Quem não quer ser Trump...
Já alguém reparou que o que Trump quer, e foi tão criticado, é a lei portuguesa da nacionalidade?
1. A imprensa de referência, americana e internacional, foi unânime: com o ataque à lei americana da nacionalidade, Trump elevou a um novo patamar a sua cruzada contra a imigração, pondo em causa direitos fundamentais e princípios constitucionais estabilizados. Basicamente, está em causa uma política em que se entende que a imigração se controla reduzindo os direitos de quem imigra.
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1. A imprensa de referência, americana e internacional, foi unânime: com o ataque à lei americana da nacionalidade, Trump elevou a um novo patamar a sua cruzada contra a imigração, pondo em causa direitos fundamentais e princípios constitucionais estabilizados. Basicamente, está em causa uma política em que se entende que a imigração se controla reduzindo os direitos de quem imigra.
2. Nos EUA, têm nacionalidade americana todos os que nascem no território do país, independentemente da nacionalidade e estatuto dos pais. É o chamado direito de solo. Noutros países, a nacionalidade à nascença depende não do sítio em que se nasce mas da nacionalidade dos pais: fala-se, neste caso, de direito de sangue. O primeiro regime está associado a uma conceção da nação como comunidade política, o segundo a uma conceção étnica da nação.
3. O que quer Trump? Limitar o direito de solo, introduzindo duas correções fundamentais no regime constitucional em vigor nos EUA: conceder a nacionalidade americana aos filhos de estrangeiros nascidos em território americano apenas quando (1) estes nele residam legalmente e (2) há um número mínimo de anos. Por outras palavras, o que se fez em Portugal, mal, depois do 25 de Abril, quando, por etapas, se pôs termo a um regime centenário de direito de solo, exatamente com as mesmas correções. Com a Lei n.º 37/81, os nascidos em Portugal filhos de pais estrangeiros passaram a só ter acesso à nacionalidade portuguesa se os seus pais residissem no país há, pelo menos, seis anos. A mudança foi aprofundada na revisão da Lei em 1994: a partir de então, o acesso à nacionalidade portuguesa ficou reservado aos “nascidos em território português, filhos de estrangeiros que aqui residam com título válido de autorização de residência há pelo menos seis ou dez anos, conforme se trate, respetivamente, de cidadãos nacionais de países de língua oficial portuguesa ou de outros países” (Lei n.º 25/94, Art.º 1, alínea c). Foi preciso esperar por 2006 para se assistir a uma mudança de rumo, traduzida numa ligeira redução dos tempos de residência necessários à aquisição da nacionalidade pelos próprios imigrantes ou pelos seus filhos nascidos no país. Em 2018, o caminho no sentido do restabelecimento de critérios do direito de solo foi prosseguido e passaram a ter acesso à nacionalidade portuguesa, em termos mais simplificados, os “indivíduos nascidos no território português, filhos de estrangeiros [...] desde que, no momento do nascimento, um dos progenitores aqui resida legalmente há pelo menos dois anos” (Lei Orgânica n.º 2/2018, Art.º 1, alínea f).
4. Trump compraria sem hesitações quer a nossa Lei de 1981, quer, ainda com mais entusiasmo, a versão revista de 1994. Suspeito que, se tivesse dificuldades com o Congresso, e fosse obrigado a alguns compromissos, aceitaria sem grande mágoa tanto a lei portuguesa de 2007 como, mesmo, a que resultou da revisão desta em 2018. De facto, os dois princípios que marcam a rutura com o regime constitucional americano pretendido por Trump continuam presentes na Lei portuguesa de 2018: só têm acesso à nacionalidade portuguesa os filhos de estrangeiros que (1) residam legalmente no país e (2) há um número mínimo de anos (no caso, dois anos). Por outras palavras, já alguém reparou que o que Trump quer, e foi tão criticado, é a lei portuguesa da nacionalidade? Claro que se Trump compraria a Lei portuguesa já recusaria o percurso da Lei nos últimos anos, que vai no sentido oposto ao pretendido pelo Presidente dos EUA. Mesmo assim, conviria que quem não quer ser Trump...
5. O que Trump quer acima de tudo, e gera tantas críticas nos EUA, é que o acesso à nacionalidade pelas crianças nascidas nos EUA, filhas de estrangeiros, passe a ser condicionado pelo estatuto da residência dos pais no país, proibindo-o quando essa permanência for ilegal. Em Portugal, a conceção bizarra segundo a qual, no caso da nacionalidade, os filhos podem ser juridicamente penalizados pelos comportamentos dos pais está tão assimilada que é difícil tornar evidente o que nos EUA é objeto de debate acalorado.
6. Surpreendem ainda, em Portugal, os argumentos a favor da segunda exigência de Trump: um número mínimo de anos de residência nos EUA dos pais estrangeiros para que o nascimento dos seus filhos no país dê direito à nacionalidade americana. Em Portugal, este tipo de exigência é habitualmente sustentado com o argumento de que, de outra forma, poderíamos assistir à imigração de estrangeiras grávidas com o único objetivo de o seu filho obter a nacionalidade portuguesa. Claro que assistiríamos! Mas desde quando há leis perfeitas, sem efeitos perversos? O que tem que ser ponderado quando se aprova uma lei não é se esta terá efeitos perversos (terá) mas se esses efeitos representam, ou não, um custo maior do que os ganhos que se obtêm com ela. E agir para eliminar ou circunscrever não o bom princípio que se quer defender mas os efeitos perversos desse mesmo princípio.
7. Se, em Portugal, alguma vez se quiser que a imigração passe a ter um contributo decisivo para a demografia do país, as vantagens do regime de direito de solo sobre o regime de direito de sangue são óbvias: o primeiro facilitará uma integração dos imigrantes que o segundo dificultará por exacerbação nacionalista. Sobretudo nos tempos que correm. Devíamos revisitar a Lei da nacionalidade em próxima oportunidade, prosseguindo a correção iniciada em 2006 e aprofundada em 2008.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico