O pior Natal da década nas estradas é só a ponta do icebergue

Morreram 15 pessoas nas estradas neste Natal, mais do dobro de 2017. Para os especialistas, há uma lista grande de explicações: da formação à fiscalização, da inspecção das infra-estruturas à "ausência" de um ministro que "dê a cara pelo problema".

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Daniel Rocha

Mais mortos, mais acidentes, mais feridos graves face ao mesmo período de 2017. Durante a operação de Natal da GNR deste ano, morreram 15 pessoas nas estradas, mais do dobro de 2017, o que faz deste o pior ano da última década. É “um sinal péssimo” para o presidente da Prevenção Rodoviária Portuguesa, mas é só a ponta do icebergue: há um cocktail de razões que não deixa que Portugal descole dos 60 mortos na estrada por milhão de habitantes, um número bem superior ao de outros países europeus – que, diz José Miguel Trigoso, registam entre 20 e 30 mortos por milhão de habitante.

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Mais mortos, mais acidentes, mais feridos graves face ao mesmo período de 2017. Durante a operação de Natal da GNR deste ano, morreram 15 pessoas nas estradas, mais do dobro de 2017, o que faz deste o pior ano da última década. É “um sinal péssimo” para o presidente da Prevenção Rodoviária Portuguesa, mas é só a ponta do icebergue: há um cocktail de razões que não deixa que Portugal descole dos 60 mortos na estrada por milhão de habitantes, um número bem superior ao de outros países europeus – que, diz José Miguel Trigoso, registam entre 20 e 30 mortos por milhão de habitante.

“Estatisticamente, não são significativas as variações em números muito pequenos, em prazos muito curtos”, como é o caso do da operação de Natal da GNR, que, este ano, decorreu entre 21 e 26 de Dezembro. O problema é que esta tendência se reflecte nos números anuais de sinistralidade em Portugal: “A sinistralidade não tem diminuído deste 2012 ou 2013. O número de vítimas mortais diminuiu até 2016, mas foi o único número que diminuiu. O que é muito preocupante porque significa que não estamos onde deveríamos.”

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Mas a que se devem estes números? Para os dois especialistas ouvidos pelo PÚBLICO – José Miguel Trigoso e Manuel João Ramos, presidente da Associação Cidadãos Automobilizados (ACAM) – a resposta não é simples e deve-se a vários factores.

Em primeiro lugar, a formação, que não tem sofrido alterações, ao contrário do que mandam as boas práticas europeias: “Quando olhamos para a educação e formação de condutores, vemos que o nosso modelo se mantém quase inalterado há uma série de anos”, começa José Miguel Trigoso. Mais tempo de formação, com mais quilómetros de estrada, podia ser uma solução. Mas também os métodos de avaliação precisam de ser alterados.

“A formação será sempre aquilo que o exame for. E enquanto o exame não mudar, a formação será feita para passar naquele exame. Nós consideramos que o exame é mau e leva a que a formação não melhore”, defende o presidente. “E isto não é da responsabilidade das escolas de condução, que, na nossa opinião, são capazes de fazer melhor.”

A diminuição da sinistralidade não depende apenas dos novos condutores – depende de todos os que usam a via pública, incluindo peões. É nesse aspecto que Manuel João Ramos se foca quando fala da formação. “A ACAM investe mais no apoio aos professores e alunos, seja no ensino básico, seja no secundário. Fazemos isto sabendo que o Estado se demitiu dessa função. Dantes ainda havia alguma coisa [sobre prevenção rodoviária] nos programas, mas hoje não existe”, atira o antropólogo. 

Sinal de desinvestimento?

O presidente do Automóvel Clube de Portugal é peremptório: “O grande problema do desastre que houve neste Natal está relacionado com as campanhas”. Em declarações à Renascença, Carlos Barbosa aponta o dedo ao Governo, que acusa de ficar com uma parte do dinheiro proveniente do pagamento de seguros automóveis. Desses fundos, pelo menos 4% deviam ir para fundo de garantia automóvel, para pagar a quem não tem seguro, e 50% deviam ser usados para fazer campanhas rodoviárias.

Algo que, defende Carlos Barbosa, não acontece: “Há quatro anos que esse dinheiro não aparece para se fazerem campanhas, nem através da Prevenção Rodoviária, nem através da sociedade civil”. O que faz do Estado o “grande responsável moral de todos estes acidentes”.

Manuel João Ramos também o afirma. “O Governo desviou mais de metade dessa verba para financiar o equipamento e logística das forças de segurança. O que é pelo menos imoral, porque não é dinheiro do Governo, ou sequer do Estado.” Mas, sublinha, o problema não se fica pelo financiamento: é, sobretudo, “de filosofia”.

