As 350 figuras do maior dos presépios do Museu Nacional de Arte Antiga já recuperaram o seu fulgor

Os técnicos de restauro ainda estão a trabalhar no móvel que serve de casa a este conjunto monumental, mas no Dia de Reis tudo deverá estar no seu lugar. Foram cinco meses de trabalho e de descoberta, mas o museu ainda quer saber mais sobre esta obra de Barros Laborão e o coleccionador que a encomendou.

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Sobre uma das mesas dos bastidores do museu, perto dos laboratórios de conservação, repousam ainda um anjo delicado, em veneração, e um tocador de sanfona a lembrar que cabia a estes músicos, muitas vezes cegos, vender cânticos de Natal nas ruas da Lisboa dos finais do século XVIII. Uma mulher jovem de olhar terno abraça uma criança, um pastor ajoelha-se, em recolhimento. Em todos parece haver uma naturalidade no gesto, no movimento.

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Sobre uma das mesas dos bastidores do museu, perto dos laboratórios de conservação, repousam ainda um anjo delicado, em veneração, e um tocador de sanfona a lembrar que cabia a estes músicos, muitas vezes cegos, vender cânticos de Natal nas ruas da Lisboa dos finais do século XVIII. Uma mulher jovem de olhar terno abraça uma criança, um pastor ajoelha-se, em recolhimento. Em todos parece haver uma naturalidade no gesto, no movimento.

São figuras do Presépio dos Marqueses de Belas (1796-1806), o maior do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), e estão entre as 350 que nos últimos cinco meses concentraram as atenções e os esforços de sete técnicos de restauro. A umas faltavam braços, a outras dedos e elementos diversos. Alguns destes pedaços estavam guardados nas reservas mas não se sabia, até aqui, de onde vinham. “Foi como fazer um puzzle. Quanto mais mexíamos nas figuras do presépio, mais fácil se tornava reconhecer os fragmentos que havia nas reservas e pô-los no lugar. Isto porque vamos ganhando a mão à medida que trabalhamos, compreendendo melhor o artista”, diz Conceição Ribeiro, conservadora-restauradora do museu, acrescentando que desde que a intervenção começou a equipa apercebeu-se de que há nas colecções em reserva outras peças de Joaquim José de Barros (1762-1820), o escultor conhecido como Barros Laborão e autor deste presépio.

O trabalho dos restauradores e outros conservadores do MNAA é apresentado ao público esta sexta-feira, embora o presépio totalmente montado nos vários patamares de cortiça que constituem o “torrão” (assim se chama a estrutura que cria o cenário em que as peças são encaixadas) só fique visitável no Dia de Reis, a 6 de Janeiro. Algumas das principais figuras ficarão até lá expostas nas vitrinas que separam a sala onde se encontra o grande armário que lhes serve de casa e a Capela das Albertas, que em breve se verá transformada num laboratório de restauro visitável.

A ideia, explica José Alberto Seabra Carvalho, subdirector do MNAA, foi fazer desta galeria um prolongamento “natural” da sala de presépios do museu e uma “antecâmara” das Albertas, já que a capela “ajuda a explicar” algumas das peças – esculturas e alfaias litúrgicas – que se encontram no novo espaço concebido por Manuela Fernandes, a que se acede por uma escada marcada por uma estrutura laminada que depois se repete junto ao grande armário do Presépio dos Marqueses de Belas. “Esta solução das escadas com lâminas lembra que aqui houve um convento de clausura e, ao mesmo tempo, permite-nos manter um pé-direito generoso e não revelar o espaço todo de uma vez”, argumenta a arquitecta. “Junto ao presépio, as lâminas fazem com que possamos ver a parte de trás do armário, perceber como foi construído.” E acrescentado.

Um presépio que cresceu

“Acrescentar” é palavra-chave quando se fala deste presépio encomendado a Barros Laborão por José Joaquim de Castro – empresário que fez fortuna com a comercialização da chamada “Água de Inglaterra”, um “antepassado da água tónica” usado sobretudo no tratamento da malária – e comprado em 1937 para o MNAA pelo seu primeiro director, José de Figueiredo, a um descendente do Marquês de Pombal.

Passado quase meio ano de estudo e restauro, uma das principais conclusões a que a equipa do museu chegou é que este presépio cresceu entre o projecto original de Barros Laborão e a versão que chegou aos nossos dias.

