Orhan Pamuk escreve porque está zangado

Antes de morrer, quer ver na Turquia uma democracia no pleno sentido da palavra. Na Feira Internacional do Livro (FIL) de Guadalajara, no México, lançou A Mulher de Cabelo Ruivo.

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Quando lhe pedem para falar do processo criativo, o que lhe vem à ideia não é um romance, não é um poema, nem é uma qualquer tradição literária. É a ideia de uma pessoa que se fecha num quarto, se senta e se debruça sobre uma mesa, sozinha, para criar um mundo novo com palavras Schiffer-Fuchs/ullstein bild via Getty Image

Considera-se um escritor feliz, embora talvez não seja uma pessoa feliz. O Nobel da Literatura 2006 voltou à Feira Internacional do Livro (FIL) de Guadalajara, nove anos depois de lá ter estado, para abrir o Salão Literário da maior feira do livro da América hispânica, para receber a medalha Carlos Fuentes (o ano passado atribuída a Paul Auster) e para lançar a edição mexicana do seu mais recente romance, A Mulher de Cabelo Ruivo (em Portugal publicado pela Editorial Presença).

Quando em 2009 esteve na FIL, levava com ele uma máquina para fotografar a assistência. Quase uma década depois, o mesmo gesto. Antes das palestras, o Nobel turco ergue os braços para tirar fotos à multidão à sua frente. Desta vez, é um iPhone que segura nas mãos. “Posso parecer novo, pode ser que achem que comecei a escrever ontem, mas não…Durante os últimos 40 anos, todas as manhãs, sento-me a uma mesa [para escrever]. Quando estou lá, sou feliz”, afirmou.

Quando lhe pedem para falar do processo criativo ou do que é passar a vida a escrever, o que lhe vem à ideia não é um romance, não é um poema, nem é uma qualquer tradição literária. É a ideia de uma pessoa que se fecha num quarto, se senta e se debruça sobre uma mesa, sozinha, para criar um mundo novo com palavras.

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Quando esteve na FIL em 2009 levava com ele uma máquina para fotografar a assistência. Quase uma década depois, o mesmo gesto. Antes das palestras, ergueu os braços para tirar fotos à multidão. Desta vez, era um iPhone... Francisco Guasco/epa

“Quando me sento à minha mesa, alguns dias, meses ou até anos, lentamente colocando novas palavras numa página em branco, sinto-me como se estivesse a construir um mundo novo", afirma. "Palavra a palavra”, como alguém que constrói uma ponte "pedra a pedra". Para Pamuk o segredo da arte dos escritores não é a inspiração, mas a paciência e um forte desejo de perceber os outros.

Tal como todos os escritores, começou por escrever sobre aquilo que conhecia melhor: o seu bairro, os lugares onde foi criado, os amigos, a família, os tempos da escola. Mais tarde, quando os seus livros começaram a ser traduzidos no estrangeiro, designaram-no na Europa como “o escritor de Istambul”. Foi assim que, pela primeira vez, teve consciência de que o era. Com o passar do tempo, nos livros começaram a aparecer outras partes da cidade, além dessa Istambul do bairro de infância, que também está presente na obra do fotógrafo Ara Güler (1928-2018), um amigo - morreu em Outubro, o Nobel lembrou-o no México.

Nos últimos dez anos, uma Istambul que passou de cinco a 15 milhões de pessoas, vista pelos olhos das classes mais desfavorecidas que chegaram à cidade das aldeias nos anos 1960 e 70, surge na obra de Pamuk. Que considera A Mulher de Cabelo Ruivo um livro sobre essa mudança, sobre a “psicologia da mudança” e a ideia "de pertença e de não pertença”. Para o escritor turco, este livro é também sobre “o poder as histórias antigas e como elas actuam na nossa imaginação”. Não é por acaso que as epígrafes do romance são de Rei Édipo de Sófocles e do épico Shahnameh do iraniano Ferdowsi. Aliás, o escritor mexicano Jorge Volpi, sentado ao lado do Nobel naquela sessão do Salão Literário onde lhe foi fazendo perguntas, classificou-o como “romance de ideias”, “diálogo filosófico que nos traz outra vez crimes ancestrais e duas tradições, a do Oriente e a do Ocidente”.

No dia anterior, na sessão de apresentação A Mulher de Cabelo Ruivo, Pamuk contara que a ideia deste livro lhe surgiu em 1988/89 quando se refugiou numa ilha para terminar The Black Book, que publicaria no ano seguinte. Era Agosto e, ao lado da sua casa, um homem de idade e um adolescente vieram escavar um poço. “Tal e qual como acontece no romance, chovia quando estes dois chegaram, montaram a tenda e tinham uma televisão portátil. Riam-se, faziam a comida para o jantar e eu prestei atenção ao que faziam”, contou. Tinham uma "relação medieval" de pai para filho, em que o pai era também o mestre do filho, transmitindo-lhe o saber. Isso chamou a atenção do escritor, talvez porque a relação que teve com o pai nunca foi intensa na transmissão de conhecimento, mas também nunca foi castradora, explicou: o pai nunca o impediu de imaginar coisas.

