António voltou a uma nova Lisboa, a mesma que expulsou Luís

Um voltou a Lisboa depois de seis anos como estrangeiro na Noruega. O outro teve de trocar a capital pela outra margem porque a cidade deixou de ter casa para ele. Duas histórias sobre quem chega para estar e quem vai mas quer ficar.

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Este é o segundo de uma série de artigos sobre pessoas que chegaram e saíram de cidades portuguesas durante o ano de 2018. Acompanhe o dossier O que chega e o que vai.

Será um lugar-comum dizer-se que as cidades são um bocadinho como as estações, onde vidas se repetem, cruzando-se os que chegam para ficar e os que vão mas querem voltar. É assim há mais ou menos meio ano na vida de Luís Oliveira, 27 anos, o para lá e para cá via ponte Vasco da Gama entre o trabalho no Prior Velho, às portas da capital, e a casa na Quinta do Anjo, em Palmela. Um algarvio apaixonado por Lisboa que acabou empurrado da capital para a outra margem do Tejo porque a cidade deixou de ter casa para ele.

As horas das despedidas acabam por ser também as dos encontros, de quem voltou, quem sabe, para sempre ficar. António Cartaxo, 38 anos, não ia à doca de Santo Amaro, “seguramente”, há quase 20 anos. Num dia gélido de Dezembro, ao pé do rio, recua à loucura dos tempos de estudante do Instituto Superior Técnico, quando ali esteve pela última vez.

Na sua cabeça, há uma pala sobre campos de padel e um elevador instalado num pilar da ponte a mais. Depois de seis anos fora, em Oslo, na Noruega, voltar a Lisboa é descobri-la outra vez. Voltou quando se começou a sentir estrangeiro na outra cidade. “Deu muito medo ir, mas deu também muito medo voltar”, diz. 

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António Cartaxo passou os últimos seis anos em Oslo. Voltou este ano e está a montar uma empresa de engenharia Daniel Rocha

António chegou. Luís partiu. Não se conhecem porque se desencontraram numa Lisboa que lhes é hoje estranha. Acabaram, com pouco mais de dez anos de diferença, por chegar à mesma cidade atrás dos sonhos e de um canudo. António saiu de Tomar para estudar Engenharia Mecânica. Luís trocou o Algarve pela capital por um curso em Administração Pública — "que acabou por não correr muito bem" —, para depois se lançar à comunicação social.

Depressa perceberam que era ali, em Lisboa, que acabariam por ficar. Havia emprego, casa e amor. Mas a cidade começou a não ser para eles, o país não lhes dava o que precisavam. 

A falta de reconhecimento, a instabilidade, mas também a falta de desafio remoíam. António casara-se em 2007. As duas licenciaturas e o mestrado da mulher não lhe garantiam um horário completo numa escola para dar aulas de História. Era preciso andar de lado para lado, em três, quatro escolas, para ter um salário decente.

Compraram uma casa no Alto de S. João. Uns dias depois, o Lehman Brothers, um dos maiores bancos de investimento americanos, falia. A crise, sorrateiramente, começou a estalar. Começava a ser altura de ponderar ir. 

António não pode dizer que quisesse ser emigrante. Aliás, António já tinha tentado sê-lo em 2006, quando arranjou trabalho em Zurique, na Suíça. “Viajei no dia 1 de Setembro de 2006 e voltei no mesmo dia”. Foi o emigrante “mais curto da história”, como diz. Pensou que nunca mais saía do país. 

Ainda antes de chegar “o ferro quente” da crise decidiram que era altura de sair. Foram a uma feira de emprego, onde estavam representados vários países da Europa. Um deles era a Noruega. E António conseguiu logo uma oferta. “Achava que era uma coisa excepcional”, diz.

Foi pensar um pouco, fazer as malas e ir. Os trabalhos não lhes enchiam as medidas, eram mal recompensados. E era também preciso ganhar mais mundo. Saíram de Lisboa num voo das sete da tarde e chegaram a Oslo já de noite. Da primeira vez que foram ao supermercado, começaram a olhar aos preços. “Onde é que eu me vim meter?”. Terá sido o primeiro momento em que se sentiu realmente estrangeiro numa cidade. “Senti-me tão pequenino naquele momento. Se calhar não fui feito para este mundo. Se calhar não vim preparado o suficiente para levar com esse choque”. Às vezes ainda não entende como foi possível passarem seis anos. 

