A guerra por outros meios EUA-China, ano I
A guerra comercial que eclodiu entre os EUA a China em inícios de 2018 é um episódio que não deve ser lido isoladamente, nem avaliado por apenas por lentes económicas e comerciais.
1. A China é um gigante com pés de barro, um guerreiro de terracota que se desfaz com a pressão comercial e política dos EUA? Um iminente colapso da China é objecto de previsões e profecias há muito tempo (ver, entre outros, Gordon Chang, The Coming Collapse of China, Random House, 2001). A verdade é que, até agora, o Estado chinês tem conseguido continuar em ascensão. Tem passado mais ou menos incólume pelas grandes crises financeiras e económicas internacionais, como a desencadeada pela falência do Lehman Brothers nos EUA, em 2008. Isto não significa que não tenha debilidades importantes. Estas existem no seu sistema financeiro e no crédito mal-parado, num excesso de capacidade produtiva em certos sectores onde a mão-de-obra já foi mais barata, ou devido aos problemas demográficos ligados à imposição política de filho único. Também o ritmo do seu extraordinário crescimento económico diminuiu. (Ver “China’s Economy Slows Sharply, in Challenge for Xi Jinping” in NYT, 14/12/2018).Todavia, ver nestas fragilidades traços similares aos da União Soviética — a qual se desagregou em 1991 —, que lembram o tipo de competição e rivalidade da Guerra-Fria, é uma analogia desadequada. Ao mesmo tempo, é erróneo pensar que a guerra comercial americano-chinesa é apenas resultado de um “efeito Trump”. E que após este deixar a presidência dos EUA, a mesma acabará. Há causas estruturais do sistema internacional e da política interna de ambos os Estados que apontam para um longo conflito de desgaste com múltiplas vertentes.
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1. A China é um gigante com pés de barro, um guerreiro de terracota que se desfaz com a pressão comercial e política dos EUA? Um iminente colapso da China é objecto de previsões e profecias há muito tempo (ver, entre outros, Gordon Chang, The Coming Collapse of China, Random House, 2001). A verdade é que, até agora, o Estado chinês tem conseguido continuar em ascensão. Tem passado mais ou menos incólume pelas grandes crises financeiras e económicas internacionais, como a desencadeada pela falência do Lehman Brothers nos EUA, em 2008. Isto não significa que não tenha debilidades importantes. Estas existem no seu sistema financeiro e no crédito mal-parado, num excesso de capacidade produtiva em certos sectores onde a mão-de-obra já foi mais barata, ou devido aos problemas demográficos ligados à imposição política de filho único. Também o ritmo do seu extraordinário crescimento económico diminuiu. (Ver “China’s Economy Slows Sharply, in Challenge for Xi Jinping” in NYT, 14/12/2018).Todavia, ver nestas fragilidades traços similares aos da União Soviética — a qual se desagregou em 1991 —, que lembram o tipo de competição e rivalidade da Guerra-Fria, é uma analogia desadequada. Ao mesmo tempo, é erróneo pensar que a guerra comercial americano-chinesa é apenas resultado de um “efeito Trump”. E que após este deixar a presidência dos EUA, a mesma acabará. Há causas estruturais do sistema internacional e da política interna de ambos os Estados que apontam para um longo conflito de desgaste com múltiplas vertentes.
2. Importa ter em mente que uma analogia mal usada com circunstâncias do passado induz a ler de forma distorcida o mundo em que vivemos. Pode levar a cometer erros de apreciação e de actuação política. Pondo em paralelo a Rússia e a China, o problema emerge com nitidez. Para os europeus e os norte-americanos, a obsessão com a Rússia tem feito obscurecer uma tendência fundamental do século XXI: na actual competição pelo poder mundial é a China que disputa a supremacia com os EUA, não a Rússia. Quanto à competição político-militar, como nos “bons velhos tempos” da rivalidade americano-soviética, não é a dimensão fundamental dessa competição/rivalidade (pelo menos para já). Face a este contexto político novo, muitos não perceberam a amplitude da competição estratégica pela supremacia na Ásia-Pacífico e no mundo, nem as suas múltiplas ramificações em áreas que, aparentemente, não têm qualquer ligação. Por muito que oficialmente o Estado chinês negue tal ambição, como faz Xi Jinping — e se mostre contido, ou dissimule as suas intenções —, é já hoje um protagonista maior na política global (ver Oriana Skylar Mastro, “The Stealth Superpower. How China Hid Its Global Ambitions” in Foreign Affairs, Janeiro/Fevereiro 2019). Para os ocidentais, o longo prazo para concretização da ambição chinesa pode parecer demasiado longínquo, não valendo assim a pena preocuparem-se muito com isso. Mas para os chineses, enquanto herdeiros de um extraordinário império milenar, o sentido do tempo é diferente (e bem mais alargado) do que o sentido do tempo dos norte-americanos, com um Estado (apenas) nascido na modernidade Iluminista e que não vai além dos duzentos e cinquenta anos de história.
