Marlene Monteiro Freitas ganhou um leão com asas mas não vai deixar de ir à caça
Quando o Leão de Prata da Bienal de Veneza (o primeiro de sempre para a dança portuguesa) lhe chegou às mãos, em Junho, já tinha estreado uma peça em Israel que foi toda uma educação política (além de coreográfica). A carreira promete prosseguir, fulgurante, para esta coreógrafa cujas peças têm a potência avassaladora, tão próxima da vida quanto da morte, dos Carnavais de São Vicente.
Não a vimos muito por cá em 2018, mas foi por boas razões: Marlene Monteiro Freitas passou metade do ano em Tel Aviv a resolver o quebra-cabeças (para ela inédito) de criar uma peça para uma companhia estabelecida, a Batsheva, isto enquanto media cada passo que dava no campo minado do conflito israelo-palestiniano; e a outra metade a mostrar trabalhos anteriores como Guintche (2010), Jaguar (2015) ou Bacantes – Prelúdio para uma Purga (2017) num território que já domina, o circuito internacional. Exactamente a meio, em Junho, marcando um antes e um depois pelo menos simbólico – porque não o vê a afectar assim tanto o que fará a seguir –, recebeu das mãos de Marie Chouinard (e ao lado de Meg Stuart) o Leão de Prata da Bienal de Veneza, o primeiro de sempre para a dança portuguesa. Sempre em trânsito – por estes dias, entre Estrasburgo, Lisboa e Munique –, não foi fácil apanhar a mais selvagem das nossas coreógrafas, corpo de transformista, cabeça em mise en abîme, o killer-instinct de uma caçadora, para esta entrevista. Nisso, 2018 não foi um ano assim tão excepcional: em 2019 e 2020 continuaremos a ter saudades de a ver por cá.
O que é que se faz com um Leão de Prata de Veneza? Literalmente: onde é que ele está?
(Risos) Ficou muito tempo guardado numa caixa. Agora está visível, numa estante. Mas demorou a sair da caixa, não sei porquê. E não fui eu que o tirei (risos).
Ser oficialmente consagrada como “um dos melhores talentos da sua geração” mexe com a cabeça de um artista?
Um Leão de Prata de Veneza é aquele tipo de coisa que nunca imaginamos que vai acontecer: não é um prémio que se espere. Não me passava pela cabeça sequer que do facto de o Bacantes ter sido selecionado para o programa da Bienal de Dança resultasse uma distinção. É um marco importante, uma razão para celebrar, mas fundamentalmente acho que não muda nada: não muda a minha relação com o trabalho ou com os meus colaboradores, não muda os projectos que penso realizar. Conseguir fazer um projecto é um passo importantíssimo, traz tanta felicidade quanto uma distinção destas. O que é possível – e vejo isto com outra nitidez agora, porque depois de Veneza já estive em Cabo Verde [De Marfim e Carne – As Estátuas Também Sofrem abriu em Novembro o festival Mindelact] – é que este prémio abra uma possibilidade: para um jovem cabo-verdiano ter um percurso como o meu deixou de ser irreal. Cabo Verde é um país com poucos meios, onde não há uma formação artística convencional (sou um exemplo disso, tive de sair para passar por uma escola de dança)… O mediatismo do Leão de Prata, a recepção que ele teve por parte dos poderes políticos, a possibilidade de o Governo concluir que é necessário um investimento nas áreas artísticas: isso sim, pode dar uma forma valiosa a este prémio.
O facto de o prémio ter sido proposto pela Marie Chouinard – que, embora numa direcção radicalmente diferente, também trabalha o corpo a partir da deformação e da mitologia clássica, dois tópicos seus – tem alguma importância simbólica? O trabalho dela faz parte da sua genealogia, ou é absurdo pôr as coisas nesses termos?
Não é absurdo. Eu conhecia o trabalho da Marie Chouinard das aulas da história de dança, tem todo esse peso (risos)! E mais tarde, quando acabei a minha formação na P.A.R.T.S. e tive um programa comunitário na Cova da Moura [Não vamos ter aulas de dança, vamos ensaiar], fui com alguns jovens do bairro ver uma peça dela ao Centro Cultural de Belém: o impacto daquelas imagens foi extraordinário. Mas a minha história pessoal com a Marie Chouinard começa em 2012, quando levámos a Montréal o (M)imosa / Twenty Looks or Paris is Burning at the Judson Church [co-criação de Marlene Monteiro Freitas com François Chaignaud, Cecilia Bengolea e Trajal Harrell] e ela foi ver a peça. Foi por essa altura que me disse que se eu quisesse fazer parte da companhia dela podia ir quando quisesse (risos). Eu não tinha nada a ver com aquilo, acho que no fundo ela sabia que eu nunca iria (risos)! A verdade é que não nos encontrámos estes anos todos. Se há uma genealogia… certamente que eu venho de algum sítio. Mas posso encaixar-me em várias histórias da dança, não consigo escolher apenas uma parte dessa história. A questão das influências é sempre muito difícil para mim. Gosto de muitas coisas – e não digo isto por disparate. Tanto me sinto próxima de um instante de uma peça como de um instante de um filme ou de uma música; informam o meu trabalho de igual forma. Não posso afirmar descendência directa de uma linha ou de uma forma de fazer específica.