A casa da outra margem  

Luís sempre morou em Lisboa. Primeiro a partilhar casa, depois com uma antiga namorada num tempo em que um T1 novo na rua Alexandre Herculano — uma perpendicular à Avenida da Liberdade — custava 400 euros. 

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Luís Oliveira atravessou a ponte para ir morar para Palmela. Diz-se um apaixonado por Lisboa e quer regressar assim que puder Nuno Ferreira Monteiro

Acabou por ter de sair daquela casa. O trabalho estava complicado e viu-se obrigado a voltar, em 2015, para o Algarve e para a casa dos pais. “Foi muito estranho, depois de seis, sete anos a viver sozinho, praticamente independente, voltar novamente para casa dos pais”, conta. 

Regressou à capital, um amigo cedeu-lhe o quarto porque também ele estava numa situação complicada perante a falta de emprego. Arranjou um T2 em Chelas, Marvila, por 600 euros, “um completo achado”, diz, onde ficou por um ano e meio. O senhorio acabou por querer renegociar a renda e Luís saiu. 

A namorada, Filipa, estava, na altura, também a dividir casa e apetecia-lhe sair da loucura de Lisboa. Fizeram as malas e atravessaram a ponte para ir viver para um anexo da casa dos pais da namorada, na Quinta do Anjo, em Palmela.

“Começamos a pensar que, se calhar, arrendar casa já não vale a pena porque o arrendamento está altíssimo. E para não termos uma casa que não tenha 30 metros quadrados teríamos de despender mais de metade dos nossos ordenados”, conta Luís. “Para duas pessoas em início de vida darem 10% de uma entrada de uma casa é completamente impossível. Se não tens alguém que possa chegar à frente com o dinheiro não tens solução”, lamenta.

Nunca teve carro em Lisboa e nunca sentiu falta dele. “Era menos um custo que tinha, menos uma despesa, menos uma preocupação”, nota. Hoje é impossível movimentar-se sem ser de carro. Ele trabalha no Prior Velho, Filipa em Miraflores. São obrigados a ter dois carros. Demoram entre 35 a 45 minutos a chegar a Lisboa, sempre pela auto-estrada.

Luís faz 90 quilómetros diários. Quando acontece ficar sem carro, demora quase três horas a chegar ao trabalho. É uma maratona, dada a quantidade de transportes que tem de apanhar: De casa apanha um autocarro até Palmela. Depois um de Palmela a Pinhal Novo e outro para Lisboa até ao Oriente, onde apanha Carris para o Prior Velho. No total, gasta 10 euros, praticamente o que gasta em combustível. 

Luís e Filipa mudaram-se no início do Verão. A ideia era que fosse por um período temporário, de “um, dois, três meses no máximo”. Não pagam renda. E o temporário está a tornar-se cada vez mais definitivo. A cada semana, a indecisão sobre o que fazer consome-os: ora voltar a Lisboa, ora continuar na margem Sul. Comprar casa ou arrendar. Já se torna difícil suportar o trânsito. Hoje a vida deles tem de ser muito mais planeada. Ir a Lisboa é um projecto muito bem desenhado: sair com tempo, a uma hora que dê para evitar trânsito, tanto para a ida como para a vinda, pensando já onde se pode estacionar o carro na congestionada capital.

“Sentimos falta das nossas raízes”

António acabou por ir ficando em Oslo. O trabalho era bom e certo, numa empresa reconhecida. O filho nasceu há dois anos e meio. Compraram um apartamento. “Isto é para ficar aqui para a vida”, pensou. 

Mas aquela ideia de ser emigrante, a vontade de voltar, o sentir-se cada vez mais estrangeiro na cidade começaram a matutar-lhe a cabeça. Ao mesmo tempo, sentia que os portugueses que também lá estavam “queriam era esquecer-se disto e não se envolver mais com o país”. “Aquilo não é o melhor dos mundos. Não posso dizer apenas que aquilo é fantástico, mas também não posso dizer que aquilo é o pior dos mundos”, nota. 

