Não são só as democracias que morrem devagar. O SNS também
Tal como as democracias, o SNS também pode morrer devagar. Se pensarmos bem, muito tem ele resistido às mais ou menos subtis tentativas de matá-lo devagarinho.
1. Temas não faltam, infelizmente, para escrever neste sábado nebuloso em Lisboa, recém-chegada dos graus negativos de Viena, onde descobri um debate mais intenso do que imaginaria sobre as consequências (bastante negativas) da participação de um partido de extrema-direita no governo de Sebastian Kurz. Theresa May veio de Bruxelas com muito pouco. É cada dia mais penoso e incompreensível ver um país orgulhoso da sua liberdade e da sua História mergulhado numa crise existencial profunda, sem saber para onde vai, às voltas com uma decisão que terá implicações profundas no seu futuro e – é bom insistir – no futuro da Europa. Talvez os líderes europeus já não possam fazer grande coisa para ajudar May a encontrar uma solução que seja a menos má possível. Talvez tenham razão quando dizem que qualquer sinal de boa vontade terá reduzido efeito sobre um Parlamento onde são demasiados os que querem chumbar o acordo de saída. Mesmo assim, é recomendável alguma humildade e alguma contenção nos títulos dos jornais. Nem os 27 estão tão unidos como possa parecer; nem a Europa respira saúde; nem o que vier a acontecer ao Reino Unido será indiferente. Uma saída sem acordo será um choque profundo também na economia europeia. A saída, a bem ou a mal, altera os equilíbrios políticos europeus num sentido que ainda se está para ver que custos terá para a integração. A União está, ela própria, a braços com uma crise profunda e, o que é pior, sem que se vislumbre entre os seus governos mais influentes a coragem de inverter o caminho. O último Conselho Europeu foi prova disso. A reforma da zona euro, aprovada depois de um ano de longas negociações, está longe daquilo que sabemos necessário para colocá-la à prova da próxima crise. Berlim apenas cedeu o mínimo dos mínimos a Paris para poder dizer que fez alguma coisa. A Alemanha continua a enfrentar o mesmo dilema: liderar mas sem pagar o custo da sua liderança. E liderar tem custos, que acabam por transformar-se em proveitos. Os EUA sempre pagaram um custo elevado, financeiro e humano, para liderar o mundo ocidental e manter a ordem liberal que construíram. É justamente porque Trump já não quer pagar esse custo que vivemos numa crescente e perigosa desordem mundial. Os alemães querem liderar apenas com ganhos. É impossível. Macron obteve uma pequena vitória com um pequeno “orçamento” da zona euro. Enfrenta em casa uma profunda crise que todos esperamos que consiga vencer a bem da França e a bem da Europa. O resultado é incerto. A Europa não resistiria a uma França à deriva e, muito menos, a uma França nas mãos de forças políticas extremistas. Marine Le Pen é a única que sobe nas sondagens com a revolta dos “gilets jaunes”.
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1. Temas não faltam, infelizmente, para escrever neste sábado nebuloso em Lisboa, recém-chegada dos graus negativos de Viena, onde descobri um debate mais intenso do que imaginaria sobre as consequências (bastante negativas) da participação de um partido de extrema-direita no governo de Sebastian Kurz. Theresa May veio de Bruxelas com muito pouco. É cada dia mais penoso e incompreensível ver um país orgulhoso da sua liberdade e da sua História mergulhado numa crise existencial profunda, sem saber para onde vai, às voltas com uma decisão que terá implicações profundas no seu futuro e – é bom insistir – no futuro da Europa. Talvez os líderes europeus já não possam fazer grande coisa para ajudar May a encontrar uma solução que seja a menos má possível. Talvez tenham razão quando dizem que qualquer sinal de boa vontade terá reduzido efeito sobre um Parlamento onde são demasiados os que querem chumbar o acordo de saída. Mesmo assim, é recomendável alguma humildade e alguma contenção nos títulos dos jornais. Nem os 27 estão tão unidos como possa parecer; nem a Europa respira saúde; nem o que vier a acontecer ao Reino Unido será indiferente. Uma saída sem acordo será um choque profundo também na economia europeia. A saída, a bem ou a mal, altera os equilíbrios políticos europeus num sentido que ainda se está para ver que custos terá para a integração. A União está, ela própria, a braços com uma crise profunda e, o que é pior, sem que se vislumbre entre os seus governos mais influentes a coragem de inverter o caminho. O último Conselho Europeu foi prova disso. A reforma da zona euro, aprovada depois de um ano de longas negociações, está longe daquilo que sabemos necessário para colocá-la à prova da próxima crise. Berlim apenas cedeu o mínimo dos mínimos a Paris para poder dizer que fez alguma coisa. A Alemanha continua a enfrentar o mesmo dilema: liderar mas sem pagar o custo da sua liderança. E liderar tem custos, que acabam por transformar-se em proveitos. Os EUA sempre pagaram um custo elevado, financeiro e humano, para liderar o mundo ocidental e manter a ordem liberal que construíram. É justamente porque Trump já não quer pagar esse custo que vivemos numa crescente e perigosa desordem mundial. Os alemães querem liderar apenas com ganhos. É impossível. Macron obteve uma pequena vitória com um pequeno “orçamento” da zona euro. Enfrenta em casa uma profunda crise que todos esperamos que consiga vencer a bem da França e a bem da Europa. O resultado é incerto. A Europa não resistiria a uma França à deriva e, muito menos, a uma França nas mãos de forças políticas extremistas. Marine Le Pen é a única que sobe nas sondagens com a revolta dos “gilets jaunes”.
