A Floresta Amazónica vai se tornar uma commodity?
Construção de megaempreendimento para exportação de soja na Amazónia coloca em perigo comunidades, povos tradicionais e meio ambiente.
Há quase dois séculos, os naturalistas e exploradores britânicos Henry Walter Bates e Alfred Russel Wallace passaram cerca de três anos estudando animais e insetos na região do Lago do Maicá, no município de Santarém, em plena Amazónia Legal. Apesar das dificuldades, a dupla celebrou o que chamaram de “floresta gloriosa”. Estima-se que ao final da empreitada de três anos, eles tenham coletado mais de 14.000 espécies, que fizeram parte de um amplo estudo, que serviu de base para The Naturalist on the River Amazon, considerado um clássico de Bates.
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Há quase dois séculos, os naturalistas e exploradores britânicos Henry Walter Bates e Alfred Russel Wallace passaram cerca de três anos estudando animais e insetos na região do Lago do Maicá, no município de Santarém, em plena Amazónia Legal. Apesar das dificuldades, a dupla celebrou o que chamaram de “floresta gloriosa”. Estima-se que ao final da empreitada de três anos, eles tenham coletado mais de 14.000 espécies, que fizeram parte de um amplo estudo, que serviu de base para The Naturalist on the River Amazon, considerado um clássico de Bates.
Assim, o que diriam os naturalistas da decisão da Câmara de Vereadores de Santarém que possibilita a transformação de parte do lago em um porto privado para escoamento de soja?
Hoje podemos apenas imaginar. Contudo, durante a última sessão da Câmara de Vereadores do município de Santarém, em 11 de dezembro, os representantes do legislativo alteraram, de forma secreta e apressada, a revisão final do Plano Diretor Participativo (PDP), documento jurídico regido pelo Estatuto da Cidade e aprovado pela sociedade civil santarena de forma participativa em novembro de 2017. A decisão relâmpago visa facilitar a construção de complexos portuários para o transporte do grão através do Lago do Maicá.
A decisão invalida meses de discussões em grupos de trabalho e audiências com representantes dos mais diferentes setores — empresariais, acadêmicos, entes públicos e organizações sociais. Viola a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A reunião do plenário que alterou do Plano Diretor Participativo pegou populações tradicionais, moradores e movimentos sociais em Santarém e da Amazónia de surpresa.
A construção desse grande porto será na região do Lago do Maicá, área de elevada complexidade ambiental e lar de comunidades tradicionais, pescadores e cerca de 400 famílias quilombolas, totalizando aproximadamente 1.500 famílias na região. Maicá é um santuário ecológico, berçário natural de espécies únicas da fauna aquática e aves amazônicas. Além de ser um polo de visitação turística, é fonte de renda para as famílias que vivem primariamente da pesca, responsáveis por 30% do abastecimento de peixe da cidade.
Para a arqueóloga Anne Rapp Py-Daniel da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), “o Lago do Maicá é um ecossistema extremamente rico, mas também muito frágil e com uma grande dinâmica de formação (terras caídas, terras em formação, aberturas de furos, etc.). A presença de grandes navios provocará importantes deslocamentos de água, alterando a dinâmica das correntes fluviais, com risco de destruição acelerada das várzeas mais baixas, onde moram muitas comunidades tradicionais. Acompanhamentos já foram realizados no rio Madeira, outra região de várzea, mostrando o impacto das balsas e navios. Além disso, a região do Maicá é extremamente importante para a arqueologia, pois abriga o sítio arqueológico mais antigo conhecido do município, o Sambaqui de Taperinha, de 8 mil anos. Também temos um grande número de sítios mais recentes (que possuem entre 500 e 2 mil anos) que ainda estão sendo mapeados, muitos deles identificados pelas manchas de Terra Preta. Na área mais alta ainda temos presença de comunidades indígenas. A história dessa região não para por aí, ocupações quilombolas estão presentes desde o século XIX, com a adição de nove territórios reconhecidos pela Fundação Cultural Palmares na margem do Maicá/Ituqui”.
Séculos de história
Santarém é uma das cidades mais antigas do interior da Amazónia. Localizada diante do encontro das águas dos rios Tapajós e Amazonas, foi fundada pelos padres jesuítas, em 1661, durante o processo de colonização portuguesa na região. Desde então, Santarém tem sido um polo estratégico, começando pela produção do cacau, pecuária, extrativismo, borracha, juta e atualmente a monocultura da soja. Localizada a 475 milhas do Oceano Atlântico, sua posição geográfica é estratégica para o escoamento da produção de soja, seja pela rodovia BR-163, pela hidrovia do Tapajós ou pelo Rio Amazonas chegando ao Atlântico.
A construção da zona portuária na região do Lago do Maicá faz parte da estratégia das empresas e produtores de soja da região para o escoamento do grão oriundo do Mato Grosso pela região Norte do país, precisamente através do eixo Tapajós-Teles Pires.
Pedro Martins, da organização de direitos humanos Terra de Direitos, observa que “os proprietários de soja começam a aparecer num processo de usurpação das terras dos camponeses. Esses proprietários, geralmente vindos de outros estados, iniciam cultivos extensos na região do Planalto de Santarém. A Embraps surge nesse contexto, a partir de proprietários de soja na região do Mato Grosso que tem como interesse o escoamento da soja produzida em Santarém, mas que também vê um potencial lucrativo enorme na construção de portos”, afirma Pedro Martins à Terra de Direitos.
Para o padre e ativista amazônico, Edilberto Sena, o processo tem início quando a Cargill, uma multinacional, empreendeu esforços na construção de um terminal portuário em 1999.
“A companhia viu que Santarém era um local estratégico para baratear a exportação da soja do Centro-Oeste brasileiro. Políticos locais e até parte da sociedade acreditaram que o porto da multinacional traria emprego, renda e desenvolvimento. Mas foi uma armadilha, com impactos negativos para a população. Os moradores dos bairros periféricos – Pérola do Maicá, Área Verde, Jaderlândia, Jutaí e mais cinco outros – precisarão lidar com uma grande avenida. Com capacidade de tráfego de 800 carretas por dia, pode-se imaginar os acidentes e outros problemas diários. Se essas populações não se organizarem, se nós não estivermos junto com elas na resistência, a destruição de nossa cidade vai se agravar, porque as autoridades não estão nem aí para o respeito às vidas humanas. Esse porto da Embraps na Área de Proteção Ambiental (APA) do Lago do Maicá pode ser útil para os empresários, mas trará graves prejuízos para o ambiente e para os moradores de Santarém, como já acontece com o porto da Cargill”, sinaliza o ativista.
Três empresas visam construir empreendimentos portuários no município: o Grupo Cevital, da Argélia, a empresa CEAGRO e a Embraps. O caso da empresa Embraps é significativo, pois seu licenciamento ambiental foi suspenso pela Secretaria de Meio Ambiente do Estado do Pará após ação judicial. A petição partiu dos povos e comunidades tradicionais que vivem na região do Lago do Maicá junto ao Ministério Público Federal (MPF) e ao Ministério Público Estadual (MPE), que ajuizaram uma Ação Civil Pública contra as ações da Embraps. Na ação foi concedida liminar suspendendo o processo de licenciamento ambiental do Terminal de Uso Privado da Embraps até que fosse realizada a consulta prévia, livre e informada às comunidades quilombolas e demais povos e comunidades tradicionais que serão atingidos pelo empreendimento. A empresa recorreu da decisão no Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) a liminar foi mantida e o licenciamento ambiental do porto permanece suspenso.
A Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA) produziu um Relatório Técnico a partir das fragilidades detectadas no Estudo de Impacto Ambiental (EIA) da Estação de Transbordo do Lago do Maicá, apresentado pela Empresa Brasileira de Portos (Embraps). Contrariando o estudo da Embraps a equipe multidisciplinar da UFOPA demonstra os danos ambientais, arqueológicos e humanos, que, se não forem sanados, colocarão em risco as populações de peixes e fitoplânctons do Lago do Maicá, com danos irreversíveis à vida dos humanos e não humanos da região.
Para o professor do Instituto de Biodiversidade e Floresta (Ibef/Ufopa), Jackson Rêgo Matos, “nossa grande preocupação com a construção do porto não é só com o Lago Maicá, mas com toda a cidade de Santarém e região do Rio Tapajós. Essas áreas, incluindo a praia de Alter do Chão, terão suas paisagens afetadas, tanto pela passagem de caminhões circulando por toda a cidade quanto pelo tráfego de comboios de balsas. Essa logística, certamente, acarretará em mais poluição atmosférica, visual, sonora, além da perda do patrimônio arqueológico, sendo Santarém a cidade mais antiga pré-colonial do Brasil, a qual abriga um dos mais expressivos sítios arqueológicos das Américas. Ressalta-se que a bacia do Tapajós é a quinta maior bacia tributária da Amazónia e abrange aproximadamente 492.000 km2, o que, por si só, justificam políticas públicas que garantam a manutenção desse patrimônio para usufruto de suas populações, e não somente dar segurança jurídica aos empreendedores, como alega o prefeito, Nélio Aguiar, para justificar o desrespeito dos vereadores aos trâmites constitucionais do plano diretor construído com a participação popular” explica Rêgo Matos.
