Especulação imobiliária em Lisboa: comprar, despejar, vender
Não podemos permitir que um qualquer investidor compre um prédio para de imediato expulsar quem sempre lá viveu.
O caso do prédio Santos Lima é paradigmático do que se passa em Lisboa. Foi comprado recentemente, imediatamente posto à venda um mês depois quase pelo triplo do valor, e as famílias que nele habitam estão a ser ameaçadas de despejo. O Santos Lima, ou Vila Pereira, é um prédio em Marvila, na área ribeirinha do Poço do Bispo. Nele residem 17 famílias, cerca de 40 pessoas, que estão há mais de um ano a sofrer todo o tipo de pressões para abandonarem as suas casas.
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O caso do prédio Santos Lima é paradigmático do que se passa em Lisboa. Foi comprado recentemente, imediatamente posto à venda um mês depois quase pelo triplo do valor, e as famílias que nele habitam estão a ser ameaçadas de despejo. O Santos Lima, ou Vila Pereira, é um prédio em Marvila, na área ribeirinha do Poço do Bispo. Nele residem 17 famílias, cerca de 40 pessoas, que estão há mais de um ano a sofrer todo o tipo de pressões para abandonarem as suas casas.
Em outubro de 2017, o prédio Santos Lima foi vendido por 2,7 milhões de euros pela empresa NorthAtlantic Trading Company aos atuais proprietários, as empresas Buy2Sale e Preciousgravity Lda. Um mês depois, estas empresas puseram o prédio à venda por 7,2 milhões de euros. Nos vários anúncios online disponíveis na altura, podia ler-se que o prédio estava devoluto e que era ótimo para ser convertido em condomínio privado, hotel ou escritórios. Foi quando viram os anúncios que as famílias que habitam o prédio lançaram o alerta: o prédio não só está habitado como nele vivem famílias que já lá nasceram e que ali passaram toda a sua vida.
No entanto, alguns inquilinos do prédio já foram impelidos a sair. Um inquilino jovem recebeu carta de oposição à renovação do contrato de arrendamento pouco tempo depois de o prédio ter sido comprado e acedeu sair em janeiro de 2018. Duas outras famílias, que já não residiam no prédio, aceitaram pequenas indemnizações para desocupar as casas. Restaram 17 famílias, na sua maioria gente idosa e com poucos recursos económicos. Estas passaram vários meses a sofrer assédio imobiliário por um representante da empresa Buy2Sale. A algumas pessoas idosas foi-lhes dito que teriam de ir para um lar ou ir viver com familiares, outras ouviram ameaças e até há relatos de violência física. Para além disso, os proprietários retiraram as portas dos apartamentos vazios e começaram a fazer obras para um andar modelo que nunca chegou a ser acabado. As famílias estavam a viver numa espécie de estaleiro de obras inseguro e não autorizado. Felizmente, esses tempos passaram, depois de os inquilinos terem denunciado a situação à associação Habita, ao coletivo Stop despejos e, mais tarde, à Câmara Municipal de Lisboa. As famílias do Santos Lima resistiram a esta primeira fase sombria, mas logo se seguiu outra, com contornos um pouco diferentes.
Sendo que o assédio continuado não surtiu os efeitos que as empresas proprietárias queriam (leia-se desocupar o prédio), a sua estratégia mudou. A advogada que estava a “tratar” do caso foi afastada e o representante bruto também. Em julho de 2018, entrou em cena uma advogada simpática, que gentilmente foi dizendo aos inquilinos que as suas casas iriam ser demolidas e que teriam de sair. Dizia que a Câmara Municipal de Lisboa iria asseverar o “perigo de derrocada do prédio” em vistoria a realizar-se quase um mês depois e que, portanto, todas as famílias teriam de abandonar as suas casas. A nova estratégia dos proprietários é simples: querem que a Câmara Municipal de Lisboa confirme que o prédio está em perigo para, assim, passarem o ónus da responsabilidade do realojamento dos moradores para a vereação da habitação. Se o prédio apresentasse perigo para os moradores, então a CML teria de assegurar alojamento para toda a gente e as empresas proprietárias deixariam de carregar o “problema” dos inquilinos, e poderiam concretizar a sonhada venda de um prédio devoluto por mais de sete milhões de euros.