2. Mas nada disto me consegue afastar do que se passa neste “santo” país, sobre o qual todos os europeus que encontro me pedem a explicação para o duplo milagre de não termos um partido de extrema-direita e termos, pelo contrário, um Partido Socialista que foge ao destino triste dos seus congéneres europeus. Dou as explicações que todos nós sabemos, desde a vacina do fascismo até à moderação dos socialistas portugueses, que lhe está nos genes, passando pelo instinto de sobrevivência dos partidos à sua esquerda, que precisam de mostrar aos seus eleitores que servem para alguma coisa, para além de “deitar tudo abaixo”. Mas começo a pensar que este aparente mar de rosas pode não durar eternamente. Perguntava-me a mim própria como é que os enfermeiros conseguiam pagar as contas no fim do mês com tantos dias de greve. Uma greve que, de si própria, é inumana e irresponsável. Um fundo sindical? Mas financiado por quem? Só por quotizações? Finalmente, vejo uma notícia esclarecedora: “crowdfunding”. Ora aí está, afinal Portugal não é tão atrasado como por vezes imaginamos. Tem uma sociedade civil activa, que se associa e se mobiliza pelas boas causas, que está disposta a verter dinheiro no sindicato dos enfermeiros para lhe financiar uma greve com a qual se identifica. Não me parece. Não somos assim. E o problema é que, tal como as democracias, o SNS também pode morrer devagar. Se pensarmos bem, muito tem ele resistido às mais ou menos subtis tentativas de matá-lo devagarinho.
3. Durante anos assistimos a um intenso debate, aqui e nas outras democracias europeias, sobre a impossibilidade de sustentarem o seu modelo social. A ideia de um serviço nacional de saúde “para os mais pobres” foi debatida até à exaustão, animada pelas mentes neoliberais que viam nos mercados e na sua sabedoria na repartição dos recursos a resposta ao problema. Houve reformas, naturalmente. Nos sistemas de pensões, nas leis laborais, na saúde e na educação. Por exemplo, no Reino Unido, entre a saúde e a educação gratuitas, a opção foi feita pela manutenção da universalidade do NHS e pelo pagamento de propinas nas universidades. O que está certo. Se há um pilar estruturante do princípio da igualdade de oportunidades e da garantia de uma vida decente para todos os cidadãos numa democracia, ele é justamente um serviço de saúde gratuito e universal. Felizmente, esse debate já passou. Em Portugal deixou marcas: o florescimento do sector privado da saúde, o que em si mesmo não seria um mal, desde que não ponha em casa o SNS. Convém, no entanto, lembrar que, na Europa, quanto mais rico é um país mais a medicina privada é residual e não o contrário. Além disso, sempre que estou na fila de atendimento de um hospital privado, o cartão da ADSE ainda bate o dos seguros privados.
4. Agora, a via para a destruição do SNS parece ser fomentar o seu descrédito. Por via da greve de longa duração dos enfermeiros (que fazem greve no público mas continuam a trabalhar no privado, onde os seus salários não são superiores), por via das constantes críticas aos serviços que não funcionam (às vezes justas, mas muitas vezes parcelares). Os enfermeiros querem ganhar mais. Muito bem. O que não consigo entender é que não reivindiquem um sistema mais próximo do britânico (falo dele porque o conheço razoavelmente) em que as funções exercidas por eles são muito mais vastas e de maior responsabilidade. Ora, nos casos em que os médicos querem os enfermeiros a desempenhar novas funções, o que dizem os sindicatos? Escravatura. Vá lá perceber-se o que querem. Depois, há o outro lado da questão, que é a realidade do país. Quando uma doença como o cancro atinge uma pessoa de rendimentos médios (a designada classe média, largamente maioritária), ela aguenta até ao segundo ou terceiro tratamento de quimioterapia. Ao quarto tem de passar para o público, que a recebe sem perguntas. Porquê? Porque os tratamentos inovadores são de tal modo caros que os 10 ou 20 por cento que é preciso pagar para completar o seguro de saúde não são, pura e simplesmente, comportáveis. Convém acrescentar que o SNS tem ao seu dispor o que de mais avançado e inovador existe nos países mais desenvolvidos e não regateia a sua aplicação.
5. Talvez valesse a pena parar para pensar no crowdfunding dos enfermeiros ou nas eternas reivindicações dos professores. Eles, como nós, mereciam melhor do que ver, há décadas, o mesmo Mário Nogueira na televisão a bradar contra o Governo da altura sobre tudo e coisa nenhuma (curiosamente, talvez por distracção minha, nunca o ouvi reclamar melhor ensino para os alunos) ou o mesmo Marta Soares (na sua versão de bombeiro) ameaçar o Governo de “incendiar” o país se houver alguma beliscadela no statu quo dos bombeiros voluntários. Os bombeiros voluntários são dignos do maior respeito. O problema é quando as pequenas estruturas de poder montadas em cima deles por esse país fora querem, em primeiro lugar, preservar esse seu pequeno poder, e só depois cuidar das condições de resposta mais eficaz aos incêndios.
6. Fui recentemente falar a um grupo de pessoas que queriam debater os riscos que as democracias hoje estão a enfrentar. Havia muita gente nova. Depois de uma intervenção um pouco pessimista e de um debate muito interessante, uma das jovens perguntou-me: “o que podemos fazer?” Por breves segundos, fiquei sem fala. Depois, disse o que me veio à ideia. Devíamos comportar-nos mais como cidadãos e menos como enfermeiros, professores, magistrados, etc., etc.. Só depois comecei a pensar naquilo que tinha dito.