3. A guerra comercial que eclodiu entre os EUA a China em inícios de 2018 é um episódio que não deve ser lido isoladamente, nem avaliado apenas por lentes económicas e comerciais. Tudo indica ser bem mais do que isso. Provavelmente, é um sintoma de uma crescente e profunda rivalidade americano-chinesa, que tem, nesta altura, no comércio o seu principal terreno de disputa. Mas o comércio aqui é sobretudo algo instrumental para os objectivos mais vastos de poder, de norte-americanos e chineses. Para os chineses, os mercados mundiais abertos e as suas exportações são uma alavanca de bem-estar da sua população, mas também um instrumento de poder internacional, cada vez mais global. É flagrante o contraste com a estratégia soviética/russa. Na Guerra-Fria, os soviéticos procuravam, ostensivamente, afirmar a sua supremacia militar e modelo ideológico, fazendo até acreditar em capacidades que não tinham. Quanto aos chineses, fazem agora exactamente o contrário: ocultam, o mais possível, dos olhares do mundo — leia-se dos EUA e outros Estados ocidentais — as suas crescentes proezas tecnológico-militares. Procuram criar a ideia de serem apenas um país interessado no comércio, respeitador das regras multilaterais da Organização Mundial de Comércio (OMC) e que a sua ascensão não será feita à custa de outros Estados (ver “Xi Jinping says China ‘will not seek to dominate’” in BBC, 18/12/2018). Muitos no mundo exterior, incluindo entre nós, por ingenuidade ou por conveniência, parecem subscrever esta visão a qual não resiste, todavia, a um escrutínio mais aprofundado.
4. É sintomático que os EUA tenham invocado motivos de segurança nacional para aplicar direitos aduaneiros adicionais à importação de produtos como o alumínio e o aço. Desde os seus primórdios que o Acordo do GATT, o qual faz parte do acervo dos tratados de comércio da OMC, estabeleceu o seguinte (artigo XXI, alínea (b): “Nenhuma disposição do presente Acordo será interpretada […] como impedindo uma Parte Contratante de tomar todas as medidas que achar necessárias à protecção dos interesses essenciais da sua segurança” (ver Acordo Geral Sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio 1947 (GATT 47)). Uma questão naturalmente se levanta aqui: a aplicação de direitos aduaneiros, invocando razões de segurança nacional pelos EUA — a maior economia do mundo — é um precedente perigoso? Poderá abrir a porta a um aumento generalizado das restrições ao comércio, pela via do nacionalismo económico? Efectivamente, há fundados receios de que o sistema comercial multilateral da OMC possa sofrer sérios “danos colaterais” devido à guerra comercial entre os EUA e a China. Até agora, o artigo XXI do GATT, que permite, em certos casos, restrições excepcionais ao comércio por motivos de segurança nacional, tem sido pouco utilizado. Mas, para o órgão de resoluções de litígios da OMC, este é um terreno armadilhado se tiver de resolver esta disputa. Se decidir a favor da invocação do artigo XXI do GATT, para criar restrições à importação de alumínio e aço, cria um precedente que outros usarão certamente também. Se decidir contra os norte-americanos, considerando abusiva a invocação dessa cláusula, vai alimentar o sentimento anti-OMC favorável a um boicote ou até à saída da organização.
5. A empresa tecnológica chinesa Huawei está agora no centro da confrontação EUA-China. É outro sintoma das múltiplas e díspares facetas do conflito. Wanzhou Meng, filha do fundador da Huawei, Ren Zhengfei, e responsável pela área financeira da empresa, foi recentemente detida no Canadá a pedido das autoridades norte-americanas. A sua detenção e pedido de extradição para os EUA deve-se a suspeitas de violação das sanções impostas pelos norte-americanos ao Irão (ver “China, Meng Wanzhou and Canada — how Huawei CFO’s arrest is playing out behind the scenes” in Global News, 14/12/2018). Neste caso, cruzam-se, de forma particularmente intrincada, as sanções dos EUA ao Irão e a aplicação extraterritorial da legislação norte-americana, com a competição tecnológica e comercial, as suspeitas de espionagem cibernética e as rivalidades políticas pela supremacia mundial. É necessário lembrar que a Huawey está já há vários anos no meio da rivalidade crescente entre ambos os países. Em 2012 essa empresa tecnológica chinesa — que é o maior fabricante mundial de equipamento para redes sem fios e o terceiro maior fabricante de smartphones — esteve envolvida em diversas polémicas originadas pelas suas actividades em algumas das mais importantes economias ocidentais. Importa notar que o seu fundador, Ren Zhengfei, é um antigo oficial do Exército Popular de Libertação da China (ver “Who’s afraid of Huawei? The rise of a Chinese world-beater is stoking fears of cyber-espionage. Techno-nationalism is not the answer” in The Economist, 4/08/2012). A suspeita era — e continua a ser — que a empresa esteja a funcionar como um sofisticado instrumento de ciberespionagem, passando informações sensíveis ao Estado chinês.
6. O duplo uso da tecnologia, civil e militar, mostra a ubiquidade da competição empresarial. Mostra, também, como esta pode ser um importante instrumento de uma grande estratégia de poder estadual, alicerçada, numa primeira fase, na tecnologia civil, na economia e no comércio. A disputa pela supremacia na tecnologia 5G — a quinta geração das comunicações sem fios e da Internet móvel —, na qual a China, através de empresas como a Huawei, se procura posicionar como líder mundial, não é uma mera questão de mercado, ou apenas comercial. Não foi também por acaso que o governo dos EUA proibiu o uso de equipamentos da Huawei nos serviços públicos e em todas as agências estaduais pelos respectivos funcionários (ver “Who’s Afraid of Huawei? Security Worries Spread Beyond the U.S.” in WSJ, 20/03/2018). Tudo indica que o século XXI será marcado pela rivalidade americano-chinesa, em múltiplas frentes. Adaptando o pensamento de Carl von Clausewitz ao actual mundo globalizado, a tecnologia, a economia e o comércio são agora a continuação da guerra por outros meios. Com a abertura de uma frente de guerra comercial, 2018 é o ano I de uma longa disputa pela liderança mundial. Provavelmente durará longos anos, ou várias décadas, poderá ter períodos de acalmia, onde parecerá terminada, ressurgindo mais à frente, numa nova confrontação, na mesma ou noutras áreas. O maior risco é levar ao confronto militar, o que seria catastrófico para a humanidade.