Isso talvez explique o fascínio que sentiu por aquela dupla de escavadores que acabaram por ver jorrar a água, e que lhe iam pedindo ajuda, a ele que era o vizinho, alguma electricidade ou água do seu jardim. Depois de algum tempo, Pamuk explicou-lhes que era escritor e pediu-lhes para terem uma conversa. O mais velho contou-lhe então uma história relacionada com a sensação de escavar, escavar, escavar um poço e no final não encontrar água. O escritor pensou logo em obras como O Mito de Sísifo, de Albert Camus ou O Velho e o Mar, de Ernest Hemingway e como sempre tinha querido escrever uma novela reteve aquela história e a relação entre aquele pai e aquele filho (mais tarde soube que não se tratava de um pai e de um filho, projectou isso enquanto observava o que faziam).

“A verdade é que tenho muitos projectos como estes e talvez nunca os chegue a escrever. Mas a situação política na Turquia – não a de hoje, que ainda é pior – mas a de há alguns anos atrás levou-me a isso”, considerou, explicando porque se serviu daqueles escavadores de poços como base para A Mulher de Cabelo Ruivo. Na sua ideia, aquele pai, ao escavar um poço, encontrava água porque de alguma maneira era autoritário para com o filho. E isso era também uma parábola da situação política que se vivia na Turquia. Nos jornais, turcos e internacionais, Pamuk lia que a população votava no presidente porque ele estava a trazer crescimento económico ao país. “Pensei: por que é que não escrevo uma novela sobre este tema? Uma espécie de inquérito filosófico-literário sobre a natureza das civilizações”, contou.

Em Guadalajara, Pamuk lembrou também as suas influências literárias e os autores com quem aprendeu a escrever. Citou Anna Karénina de Tolstoi e o célebre início "todas as famílias felizes são parecidas, cada família infeliz é-o à sua maneira", mas também destacou Dostoiévski, Marcel Proust ou Thomas Mann que continua a reler. Lembrou Jorge Luis Borges, Italo Calvino e Vladimir Nabokov que o ensinaram a fazer “acrobacias” com a ficção, e mexicanos como Carlos Fuentes ou Juan Rulfo, que lhe “abriu os olhos” pela forma como contava histórias.

“Estas influências são muito importantes para mim porque quando o boom latino-americano aconteceu, eu estava a começar a escrever e sentia-me como alguém vindo da província, fora do centro. O boom ajudou a que dissesse a mim mesmo que também podia haver um boom literário muçulmano, já que eles o tinham conseguido fazer também”.

Hoje, continua a escrever porque acredita na importância da literatura, que considera significativa. Acredita dá à sua vida um significado mais profundo. Explicou que a felicidade individual difere da felicidade social, já que a primeira pode ser conseguida como acontece quando uma criança brinca com um brinquedo, e a outra é inalcançável. Lembrou Dostoiévski quando este dizia que todos somos responsáveis perante todos, por isso se somos decentes, não podemos ser felizes socialmente num local onde as pessoas são infelizes. “No meu caso, há a impossibilidade de ser feliz num país onde a situação política é horrível”, onde não há direito de expressão. Na Turquia, “há uma espécie de democracia” porque o povo elege com o seu voto quem vai ser presidente “mas não há democracia sem liberdade de expressão, e na Turquia ela não existe”.

“Alguns dos meus amigos estão na prisão, inclusive escritores, pelas suas ideias, pelo que disseram. Vou dar-vos alguns números: 100 mil pessoas foram despedidas do seu emprego, 50 mil foram presas; entre 100 e 150 escritores, jornalistas ou poetas estão presos, são os que comentam a situação política que acabam a maior parte das vezes na prisão. São eles que têm medo, às seis da manhã a polícia pode aparecer para os prender”. Na gigantesca sala começou-se a ouvir um barulho ensurdecedor. Pamuk aproveitou para notar que ia mudar de assunto e passar a “palavras mais doces”. No seu discurso voltou às razões por que se fez escritor.

“Escrevo porque tenho uma necessidade inata de escrever. Escrevo porque não posso fazer um trabalho normal como as outras pessoas. Escrevo porque quero ler livros como os que escrevo. Escrevo porque estou zangado, com todos vocês, especialmente com os que estão a fazer este barulho. Estou zangado com todos”, disse, rindo-se. E a sala bateu palmas. “Escrevo porque gosto de me sentar a escrever todo o dia. Escrevo porque só posso participar na vida real mudando-a. Escrevo porque quero que todos saibam que tipo de vida continuamos a viver em Istambul, na Turquia, e escrevo porque amo o cheiro do papel e da tinta.”

Na Europa, constantemente perguntam-lhe: qual é a sua religião, senhor Pamuk? “A minha religião é a literatura”, acrescentou e ouviram-se mais palmas. “Escrevo porque gosto que me leiam. Escrevo porque quando começo um ensaio ou um romance quero acabá-lo. Escrevo porque todos esperam que o faça. Escrevo porque tenho a crença infantil na imortalidade das bibliotecas e na maneira como os meus livros estão arrumados numa estante.”

Mas também escreve porque acha divertido converter a beleza da vida em palavras. Escreve também porque deseja escapar a um sonho que tem recorrentemente de que existe um lugar onde tem de ir, mas onde nunca consegue chegar. “E escrevo porque nunca consegui ser feliz. Escrevo para ser feliz”, disse com um sorriso.

E quando no final da sessão, Jorge Volpi lhe perguntou como é que imagina a situação na Turquia daqui a uns anos, Pamuk formulou um desejo: “Quero ver na Turquia, antes de morrer, uma democracia plena. Onde todos possam dizer o que pensam”.

O PÚBLICO viajou a convite do comissariado para a participação portuguesa na FIL Guadalajara 2018