Uma Alice absurda e política
Depois do Conto de Natal, Maria João Luís e Ricardo Neves-Neves voltam a encenar a quatro mãos. Alice no País das Maravilhas é uma menina pespineta a descobrir o corpo e a voz no Teatro Nacional D. Maria II, de 27 de Dezembro a 6 de Janeiro.
Oito Alices e quatro coelhos brancos. Uma pequena comitiva de boas-vindas recebe a Alice que Maria João Luís e Ricardo Neves-Neves imaginaram a partir dos clássicos de Lewis Carroll. São oito Alices – podiam ser mais, podiam ser menos – que aparecem como imagem das tantas Alices que já foram paridas e largadas pelo mundo, as incontáveis versões que precedem esta Alice no País das Maravilhas em cena no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, desta quinta-feira até 6 de Janeiro. Oito Alices enfiadas naquele vestido azul que conhecemos de cor, sobre o qual se derrama um avental branco, mais quatro coelhos brancos que hão-de bater em retirada e de ser seguidos depois de escorregarem toca abaixo. Antes disso, no entanto, cantam naquele tom de cantilenas infantis que Neves-Neves sempre põe nas bocas das suas personagens: “Certa vez eu vi um gato/ a posar para um retrato/ Ia a passear no meio/ De uma grande trovoada/ Um relâmpago arisco/ Bateu num ovo sentado/ E o gato por petisco/ Comeu um ovo estrelado”.
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Oito Alices e quatro coelhos brancos. Uma pequena comitiva de boas-vindas recebe a Alice que Maria João Luís e Ricardo Neves-Neves imaginaram a partir dos clássicos de Lewis Carroll. São oito Alices – podiam ser mais, podiam ser menos – que aparecem como imagem das tantas Alices que já foram paridas e largadas pelo mundo, as incontáveis versões que precedem esta Alice no País das Maravilhas em cena no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, desta quinta-feira até 6 de Janeiro. Oito Alices enfiadas naquele vestido azul que conhecemos de cor, sobre o qual se derrama um avental branco, mais quatro coelhos brancos que hão-de bater em retirada e de ser seguidos depois de escorregarem toca abaixo. Antes disso, no entanto, cantam naquele tom de cantilenas infantis que Neves-Neves sempre põe nas bocas das suas personagens: “Certa vez eu vi um gato/ a posar para um retrato/ Ia a passear no meio/ De uma grande trovoada/ Um relâmpago arisco/ Bateu num ovo sentado/ E o gato por petisco/ Comeu um ovo estrelado”.
Ricardo Neves-Neves fala desse momento inicial enquanto gesto de auto-ironia. Numa peça dominada pelo confronto com um espelho, que tanto permite a passagem de Alice para um mundo fantasioso em que as regras pouco elásticas da realidade são derrotadas por uma nova lógica – a de uma matemática em que o resultado da divisão de um pão por uma faca dá pão com manteiga – quanto obriga uma menina a observar o seu corpo em transformação púbere, também os dois encenadores se colocam diante do seu reflexo. E assim, tendo ambos uma tendência comprovada para polvilharem os seus espectáculos com momentos corais, assim começa esta Alice por brincar com os seus criadores. Mas isso, ressalva Neves-Neves, pertence às constatações a posteriori: de início, estas 12 vozes eram uma simples ideia anotada no telemóvel, que o tempo colocou em marcha, sem outra razão que não fosse a força da imagem. “Só vejo uma data de Alices a aparecer no espectáculo e depois, quando aparece a nossa Alice, vão-se embora”, ri-se. Sem obedecer a uma grande arquitectura dramatúrgica. Apenas porque sim.