O relatório da vistoria, realizada pela CML a 10 de agosto de 2018, diz claramente que as obras de manutenção e reabilitação do prédio não implicam desocupação ou despejo. Neste relatório também pode ler-se que todas as casas estão em más condições de habitabilidade, facto que não é surpreendente visto que a última vez que proprietários fizeram obras no edifício foi em 1945, há já mais de 70 anos. Têm sido os inquilinos a manter e fazer obras nos espaços comuns e nas suas casas. Algumas estão bastante aceitáveis, outras nem por isso.
O problema agora é que a Buy2Sale e a Precious Gravity Lda já deram entrada nos serviços da CML de uma impugnação ao relatório da vistoria. A advogada das empresas afirmou que não têm qualquer intenção de proceder às obras de reabilitação a que a CML obriga e que só querem vender o prédio. Ou seja, os atuais proprietários pretendem unicamente que o relatório seja revisto no sentido de confirmar a necessidade de desocupação e, assim, manterem a sua estratégia de obrigar a CML a realojar as famílias que habitam o prédio. O destino das famílias do Santos Lima está, agora, nas mãos do vereador Manuel Salgado.
Mas a história não acaba aqui. Curiosamente, também no dia 10 de agosto de 2018, foi assinado um contrato-promessa de compra do prédio Santos Lima por outra empresa: a Prológica S.A. No entanto, nenhuma das famílias recebeu carta de direito de preferência nem aviso de que o prédio iria mudar de mãos outra vez. Para além de configurar uma ilegalidade, esta mudança de proprietário velada indica que haverá contrapartidas para a efetivação da venda do prédio. Tudo leva a crer que a nova empresa só confirmará a compra caso o prédio seja totalmente desocupado, e daí a pressa da Buy2Sale e da Preciousgravity em expulsar os inquilinos que o habitam.
Neste sentido, em outubro de 2018, alguns moradores receberam cartas de oposição à renovação dos contratos de arrendamento. Destes, uns têm mais de 65 anos e moram na mesma casa há mais de 15, e portanto estão protegidos pela moratória aos despejos em vigor; outros estão simplesmente desprotegidos – ou porque “só” têm 64 anos de idade, ou porque não vivem na mesma casa há mais de 15 anos.
Na procura por ajuda, uma inquilina ligou para a linha SOS despejos da Câmara Municipal de Lisboa, que remete as pessoas para a Associação dos Inquilinos Lisbonenses. Desta forma, e também porque os moradores denunciaram o seu problema em reuniões públicas de câmara, foi-lhes atribuída uma advogada da AIL para prestar apoio jurídico a todas as famílias do prédio. No entanto, e por indicação do presidente da Junta de Marvila, esta advogada tem seguido exatamente a mesma estratégia dos proprietários: advogar junto da câmara a necessidade de esta realojar as famílias do Santos Lima. É uma estratégia errada e que penaliza gravemente o direito à habitação destas pessoas que, por lei, têm direito a permanecer nas suas casas.
Se cabe à advogada da AIL defender devidamente as famílias do Santos Lima, cabe à câmara municipal garantir a sua permanência nas casas que habitam, bem como ao Governo e ao Parlamento mudar a lei do arrendamento, que já causou danos que chegue. É urgente dar estabilidade aos inquilinos e parar a voracidade da especulação imobiliária que está a matar Lisboa. Chega de brincar aos investidores especuladores, é preciso que se comece a pensar a sério em resolver a crise de habitação que já se alastra a várias cidades do país.
Não podemos permitir que um qualquer investidor compre um prédio para de imediato expulsar quem sempre lá viveu.
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico