Secretário da Defesa dos EUA apresenta demissão e pede "respeito" pelos aliados

Depois do anúncio da retirada das tropas norte-americanas da Síria, o general sai da Casa Branca em confronto com a visão do Presidente Donald Trump sobre as relações internacionais.

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Jim Mattis sai no final de Fevereiro de 2019 Reuters/Eric Vidal

O secretário da Defesa dos EUA, Jim Mattis, apresentou a sua demissão por discordar da decisão do Presidente Trump de retirar as tropas norte-americanas da Síria. Na carta de demissão, o general na reforma deixa claro que tem uma visão do mundo, e das relações com os aliados dos EUA, diferente da que é defendida por Trump.

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O secretário da Defesa dos EUA, Jim Mattis, apresentou a sua demissão por discordar da decisão do Presidente Trump de retirar as tropas norte-americanas da Síria. Na carta de demissão, o general na reforma deixa claro que tem uma visão do mundo, e das relações com os aliados dos EUA, diferente da que é defendida por Trump.

Mattis é visto como a última das figuras da Casa Branca alinhadas com a estratégia de relações internacionais que tem sido seguida pelos EUA desde a II Guerra Mundial, e um elemento que dava alguma estabilidade à forma como o Presidente Trump se relaciona com os seus aliados.

A saída do general está marcada para 28 de Fevereiro de 2019, para que o Presidente norte-americano tenha tempo para nomear um sucessor e garantir a sua confirmação pelo Senado, disse Mattis.

Na carta, o general Mattis começa por dizer que se orgulha dos "progressos" que diz terem sido feitos desde que a Administração Trump entrou em funções, a 20 de Janeiro de 2017: "Melhorar o orçamento do departamento [de Defesa], melhorar a prontidão e letalidade das nossas forças e reformar as práticas comerciais do departamento."

Mas o essencial da carta de Jim Mattis equivale a uma completa negação da política seguida pelo Presidente Trump em relação aos aliados dos EUA – e a gota de água foi o anúncio da retirada total das tropas norte-americanas da Síria, anunciada na quarta-feira. Esta sexta-feira, soube-se que o Presidente Trump está a planear a retirada de pelo menos cinco mil das 14 mil tropas norte-americanas no Afeganistão, uma decisão que o general Mattis também contestava.

"Uma certeza central que eu sempre acreditei ter é a de que a nossa força como nação está inextricavelmente ligada ao nosso único e abrangente sistema de alianças e parcerias. Apesar de os EUA continuarem a ser a nação indispensável no mundo livre, não podemos proteger os nossos interesses nem cumprir o nosso papel com eficácia sem mantermos alianças fortes e sem mostrarmos respeito por esses aliados", disse o secretário da Defesa norte-americano.

Jim Mattis aponta o dedo especificamente à China e à Rússia, dois países que "querem moldar o mundo a partir dos seus modelos autoritários", e em relação aos quais os EUA devem ser "resolutos e inequívocos na sua abordagem".

Antes da divulgação da carta de Jim Mattis, o Presidente Trump anunciou a saída do secretário da Defesa no Twitter. Nessa mensagem, Trump abordou a questão dos aliados – para dizer que Mattis o ajudou a fazer com que esses aliados pagassem "a sua parte" pela colaboração militar.

"Durante o mandato do Jim, foram feitos grandes progressos em relação à compra de equipamento de combate. O general Mattis ajudou-me muito a fazer com que os aliados e outros países pagassem a sua parte nas obrigações militares", disse o Presidente dos EUA.

Profunda divisão

Segundo os media norte-americanos, o secretário da Defesa chegou à Casa Branca na quinta-feira com a carta de demissão já escrita, mas antes de a entregar ainda tentou, mais uma vez, convencer o Presidente Trump a voltar atrás na decisão de retirar as cerca de duas mil tropas norte-americanas da Síria.

Perante a intransigência do Presidente, Jim Mattis regressou ao Pentágono e mandou imprimir 50 cópias da carta de demissão, que foram depois distribuídas no edifício, segundo o New York Times. O facto de Mattis ter mandado imprimir as cópias no seu departamento – não deixando a Casa Branca tratar disso, como é habitual – é mais um indicador da profunda divisão que existe entre ele e o Presidente Trump.

Nessa carta, Mattis recorda a resposta dos aliados norte-americanos aos ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001 para dizer que esses aliados "devem ser tratados com respeito".

"Tal como o senhor, eu tenho dito desde o início que as Forças Armadas dos EUA não devem ser o polícia do mundo. Em vez disso, devemos usar todas as ferramentas do poder americano para promovermos a defesa comum, incluindo uma liderança eficaz para os nossos aliados. As 29 democracias da NATO demonstraram essa força no seu empenho em combaterem connosco após o ataque do 11 de Setembro contra a América. A coligação de 74 nações para derrotar o ISIS [Daesh] é outra prova disso."

A saída anunciada de Jim Mattis segue-se ao afastamento, no início do mês, do chefe de gabinete do Presidente, John Kelly.

Mattis e Kelly, ambos generais na reforma, partilham uma visão do mundo em que a fidelidade para com os aliados dos EUA é essencial. Uma visão que colide com a estratégia "America first" do Presidente Trump, que tem levado a Casa Branca a iniciar discussões públicas com líderes de países aliados, tanto na NATO como em outro tipo de acordos internacionais.

Com Mattis e Kelly de fora, o cumprimento da visão do Presidente Trump para os EUA e para o mundo fica entregue ao secretário de Estado, Mike Pompeo, e ao conselheiro de Segurança Nacional, John Bolton – conhecido pelas duras críticas às organizações internacionais, em particular as Nações Unidas.

Demissão histórica

"É um grande acontecimento histórico", disse o historiador Michael Beschloss em declarações ao canal NBC. "Nunca tínhamos visto um secretário da Defesa a dizer que está tão preocupado com as ideias do Presidente, e com a sua política de segurança nacional, que não pode continuar a fazer parte da Casa Branca", disse Beschloss.

Há quase 40 anos que não havia uma cisão pública desta dimensão na Casa Branca entre um Presidente e um responsável por um dos principais departamentos, por causa de uma questão de segurança nacional.

Em 1980, o então secretário de Estado Cyrus Vance saiu da Casa Branca em rota de colisão com o Presidente Jimmy Carter por causa da questão dos reféns norte-americanos no Irão. Nessa altura, a Casa Branca aprovou uma operação militar para resgatar os reféns, que acabou por fracassar, e Vance demitiu-se por ter sido mantido à margem dos preparativos e por defender uma solução diplomática.

As demissões de figuras importantes na Casa Branca, como os secretários de Estado e da Defesa, são raras – ainda mais quando os motivos dizem respeito a questões de segurança nacional.

Antes da saída de Cyrus Vance em 1980, apenas dois secretários de Estado tinham apresentado a demissão: Lewis Cass, em 1860 (antes da Guerra Civil americana); e William Jennings Bryan, em 1915 (antes da entrada dos EUA na Grande Guerra).