Então que genealogia é relevante?
O meu avô [Jorge Monteiro, conhecido como Jotamont] era compositor, tenho uma tia que veio muito nova para Portugal estudar música… Mas são coisas infinitas. O meu pai não tinha nenhum talento artístico (até tinha: conseguia construir coisas com as mãos…) mas tinha uma imaginação tão livre que ainda hoje é recordado por isso. A capacidade dele para criar uma realidade paralela e fazer-te vaguear dentro desse mundo era um talento muito presente, muito forte: eu cresci a ver e a sentir coisas que não existem. A minha mãe tinha uma relação com a música também, mas mais espontânea: tocava muito o piano lá de casa. E adorava dançar: era a melhor bailarina nas festas, lembro-me de ouvir as pessoas dizerem “esta música, vou ter de dançá-la com a Neuza”. A minha irmã, dez anos mais velha, com quem partilhava o quarto, tinha dois posters enormes com uma bailarina clássica, bailarinas nas capas dos cadernos… E tinha um livro, O Mundo do Ballet¸que eu acabei por herdar; muitos anos mais tarde, vim a descobrir que a minha imagem preferida, um homem todo pintado, a segurar um arco, era um bailarino do Béjart…
Sempre dancei muito com a minha irmã em frente ao espelho, depois comecei a fazer ginástica rítmica. Mas não gostava das competições – e a partir de determinado nível tornou-se uma prática muito solitária. Nessa altura já coreografava: escolhia uma música e um figurino, treinava os passos. Fiz a minha primeira coreografia – não sei se posso dizer isto (risos) – aos seis anos, com uma amiga, para uma festa na rua: com o La isla bonita, da Madonna. Depois tive um grupo de dança com amigos, criávamos números para festas da escola, concursos de misses… Mas o meu primeiro contacto com a improvisação foi em casa de um músico, o Vasco Martins, teria eu uns 14 anos: estava sozinha num quarto, no outro uma data de músicos importantíssimos, e ele pediu-me que os ouvisse e fizesse o que me viesse à cabeça (risos). Acho que para mim tudo começou nesse quarto. Sempre gostei mais de trabalhar quando não está ninguém a ver.
E houve o encontro com a Clara Andermatt…
Que foi uma sorte. Eu não estava inscrita no workshop, mas ela viu-me tão interessada que disse que eu podia ir. Quando vi o resultado final, fiquei mesmo com vontade de fazer. Até aí eu sabia e não sabia. Também gostava muito de psiquiatria, mas o que me interessava na psiquiatria era a mente, e ter de passar pela medicina toda afastou-me. Acabei por ir para a dança, coisa ainda mais obscura (risos).
A declaração do júri da Bienal de Veneza descrevia o seu trabalho a partir de expressões como “híbrido”, “metamorfose” e “deformação”. Reconheceu-se?
Em parte. Também porque prezo muito a ideia de que as pessoas podem falar do meu trabalho à sua maneira. Eu trabalho justamente para que o espectáculo permita que as pessoas projectem ali a sua imaginação. Não tento controlar o que se diz sobre o meu trabalho; às vezes eu própria digo asneiras… Sim, o meu trabalho é sempre sobre o híbrido, a metamorfose, a intensidade, mas também é sempre mais do que isso. E quando eu falo do híbrido, não se trata de perseguir uma criatura estranha com asas – como o Leão de Veneza –, mas da possibilidade de colocar umas coisas ao lado das outras, coisas que não imaginarias juntas, para ver o que resulta a partir daí. O espectáculo tem a sua forma, tem princípio, meio e fim, tem um nome, tem uma estrutura que foi ensaiada, controlada… mas é uma entidade viva: só fala pela boca do público, só vê pelos olhos do público. Mesmo que para mim, antes, durante e depois disso, esteja o prazer de dançar, o prazer físico de procurar no corpo a dança específica de cada trabalho. E um brincar com os materiais e os códigos de cada espectáculo. Trata-se sempre de coleccionar coisas e experimentar o que vai acontecer a este corpo, nesta peça: é tão básico quanto isso. Mesmo quando eu não entro, como na peça mais recente: dançava com os bailarinos todos os dias. Não passo sem isso, tenho de pôr o corpo no centro.
