Regresso ao futuro, com o passado no bolso
A paz de hoje é menos recreativa do que as guerras de outrora? Não, não é. A memória é que é curta
Se os habituais desejos de final de ano se cumprissem sempre, teríamos a cada novo ano um melhor do que o anterior. E isso, repetindo-se há décadas, já nos devia ter levado ao paraíso. Sabemos, no entanto, que não é assim, que um ano pode ser magnífico para algumas pessoas e mau, ou mesmo terrível, para outras. O que não nos impede (porque haveria?) de formular a cada muda de calendário tão utópico desejo, deixando à sorte e ao destino o resto da tarefa.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Se os habituais desejos de final de ano se cumprissem sempre, teríamos a cada novo ano um melhor do que o anterior. E isso, repetindo-se há décadas, já nos devia ter levado ao paraíso. Sabemos, no entanto, que não é assim, que um ano pode ser magnífico para algumas pessoas e mau, ou mesmo terrível, para outras. O que não nos impede (porque haveria?) de formular a cada muda de calendário tão utópico desejo, deixando à sorte e ao destino o resto da tarefa.
Uma coisa, porém, é certa: a cada novo ano há mais condições para que o mundo possa ser bem melhor do que no passado, isto apesar dos (perigosos) padecimentos que continuamos a infligir ao planeta e a milhões dos seres que nele habitam. A propósito da estranha ideia que costuma ser sintetizada na frase “no meu tempo é que era”, o filósofo francês Michel Serres escreveu, aos 87 anos (hoje tem 88), um ensaio-manifesto intitulado C’était Mieux Avant!, lançado em França pelas Editions Le Pommier, em Agosto de 2017, e editado em Portugal em Maio de 2018 com o título Antes é que Era Bom!, nos livros vermelhos da Guerra & Paz. Serres coloca-se na pele do francês idoso (como ele) que resmunga e barafusta, invocando o passado como um tempo de luz e glória, “vociferando a ira característica” de uma “nação rabugenta”, a França. E, no entanto, o que ele diz, os exemplos que cita, são universais. Ao celebrarmos o século XX, benevolamente baptizado como “o século do povo”, poderemos esquecer as terríveis chagas que o mancharam, as guerras mundiais, a Shoah e o Gulag, os conflitos coloniais, as abominações racistas? Escreve Serres: “Da nascença à idade adulta, o meu corpo formou-se, braços e pernas, coração e cérebro, de guerra, de guerra, de guerra. Desde então [ele escreve em 2017], vivemos sessenta e cinco anos de paz, o que não era ponto assente, pelo menos na Europa Ocidental, desde a Ilíada ou da Pax Romana. (…)” Sublinhando que o século XX foi “o primeiro em que os mortos nos campos de horror ultrapassaram largamente a malignidade dos micróbios” (num passado de carnificinas, “o número de mortos por doenças infecciosas ultrapassava sempre de longe o das vítimas de guerra”), interroga-se: “A paz de hoje é menos recreativa do que estas guerras de outrora?”
Não, não é. A memória é que é curta. No que toca a doenças também muito se evoluiu. Mil e uma doenças hoje curáveis, como a varíola ou a tuberculose, aniquilavam milhões. “A minha tia”, escreve ele, “faleceu de meningite no mês anterior à chegada da penicilina, o remédio que teria reduzido o seu sofrimento letal a oito dias de pequenas picadelas.” Passou a haver cura para o irremediável e hoje a ciência e a medicina estão, com todas as lacunas ou falhas que lhes possam apontar, a anos-luz do martírio doutras eras. A esperança de vida, cada vez maior, reflecte esse avanço. Há mais a fazer? Haverá sempre. Como na perfeição dos governos ou regimes. Mas como comparar os governantes de hoje, mesmo os piores, com aqueles que marcaram, a ferro e sangue, o século XX, Hitler e Estaline, Mussolini e Franco, Mao Tsétung, Pol Pot ou Ceaucescu? “Todos pessoas de bem”, ironiza Serres, “requintados especialistas em campos de extermínio, torturas, execuções sumárias, guerras, depurações. Junto destes ilustres actores, o presidente democrático tem pinta de anónimo.”
Ao longo do livro, que se lê de um fôlego nas suas 100 páginas, Serres vai descrevendo as mudanças abissais em coisas em que já nem reparamos, como a higiene, o acesso facilitado à água potável, a electricidade, as máquinas a substituírem o esforço humano nos lares ou nos mais diversos ofícios, o conhecimento a tomar o lugar do empirismo, a velocidade das comunicações que hoje ligam todo o globo e antes oscilavam entre o perigo e a aventura. Recorrendo à sua própria experiência de vida (já longa) ou à dos seus familiares, Serres vai derrubando, uma a uma, as argumentações em favor do “antes é que era bom”, provocando-nos por vezes um arrepio ou uma sensação de mal-estar perante os hábitos “saudosos” de outrora. “O macarrão que nós, internos, comíamos na cantina do liceu formigava de larvas. Ah! a biodiversidade! Antes, era copioso, auspicioso, delicioso.” O que faz a memória…
A cinco dias de 2019, mesmo tendo de encarar Trump, Bolsonaro e outros que tais, melhor é regressar ao futuro. Levando o passado no bolso, para não esquecermos os seus “encantos”.