Governo usa “interesse público” para omitir dados da Zona Franca
Centeno ignora parecer da comissão de acesso a documentos e recusa divulgar informação sobre incentivos da Zona Franca da Madeira. Postos de trabalho são ponto sensível da investigação em Bruxelas. Governo teme “potenciais danos” e acena com riscos financeiros.
Ao arrepio de uma recomendação da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), o Ministério das Finanças recusa revelar estatísticas e relatórios sobre a Zona Franca da Madeira (ZFM) enquanto estiver de pé a espinhosa investigação da Comissão Europeia às isenções atribuídas às empresas do centro de negócios.
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Ao arrepio de uma recomendação da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), o Ministério das Finanças recusa revelar estatísticas e relatórios sobre a Zona Franca da Madeira (ZFM) enquanto estiver de pé a espinhosa investigação da Comissão Europeia às isenções atribuídas às empresas do centro de negócios.
O PÚBLICO tenta desde Agosto obter documentos que abarcam um período de 11 anos – de 2007 a 2017 –, mas o ministério liderado por Mário Centeno rejeita divulgar de imediato a informação, alegando que isso representa “potenciais danos para o interesse público”, podendo afastar investimento privado e implicar riscos económicos e financeiros para Portugal.
A investigação da Comissão Europeia está a ser pilotada pela comissária Margrethe Vestager — conhecida pelas multas já aplicadas aos gigantes tecnológicos Google e Apple — e representa um passo inédito dado em Bruxelas. Ao longo de três décadas, o executivo comunitário aprovou os vários regimes fiscais da ZFM, mas em 2018 revelou dúvidas sobre se Portugal terá respeitado “algumas das condições de base” que levaram a Comissão Europeia a aprovar esses instrumentos em 2007 e 2013, em relação ao chamado Regime III. Os dados sobre os postos de trabalho são um ponto sensível da investigação da Comissão Europeia. Uma das condições para o Estado português conceder as isenções exige a criação de empregos — e Bruxelas duvida que algumas sociedades tenham criado e mantido efectivamente os empregos necessários.
Conhecer o número de postos de trabalho em cada um dos anos de 2007 a 2017 é justamente um dos pedidos do PÚBLICO. Em Agosto, o jornal começou por requerer ao secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, António Mendonça Mendes, acesso tanto aos relatórios anuais de aplicação do regime de auxílios fiscais, como a uma série de estatísticas fiscais sobre esse período (número de empresas da ZFM, número de postos de trabalho, valor da despesa do Estado com as isenções de IRC, resultados e imposto liquidado). O fisco já divulga no Portal das Finanças algumas destas estatísticas, mas não todas. E os números que revela cingem-se ao período a partir de 2010.
A esse requerimento, o governante começou por não responder. Só o fez quando o PÚBLICO já tinha apresentado uma queixa na Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA). Mas logo aí disse que não daria acesso à informação por estar pendente a decisão de Bruxelas. Como justificação, invocou o facto de as informações terem uma “conexão directa” com o que a CE investiga.
Documentos separados
À CADA, o secretário de Estado apresentou os mesmos argumentos. A comissão, porém, deixou claro que os documentos pedidos não são os da investigação da Comissão e sublinhou que os documentos “não mudam de natureza” por estarem a ser considerados em procedimentos terceiros.
“Se é verdade que em relação a procedimentos não concluídos, o acesso aos documentos administrativos pode ser diferido até ‘à tomada da decisão’, ‘ao arquivamento do processo’ ou ‘ao decurso de um ano após a sua elaboração’”, a CADA clarificou que o PÚBLICO não pediu o acesso à investigação ou a outro qualquer processo que a Comissão ainda esteja a decidir. “Pediu, sim, o acesso a diversa informação financeira, fiscal e estatística”, sustenta a CADA, explicando que “não deve haver confusão entre a natureza de procedimentos, mesmo de investigação, que corram em quaisquer entidades e em que determinados documentos administrativos são levados em conta, e os procedimentos ou processos em que esses mesmos documentos administrativos foram produzidos.”
Com base neste argumento, a CADA recomendou ao governante que facultasse a informação. Mendonça Mendes continuou sem o fazer: não comunicou a decisão final fundamentada no prazo de dez dias previstos na lei, obrigando o PÚBLICO a avançar com uma acção no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa para intimar o Ministério das Finanças a prestar a informação.
Foi aí, já no início de Dezembro, que o Governo recorreu a razões de “interesse público” para manter os dados na gaveta, dando tradução argumentativa ao que o secretário de Estado afirmara em Setembro no Parlamento ao invocar a necessidade de “recato” em relação a este dossier.
Na resposta ao processo de intimação, o Ministério das Finanças discorda do parecer da CADA dizendo que podem subsistir “razões legítimas” para a administração pública manter a informação “temporariamente resguardada”. E alega que conhecer algumas das informações poderia “afectar, de modo grave, os objectivos de actividade de inspecção e o processo decisório” de Bruxelas.
Versão não-confidencial
O Governo centra as preocupações no facto de alguns dos dados pedidos coincidirem com o que está a ser investigado, ainda que, como a CADA afirmou, não esteja em causa o acesso a esse processo. Para o Governo, a “divulgação de apreciações de natureza sensível – e ainda em processo de contraditório – é passível de prejudicar a estabilidade do regime sob avaliação, afectando a protecção de interesses comerciais das pessoas singulares ou colectivas que beneficiaram dos auxílios e condicionando decisões de localização de investimento ou actividades, com o inerente risco de prejuízo da protecção do interesse público, no que respeita à política financeira, monetária e económica de Portugal”.
Bruxelas já elencou algumas das dúvidas sobre as isenções atribuídas no comunicado que emitiu a 6 de Julho. Falta publicar uma versão não-confidencial dessa decisão, um texto pormenorizado com a fundamentação legal e económica para o facto de ter sido aberta a investigação aprofundada. Quanto a isso, os serviços na alçada de Margrethe Vestager (a Direcção-Geral da Concorrência) ainda estão em negociações com o Governo português para definir o que é revelado, sendo certo que a palavra final caberá sempre à Comissão.
Ao PÚBLICO, o Governo promete dar acesso aos documentos pedidos quando houver uma decisão final, algo que não tem data definida para acontecer. E para isso invoca a norma da lei de acesso aos documentos administrativos onde se prevê que o acesso a documentos “preparatórios de uma decisão ou constantes de processos não concluídos pode ser diferido até à tomada de decisão, ao arquivamento do processo ou ao decurso de um ano após a sua elaboração, consoante o evento que ocorra em primeiro lugar”.
A questão é, porém, distinta: a CADA já tinha referido que os documentos pedidos são outros. Na acção entregue no tribunal, o PÚBLICO alegou que a informação estatística pedida é anterior ao processo de Comissão Europeia e dele independente, pois à partida já seria de acesso público. Considerando que não se trata de informação sensível, classificada ou protegida por segredo de Estado, é referido na acção não ser compreensível como poderão os dados pôr em causa quaisquer interesses fundamentais do Estado.