Mas há a tal fase em que está sozinha a acumular referências.
Não são processos separados, um alimenta o outro. Às vezes parece que eu parto de uma ideia central para coisas muito periféricas, mas isso acontece com o corpo também. As referências que vou encontrando informam o que faço com o corpo, o que faço com o corpo leva-me à procura de referências: há um ir e vir muito conectado.
E a música está lá sempre.
Eu muito rapidamente sou alterada pela música, influencia-me tremendamente, é automático. Desde miúda. Quando fazia os meus esquemas para a ginástica, ia à rádio de São Vicente procurar músicas que não conhecia. Ainda faço isso. E em todas as direcções: o meu gosto musical é muito ecléctico. Mas isso também acontece com os filmes, com a pintura: o que me toca não é a forma, é a intensidade.
O júri do prémio também fazia outra referência que se tornou um lugar-comum: o Carnaval de São Vicente. É mesmo essa a raiz do prazer da metamorfose e da deformação até ao limite do esteticamente incorrecto?
É. Esse jogo do tornares-te qualquer coisa, do tornares-te outro, a permissão de uma certa desordem, ou da coabitação da desordem com a ordem, da fealdade com a beleza… Em pequena eu adorava ficar a ver os homens que comiam babosa [aloé vera], aquela textura como ranho na boca: era impressionantemente feio e ao mesmo tempo fascinante. Essa passagem de um estado ao outro, de um ritmo ao outro, é uma coisa que me fascina muito, pelo movimento que permite: um riso que se torna um grito, uns olhos desvairados que se tornam tristes. A tensão entre extremos, entre opostos, tem uma fragilidade qualquer.
E essa experiência continua impressa mesmo passados… quando foi o seu último Carnaval em São Vicente?
Há demasiado tempo. Queria ir este ano, mas não consegui ter duas semanas de paragem – porque há uma coisa que as pessoas aqui não percebem, o Carnaval em São Vicente não são só uns dias. Mas estive no fim de ano. Fala-se muito do Carnaval, mas também há o fim do ano, as festas do São João, fortíssimas, cheias de álcool, de terra, de dança, de música – sempre tomei parte, mesmo que acontecessem à noite e não fossem propriamente feitas para crianças… É difícil explicar, mas não é só o dia da festa, são os dias a fio a imaginar a roupa e as horas que passas no costureiro, que afinal não tem tempo e às tantas, quando vais lá no último dia para os acabamentos, tem mil pessoas à espera, e já tens as lantejoulas coladas e o cortejo já está na rua, e aquilo vai tudo mal mas é incrível na mesma.
No primeiro dia de Janeiro, a banda (que dantes era dirigida pelo meu avô) vai pelas ruas a tocar sempre a mesma música horas e horas e horas – ninguém se cansa. Acompanhas a banda, a música é feliz, mas entras em casa das pessoas e sabes – porque numa ilha toda a gente se conhece – que no ano que passou esta família perdeu alguém, que naquela casa há alguém que está nos últimos dias, que na outra nasceu um bebé: tudo ganha uma potência desmedida. O cortejo cruza-se com as pessoas que saem das festas e que se puseram bonitas mas já não estão tão bonitas porque beberam, porque perderam um brinco, porque vêm com os sapatos nas mãos… Não há como isto não ficar contigo para sempre. E outra coisa de lá que ficou comigo: a relação entre a morte e a vida, que é muito diferente.
Também coabitam?
Em Cabo Verde a morte vê-se. O cortejo fúnebre é uma coisa muito presente, faz parte da vida. Mas é claro que só dei conta disso quando saí.
Portugal foi um choque?
O choque mais radical que se possa imaginar. Foi doloroso, em todos os aspectos. Porque parece um sítio familiar, de tão presente que está no imaginário cabo-verdiano – só quando chegas é que percebes a distância que há. No meu caso a própria relação com o que vim cá fazer – a formação na Escola Superior de Dança – não foi pacífica. Estava habituada a um ritmo de trabalho muito intenso, mesmo que a um nível amador, e na escola o corpo não estava assim tanto em movimento. Achei tudo muito pouco. Mesmo que eu já soubesse - talvez por vir de outro contexto – que a escola não era o sítio onde eu ia encontrar tudo, o onde eu ia estar 100% satisfeita. Só estou 100% satisfeita no palco.
Mas não ficou 100% satisfeita como bailarina, também quis coreografar…
Eu encontro muita satisfação como bailarina; é outra forma de fazer as coisas. E durante muito tempo, mesmo quando já trabalhava mais como coreógrafa, tentei arranjar tempo para isso – já não tento.
Quando foi a última vez?