Vozes autônomas
Como bem aponta a reportagem do jornal Brasil de Fato, o modo de vida das comunidades do Maicá está em risco por um desejo alheio às necessidades delas: a busca por um caminho mais curto para a soja brasileira sair do país. Com a construção do porto, seria possível diminuir em cerca de 800 quilômetros o trajeto dos grãos que saem do Mato Grosso por rodovias e, atualmente, necessitam passar pelo Porto de Santos. O Porto do Maicá, em Santarém, encurtaria em sete dias o tempo que os navios levam para chegar à Europa. No entanto, a voz das populações locais precisa ser ouvida, de acordo com Mário Pantoja, liderança quilombola santarena.
“Os grandes beneficiados com a construção do porto são exatamente os grandes empresários. Não estamos impedindo o progresso, estamos ajudando no desenvolvimento de forma sustentável. Por quê? Porque a gente trabalha com a pesca. Construído o porto, isso aqui vai acabar” alerta.
Essa dinâmica ultrapassada de progresso vai na contramão do que o mundo tem discutido, fato muito bem posicionado pelo ativista ambiental, Padre Guilherme Cardona, ao afirmar que “esse modelo de desenvolvimento está criando cidades insustentáveis, e uma dinâmica que se tem hoje em todo o mundo, é a de como criar cidades sustentáveis para que a população e o desenvolvimento possam caminhar juntos”.
Apesar de serem defendidos como obras para desenvolvimento da região, os projetos dos portos atingem nove bairros da cidade, habitados por comunidades tradicionais que se estabeleceram forçadamente na área urbana após uma série de deslocamentos devido à ausência de políticas públicas. A construção do porto, além de não ser aceita, compromete a própria sobrevivência das pessoas. Dona Sebastiana, pescadora no Lago do Maicá, é enfática: “Ninguém concorda com isso [a criação do porto]. Porque a gente precisa do Lago. Porque daqui mais uns tempos você não tem mais o peixe pra pegar, porque isso aqui vai ser aterrado e os peixes vão sumir daqui”. O mesmo questionamento faz o quilombola João Lira. “A pergunta é: por que um porto na área do Maicá? Pra quem vai trazer benefícios? Pro povo da região? Eu creio em nenhum benefício; benefício zero”.
O padre Edilberto Sena acredita ser crucial pensar o futuro da Região Amazônica diante do quadro de ameaças ambientais, sociais e culturais com que a região se depara em face da pressão virulenta do capital externo.
“A disputa pelo território (terra, floresta, rios, subsolo e povos) está cada vez mais agressiva. Nossa região, Oeste do Pará, é um exemplo do que ocorre em toda a Amazónia. São 70 mil hectares de invasão do plantio de soja com intenso uso de agrotóxicos; a invasão de portos graneleiros para exportação de soja do Mato Grosso. Existem 23 portos, construídos e em construção, no rio Tapajós; uma ferrovia de 930 kms de extensão entre Cuiabá e Miritituba; e sete hidroelétricas previstas no rio Tapajós. Por fim a cidade de Santarém, centro de toda essa exploração, está sendo ocupada por prédios de 20 andares que empurram os moradores do centro para periferias, inchando uma cidade que hoje tem 300 mil habitantes”, afirma Sena.
Até quando o poder econômico vai corromper os poderes executivo e legislativo para burlar leis internacionais em prol de uma insignificante parcela de acionistas que não respeita os biomas e povos amazônicos? Até quando a Floresta amazônica ficará a mercê de vereadores, políticos e empresários que formulam leis na calada da noite para prejudicar o social, agredindo comunidades, povos tradicionais e o meio ambiente, com a devastação em prol da monocultura tóxica da soja, com a desculpa de equilibrar a balança comercial nacional?
Certamente Bates e Wallace não aprovariam a decisão tomada pela Câmara de vereadores de Santarém, como bem disse Henry Bates depois de passar 11 anos documentando a beleza dos trópicos: “Fui obrigado, por fim, a concluir que a contemplação da natureza não basta para o coração e mente humanos”. Ou como diria o escritor Brasileiro Euclides da Cunha, ao descrever a região durante sua visita em 1905, “A Amazónia é a última página, ainda a escrever-se, do Gênesis”.
Se depender dos vereadores santarenos, os últimos redutos da biodiversidade mundial ficarão escritos nos registros dos livros de ciências naturais de Bates e Wallace, incorporados nas prateleiras dos livros de história como um passado que não existe mais.
Marcos Colón é Professor Assistente (TA) no Departamento de Português e Espanhol e membro do Center for Culture, History and Environment (CHE) do Nelson Institute for Environmental Studies, da Universidade de Wisconsin-Madison; é também diretor e produtor do documentário Beyond Fordlândia: An Environmental Account of Henry Ford’s Adventure in the Amazon.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico