responsáveis. A FIFA está a investigar e a Hummel já cancelou o patrocínio.
Com pouco mais de uma década de existência, a selecção feminina de futebol do Afeganistão sempre foi considerada um símbolo de progresso e tolerância num país que ainda é um dos mais perigosos e repressivos para as mulheres, 17 anos depois da queda do regime dos Taliban, durante o qual a metade feminina da população mal podia sair de casa, quanto mais praticar desporto ou frequentar recintos desportivos. Esse símbolo, segundo informações divulgadas pelo jornal britânico The Guardian durante o último mês, tem sido palco de múltiplos abusos sexuais e outros casos de violência e assédio em que as jogadoras são as vítimas e os abusadores são os altos responsáveis de futebol do país, incluindo o presidente da federação afegã.
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Com pouco mais de uma década de existência, a selecção feminina de futebol do Afeganistão sempre foi considerada um símbolo de progresso e tolerância num país que ainda é um dos mais perigosos e repressivos para as mulheres, 17 anos depois da queda do regime dos Taliban, durante o qual a metade feminina da população mal podia sair de casa, quanto mais praticar desporto ou frequentar recintos desportivos. Esse símbolo, segundo informações divulgadas pelo jornal britânico The Guardian durante o último mês, tem sido palco de múltiplos abusos sexuais e outros casos de violência e assédio em que as jogadoras são as vítimas e os abusadores são os altos responsáveis de futebol do país, incluindo o presidente da federação afegã.
Várias jogadoras descreveram ao The Guardian, sob condição de anonimato por receio de represálias, os abusos cometidos por Keramuudin Karim, presidente da federação afegã desde 2004, que vão do abuso verbal à violência sexual e a ameaças de morte às próprias jogadoras, algumas com 15 e 16 anos, e respectivas famílias.
Uma destas jogadoras contou a este jornal que foi ter com Karim para lhe pedir dinheiro para deslocações e que este a levou para um quarto escondido nas instalações da federação – “parecia um quarto de hotel, que tinha tudo, até uma casa de banho” - e que só era possível abrir com a sua própria impressão digital.
“Empurrou-me para a cama (…) e disse que naquele dia ia descobrir se eu era ou não lésbica – porque eu passava muito tempo com raparigas e parecia-me um bocadinho com rapazes. Tentei fazer-lhe frente, mas ele deu-me um murro na cara (…). Fiquei a sangrar do nariz e dos lábios. Continuou a bater-me, caí na cama e tudo ficou escuro… Quando acordei, as minhas roupas tinham desaparecido e havia sangue por todo o lado. Estava a tremer e não sabia o que me tinha acontecido. A cama estava encharcada em sangue, sangue do nariz, da boca e da vagina. Fui lavar-me e vestir-me e disse-lhe, ‘Vou contar tudo o que aconteceu aqui’. Ele pegou numa pistola e disse: ‘Viste o que eu te fiz? Posso dar-te um tiro na cabeça e espalhar o teu cérebro por todo o lado. E posso fazer o mesmo com a tua família. Se queres que a tua família fique viva, vais ficar calada’”, contou uma das vítimas.
Outras jogadoras ouvidas pelo The Guardian falam de tentativas de violação não consumadas por parte de Karim, que terá expulsado várias futebolistas da selecção fazendo correr o rumor de que eram lésbicas. Isto terá acontecido com, pelo menos, nove jogadoras. Uma delas contou que foi chamada à sede da federação por Karim e que este a ostracizou após ter recusado os seus avanços: “A primeira coisa que ele fez foi tirar-me da lista da selecção que iria para os treinos no estrangeiro. Depois começou a insultar-me em frente de toda a gente e acusou-me de ser lésbica e expulsou-me da federação.”
A FIFA está a investigar estas denúncias e já suspendeu Karim de todas as actividades (nacionais e internacionais) relacionadas com o futebol, e a Hummel, fabricante dinamarquesa de equipamento desportivo, rescindiu o contrato de patrocínio com a federação. As autoridades do país também estão a investigar as acusações. “É um choque para todos os afegãos”, declarou o Presidente Ashraf Ghani. “Qualquer má conduta contra atletas, homens ou mulheres, não é aceitável." Para além disso, cinco dirigentes da Federação afegã de futebol, incluindo o presidente Karim, foram notificados esta sexta-feira de que estão impedidos de sair do país.
A federação afegã, pelo seu lado, negou todos estes relatos pela voz do seu secretário-geral, Sayed Aghazada. “Estas alegações são falsas e vamos conduzir uma investigação rigorosa”, disse o responsável federativo. A federação chegou mesmo a publicar, na sua página de Facebook, um vídeo de uma antiga jogadora, Farkhunda Muhtaj, a declarar o seu apoio à federação nestas denúncias. Pouco depois, Muhtaj, que vive no Canadá, recorreu ao Twitter para denunciar que o vídeo em causa tinha sido manipulado e que tinha sido gravado com a intenção de agradecer aos patrocinadores, não para defender a federação.
Muitas destas denúncias têm sido feitas por jogadoras e antigas jogadoras da selecção afegã que vivem fora do Afeganistão, entre mulheres que fugiram do país e outras descendentes de refugiados afegãos. Uma voz que tem sido muito activa nestas denúncias é a de Khalida Popal, antiga capitã da selecção que nasceu em Cabul e que vive actualmente na Dinamarca. Depois de uma lesão lhe ter antecipado o final de carreira, Popal tornou-se numa das principais responsáveis pelo desenvolvimento do futebol feminino no Afeganistão, instrumental tanto na organização de jogos e estágios fora do país, como no recrutamento de jogadoras na diáspora e da treinadora da selecção, a norte-americana Kelly Lindsey, para além de ter sido fundamental no contrato de patrocínio com a Hummel.
Foram de Popal as primeiras denúncias de abusos, de dois altos responsáveis da federação afegã durante um estágio da selecção na Jordânia. “Andavam a assediar as raparigas, sobretudo as que vinham do Afeganistão porque eles não iriam dizer nada. Confrontei-os e disse que ia fazer queixa, mas continuaram. Iam aos quartos das jogadoras e dormiam com elas. Diziam-lhe que podiam garantir que eram convocadas e lhe davam 100 libras por mês se elas dissessem sim a tudo”, contou Popal ao The Guardian. A antiga jogadora diz que contou tudo ao presidente da federação e que este lhe garantiu que os dois homens seriam punidos. Os abusos foram abafados, e os abusadores, contou Kelly Lindsey, foram promovidos.
Sendo o Afeganistão um país ainda perigoso para as mulheres mesmo depois do fim do regime dos Taliban, o futebol feminino têm-se desenvolvido aos poucos e com muitas limitações. O primeiro jogo de uma equipa nacional de futebol formada por mulheres afegãs aconteceu numa base da NATO e contra uma equipa de militares estrangeiras, e a selecção treinava num estádio fechado ao público e só as guarda-redes podiam treinar na relva – as outras jogadoras treinavam em chão de cimento. A selecção feminina começou a aparecer no ranking da FIFA em 2011, e chegou a estar no 106.º lugar em 2017, ocupando actualmente o 136.º lugar. E com receio do que possa acontecer, a selecção feminina de futebol do Afeganistão nunca disputou jogos em casa.