Acho que foi com o Boris [Charmatz, Tout Cunnigham, 2008]… ou talvez tenha sido com a Emmanuelle Huynh [Cribles, 2009]... Ou o trio com a Tânia [Carvalho, O Reverso das Palavras, 2013]. Meu deus, já não sei! Mas não faço mais apenas por não poder. Quando as pessoas me convidam dá-me logo vontade, tenho de me controlar.
2018 foi o ano do Leão de Prata, mas também de outra primeira vez: a criação para o elenco de uma companhia, a Batsheva. Em Junho dizia: “Vai mudar a minha forma de trabalhar”. Mudou mesmo?
Sim. Estou habituada a trabalhar com os intérpretes que eu escolho e aqui havia um elenco, ainda por cima grande. Os meus planos para ir trabalhando com pequenos grupos à medida que a peça evoluía foram por água abaixo. Mas criar o Canine Jaunâtre 3 [a peça chegará a Culturgest, em Lisboa, e ao Teatro Municipal do Porto em 2020] foi uma experiência incrível, com uma carga emocional muito, muito forte – quando acabei estava exausta.
Ia assustada?
Muito. As pessoas diziam-me que eu não tinha nada a ver com a Batsheva, mas as diferenças de vocabulário coreográfico não foram nunca uma questão. E acho que temos em comum uma dedicação visceral ao trabalho. Desde o início que tanto eu como eles tivemos bem presente que trabalharmos juntos implicaria eu ir na direcção deles e eles virem na minha.
E entretanto estava a trabalhar com uma companhia de dança israelita numa peça a estrear no Israel Festival…
... e a lidar com pedidos de boicote. Foi muito duro. Porque é uma situação muito séria e não se pode lidar com ela de forma ingénua. Tive de estudar o assunto para me sentir em condições de dar uma resposta e definir a minha posição em relação a este trabalho.
Portanto foi uma questão?
Foi sempre: antes de aceitar o convite do Ohad [Naharin], durante todo o processo de criação e até hoje. E não é por causa das cartas de apelo ao boicote, é porque sabes que estás a trabalhar num país que tem em curso uma limpeza étnica há 70 anos.
Quando o Tiago Rodrigues, já em Maio, renunciou à participação no Israel Festival…
Nessa fase eu já tinha trabalhado muito para chegar à minha posição – mas a carta mexeu comigo. Eu acho que é preciso boicotar, mas também é preciso perceber muito bem o que se está a boicotar para não se fazer o jogo do Estado israelita – porque os principais opositores à política do Estado de Israel estão em Israel. A minha resistência ao boicote nunca passou por qualquer tipo de ingenuidade; acho é que a situação é de uma complexidade tão grande que não se resolve com uma declaração, nem com um email, nem com um boicote. Nem com uma peça, claro. Mas a conclusão a que eu cheguei foi que a linguagem em que eu me sinto mais à vontade é aquela em que eu me movo: não consigo dizer com um boicote tudo aquilo que consigo dizer com o Canine, ou com as coisas que eu vou descobrindo nas minhas visitas à Palestina… Há a possibilidade de montar cá uma programação com artistas e ONG que têm trabalhado sobre a questão israelo-palestiniana.
Por obrigação moral?
Não no sentido de ter de expiar uma culpa, mas no sentido de achar que devemos perceber o que está a acontecer. O Canine já exprime a minha posição de um modo claro. Há sempre diferentes leituras possíveis, mas é um espectáculo em que duas equipas se dedicam com muita infantilidade a um jogo de construir e destruir, erigir e demolir – um jogo cujas regras podem mudar, conforme o que se quer conseguir… Isto é o Canine. Diz o que eu tenho a dizer.
Portanto Israel fez da Marlene Monteiro Freitas uma programadora?
Não! Seria uma catástrofe! Uma vez fiz isso em França e o que era suposto ser uma coisa pequena tornou-se gigante.
Mais planos para 2019?
Em 2020 há uma peça a fazer com os actores da Kammerspiele de Munique (ainda não sei se também haverá bailarinos) e o trabalho já está a começar. Mas este ano faço uma instalação para a [bienal] BoCA.
E muita circulação internacional?
Alguma, mas estamos a tentar reduzir porque terei de estar bastante tempo em residência.
Mais fora de Portugal do que dentro, como sempre?
Sempre foi assim.
As peças de uma coreógrafa que vive em Portugal não sentem falta de ter um público português?
Ninguém faz espectáculos para não serem vistos. E o trabalho que se faz numa peça a partir do momento em que ela finalmente contacta com o público é muito importante – privar um espectáculo disso é terrível. Mas é como se já nos tivéssemos habituado à dificuldade de apresentar o trabalho cá; temos de nos desabituar.