O que podia mantê-los lá, o filho, que teria acesso a um sistema de saúde e de educação dos melhores do mundo, acabou por ser também o motivo do regresso. “Há uma grande diferenciação entre as pessoas que são nativas e os que não são. Se eu tivesse ido hoje para lá, teria tido uma atitude completamente diferente. Fui para lá com uma atitude extremamente humilde”, diz. 

Era preciso ser mais pragmático, mais duro, no fundo. Essas diferenças nunca o incomodaram muito, até que começou a sentir uma distinção por causa do filho “não ser nativo norueguês”. A par disso, o miúdo falava constantemente nos primos e nos avós. Desde que ele nasceu, as malas estavam sempre feitas, Vinham oito, nove vezes a Portugal. “Sentimos falta das nossas raízes”. Até do Sol. “Para um português que está habituado a ir para a Costa da Caparica ao fim-de-semana passear no Inverno é complicado”, diz. A neve fechava-os muito tempo em casa. 

Por tudo isto decidiram voltar. Aterraram os três em Agosto e a vida, hoje, “é muito mais leve”. Arrepiou-se quando voltou para ficar. O plano não era ficar pela capital, mas sim em Tomar, onde já estavam a recuperar uma casa. Mas a mulher, professora de História, acabou por ficar colocada numa escola em Lisboa, depois de tantos anos fora do ensino e mudaram-se novamente para Lisboa.

Hoje é tudo novo. Há ruas novas e outras onde o carro agora não entra, ou se circula ao contrário. O metro expandiu-se, o Terreiro do Paço tem uma cara lavada, o Saldanha tem mais espaço verde, e a Avenida da República tem árvores no meio, só para dar alguns exemplos. 

A cidade está mais bonita, diz, mas andar de um lado para o outro é mais difícil. Assim como o estacionamento: há menos e é mas caro. E é difícil ignorar a quantidade de pessoas que anda nas ruas. “Acho muito bem que se venda a cidade para fora, que se ganhem prémios”, só que ainda assim, diz António, é preciso evitar “erros políticos” e continuar a assegurar que as pessoas “podem continuar a viver [na cidade]”. 

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Daniel Rocha

"Tenho esperança de voltar"

Luís sente isso na pele, como se não houvesse lugar para ele numa cidade que está “definitivamente na moda”. 

Para António, as coisas têm estado a correr bem. O filho já não fica agarrado em casa ao tablet e brinca na rua sem serem precisos aqueles casacos todos, gorros e cachecóis. No ano passado, António lançou-se a abrir uma empresa de engenharia em Portugal. Em Março, começou a ter os primeiros projectos e isso também pesou na decisão pelo regresso. 

“Estou muito feliz”, confessa. Estar emigrado, diz, “obriga a fazer grandes sacrifícios”. E voltar não é fácil. Esses anos fora de casa deram-lhe parte do mundo que procurava. “Olho para trás e emociono-me porque vejo que a pessoa que foi não é a mesma que voltou. Éramos dois parolos, vínhamos da província. E agora olho para trás e vejo a pessoa em que me tornei…”, diz com os olhos cheios de Tejo. 

Se lhe deu muito medo ir embora, também deu medo voltar. Quando se despediu dos colegas escreveu-lhes uma carta com uns versos dos Pink Floyd: 

And then, one day, you find
Ten years have got behind you
No one told you when to run
You missed the starting gun

“Quando dás conta, passaram-se dez anos por ti e ninguém disse quando é que te devias mexer. Ninguém te vai dizer quando vais ter de tomar a decisão se não fores tu próprio a tomá-la”, diz.

Se para António este regresso foi uma escolha, para Luís a ida foi uma imposição. “Eu sou completamente apaixonado por esta cidade. Sempre quis morar aqui. Tenho esperança de voltar”. Enquanto isso, espera que a cidade volte a dar-lhe o seu lugar.