“As campanhas regem-se pelo princípio de que é preciso que o Estado mostre que está a gastar dinheiro em segurança rodoviária. Mas eu não preciso que o Governo me diga que está preocupado com o problema da segurança rodoviária, se não actuar no sentido de evitar que certos comportamentos de risco que contribuem para a falta de segurança rodoviária existam. E, por isso, a filosofia está toda errada. O investimento é cada vez menor, mas está a ser mal aplicado.”

José Miguel Trigoso concorda que “há uma série de anos, desde 2006 ou 2007”, as verbas do fundo de garantia automóvel não são aplicadas em medidas de segurança rodoviária e segue a mesma linha da explicação do presidente da Associação Cidadãos Automobilizados.

“Não quer dizer que [as verbas sejam investidas] só em campanhas. Há um conjunto de medidas onde elas deviam ser aplicadas de forma coordenada e não têm sido: têm sido aplicadas para adquirir veículos para as forças de fiscalização e outas coisas do género. Deviam ser aplicadas no âmbito de acções estruturadas e não de campanhas avulsas, que são feitas de vez em quando e com muito poucos meios.”

O PÚBLICO tentou contactar o Ministério da Administração Interna, mas não teve resposta.

É o estado das estradas? 

Os dois especialistas ouvidos pelo PÚBLICO afirmam que o estado das infra-estruturas é outro elemento a ter em conta, mas concordam que não é o principal elemento explicativo destes números.

“Existe um problema, ao nível das auditorias e das inspecções rodoviárias. Temos uma rede viária que está em descalabro total porque não houve financiamento e não houve manutenção por causa da crise. Desde 2009 que não há trabalhos nas estradas. Temos um problema grave aí, mas ninguém se preocupa com isso a não ser quando a estrada cai”, diz Manuel João Ramos, referindo-se à tragédia em Borba, onde a derrocada de uma via fez cinco vítimas.

Não há legislação? Onde estão as autoridades?

A própria lei sobre segurança rodoviária tem problemas de fundo, enumerados por Manuel João Ramos. À “ausência de políticas sustentadas e financiadas de segurança rodoviária” e “a uma ausência de ministro que dê a cara pelo problema”, junta-se o facto de o Governo legislar sobre este tema por decreto.

“De certa maneira, continuamos a funcionar em regime salazarista: no sentido de uma confusão entre sistema legislativo e executivo”, começa por explicar o antropólogo. “​O problema é que quando o ministro cai, ou quando o Governo cai, o plano [de prevenção rodoviária] também cai”. Ao nível local, as coisas também falham porque “os municípios não são chamados a fazer os planos para a segurança rodoviária”, argumenta.

Mas é ao nível da fiscalização que o problema se agrava, afirmam os especialistas. “A legislação só serve se for cumprida e respeitada e muitas vezes não é”, diz José Miguel Trigoso, da PRP. E a diminuição do número de autos resultantes de infracções graves e muito graves é só a face visível desse problema: “Teoricamente ficaria muito satisfeito. Mas isso não é compaginável num ano em que aumentaram o número de acidentes, aumentou o número de mortos, aumentou o número de feridos graves... É evidente que as pessoas não cumpriram melhor. Como é que se explica a diminuição significativa dos autos levantados? Com uma diminuição da fiscalização, seguramente por falta de meios.”

Muitos desses autos – que mais tarde se traduzem em multas –, ficam por resolver (e por pagar). “É preocupante porque mesmo que não seja de forma consciente leva a um sentimento que o levantamento do auto não traz consequências. E isso leva a um relaxar e a um favorecimento e arriscar ao cometimento de infracções perigosas.”

A isso muito se deve o facto de não existir uma brigada de trânsito, abolida em 2009. “O patrulhamento começou a ser feito por todos os agentes da GNR, fossem eles de trânsito, das florestas ou da escola segura. Perdeu-se uma competência importante que era a segurança fiscalizada por uma força treinada”, explica Manuel João Ramos.

A Associação Sócio-Profissional Independente da Guarda (ASPIG/GNR) concorda. Num comunicado divulgado esta quinta-feira, a associação considera um "crasso erro" e uma "decisão política imponderada e desprovida de adequada informação" a extinção da Brigada de Trânsito da GNR, que durante décadas deu mostras "da elevada capacidade na diminuição da sinistralidade rodoviária".

Para esta organização, os resultados da operação de trânsito da GNR merecem uma reflexão pela sua gravidade, devendo o poder político corrigir o erro da extinção da Brigada de Trânsito.