E o “porque sim” é, na verdade, uma das razões para a existência desta encenação a quatro mãos. O magnetismo do absurdo, do non-sense e do surrealismo há muito que mantém Maria João Luís e Ricardo Neves-Neves numa órbita próxima. Por essa mesma vontade de vinculação a uma linguagem que admite o extraordinário e não tenta encontrar justificações plausíveis para aquilo que acontece de invulgar e fantasioso – “a explicação final que nos dá a sensação de justificação de tudo o que aconteceu para trás é algo muito presente no teatro do absurdo e que me deixa triste nos espectáculos que vejo”, diz Neves-Neves –, esta Alice não acorda a engavetar tudo o que lhe aconteceu na memória dos sonhos. “Não colocamos a Alice a adormecer nem a acordar de um sonho”, descansam os encenadores. Nem embarcam em pistas como a loucura ou o delírio para explicar os comportamentos à luz de uma normalidade. “Isso empobreceria e mataria as personagens – nós queremos que elas sejam reais e que o público as leve para casa e continue a pensar nelas, sem adoptar essa solução para tudo aquilo que viu.”
“É engraçado porque a maioria das pessoas, depois de ler o livro, fala dele como se fosse um sonho”, comenta a encenadora – que entra em palco também para assumir a pele de um Chapeleiro para quem os ponteiros do relógio apontam sempre para as mui distintas cinco da tarde. Só que nesta Alice, garantem, o que lhes interessa é que o sonho possa ser visto como “o nosso sítio da grande liberdade, em termos criativos, de imaginação e de fantasia”. Um lugar não para fornecer um escape da realidade; mas talvez sobretudo para tentar convencer a realidade a imitar-lhe a maleabilidade.
É Natal outra vez
Não é a primeira vez que Maria João Luís e Ricardo Neves-Neves fundem a sua assinatura numa só. E não é também a primeira vez que o fazem em plena época natalícia. Suspendendo o seu amor pelo absurdo, levaram à cena, há três anos, o Conto de Natal, de Charles Dickens, na altura esperada. Foi ainda durante os ensaios para essa peça que estabeleceram o pacto de se atirarem ao texto de Lewis Carroll. “A João já tinha feito alguns trabalhos a partir da Alice no País das Maravilhas, curiosamente através da música, e era daqueles textos que eu tinha na gaveta como possibilidade de vir a fazer mais tarde”, recorda Neves-Neves. O mais tarde tornou-se um pouco mais cedo com essa proposta a meio de um ensaio e, em três anos, acabou por ganhar forma com um elenco em que encontramos Beatriz Frazão, Pedro Lacerda, José Leite, Joana Campelo ou Rafael Gomes, acompanhados por uma orquestra que acompanhará várias canções ao vivo.
Dirigidos por duas vozes, os actores foram alertados, desde o primeiro momento, para a possibilidade de receberem indicações de um que pudessem ser contrariadas pelo outro no espaço de poucas horas. E assim aconteceu, de facto, exigindo um diálogo constante para que estas situações não ficassem na sombra e pudessem ser discutidas de imediato – afastando equívocos ou até tomando-os como material de trabalho. Mas há ambiguidades que não interessa desfazer. Como a coexistência entre uma realidade fantasiosa e uma fantasia desabrida, surgidas como diferentes perspectivas possíveis sobre uma mesma situação: ou seja, podemos olhar para o palco e ver Alice deitada no chão, onde é projectada a toca do coelho por onde sabemos que ela cai desamparada; mas podemos também ver essa mesma imagem reflectida num espelho, o corpo de repente achatado em duas dimensões e a queda observada como se acontecesse numa tela de cinema.
Alice, “menina pespineta”, interessa-lhes igualmente enquanto “rapariguinha no século XIX, quando começam a surgir as grandes vozes das mulheres”. Alice, que observamos a crescer ou diminuir de acordo com regras exteriores (ditadas por alguém que não vemos) para poder avançar, é uma miúda de súbito investida de vontade política, acredita Maria João Luís. Naquilo que são os sintomas mais claros de uma tomada de posição perante o mundo: a possibilidade de falar o que pensa, sobretudo quando isso implica dizer "não".