“Sempre achámos estranho que o primeiro plano do presépio estivesse tão vazio. Parecia que faltavam figuras. Mas agora sabemos, através do estudo material do móvel e da documentação, que ele a dada altura foi acrescentado a pedido do coleccionador”, diz Maria João Vilhena, conservadora de escultura do MNAA e responsável por esta intervenção. “Este acrescento pode explicar o diferendo que houve entre o encomendador e o Barros Laborão, que foi acusado de sobrefacturar a obra, mas também a participação de outros artistas [como Pedro Alexandrino e Joaquim António de Macedo] e até a existência de figuras avulsas.”

Hoje não há dúvidas de que o armário deste presépio foi ampliado nos três eixos – altura, largura e profundidade –, assegura Tiago Dias, o técnico encarregue do seu restauro, apontando para os locais onde se torna evidente esse acrescento, como o arco de volta perfeita que se transformou num arco abatido para que esta monumental cena da natividade pudesse avançar 30 centímetros. “Agora a nossa principal preocupação é o torrão, composto por placas de cortiça, quase todas coladas. Como não tem muitos encaixes, a estrutura é frágil”, diz.

Nas figuras centrais houve trabalhos de recomposição de elementos, com colagens e reconstituições, acrescenta Vilhena, mas o trabalho não apresentou grandes dificuldades e o restauro permitiu perceber quais as que saíram das mãos de Barros Laborão, porque há “matrizes que se repetem e que ajudam a descobrir afinidades entre peças”.

É dele a cena central do nascimento de Jesus, como seria de esperar, mas também a do anúncio aos pastores, a da matança do porco, o impressionante grupo das cavalgadas, com o elefante, e o menino que brinca entre colunas, “que é como uma ‘assinatura’ na obra de Barros Laborão”.

Para Conceição Ribeiro, a “mão” deste artista passa pelo facto de ele chegar a trabalhar em três escalas, o que de início causou estranheza mas, depois, se tornou evidente entre os vários núcleos do presépio. “Este tratamento por escalas é próprio do presépio português porque ele é construído numa lógica pictórica”, explica António Filipe Pimentel, historiador de arte e director do MNAA. “As escalas permitem dar-lhe um tratamento de profundidade.”

Dois mitos caídos

Entre os núcleos atribuídos a Barros Laborão está o “grupo do mouro” em que se encontra o casal nobre que, durante muito tempo, e de acordo com a tradição popular, se julgou representar os marqueses de Belas, mecenas do escultor. “Hoje sabemos que o casal que deu nome a este presépio que nunca foi dos marqueses de Belas é recorrente na obra de Barros Laborão, é mais um ‘tipo’ da grande crónica social que ele aqui faz, ao mesmo tempo que representa o nascimento de Jesus”, acrescenta Maria João Vilhena. “O outro mito que caiu definitivamente em relação a este presépio – e que é recorrente sempre que há uma peça de grande qualidade deste período – é o que o atribuía a Machado de Castro. Não há qualquer dúvida de que é um projecto de Barros Laborão.”

Entre o que ainda não se sabe está a participação que nele terá tido Pedro Alexandrino de Carvalho (1729-1810), o pintor mais activo da Lisboa pós-terramoto de 1755, que já tinha trabalhado com Barros Laborão no Paço da Bemposta e que terá expostos na sala dois desenhos em fac-símile feitos a partir do presépio. A equipa vai continuar a estudar a documentação existente acerca desta obra. Para saber mais sobre o empresário que a encomendou, um coleccionador de autómatos, gravura e pintura a quem se perdeu o rasto e que terá estado até envolvido em episódios de espionagem industrial, conta a conservadora. E também sobre o autor das figuras mais antigas, Joaquim António de Macedo, que se revelou um “escultor muito qualificado”, “belíssimo na representação naturalista”.

“Apesar dos anúncios de modernidade, presentes nalguns elementos que parecem já apontar para o neoclássico, esta é uma obra que, condensando toda a tradição do presépio português, está ainda muito presa ao passado”, diz Villhena. “É também uma obra em que a qualidade escultórica de cada figura, que podia muito bem apresentar-se só por si, é muito boa. Saiu das mãos de escultores que são exímios a trabalhar e a experimentar na pequena escala.”

Entre os núcleos em que essa qualidade é evidente está o do anúncio aos pastores, “com uma dinâmica de composição e um movimento muito pouco comuns”, e a cavalgada, com o seus “cavalos espantados”, de uma “erudição de execução notável”.

O restauro deste presépio, lembra Pimentel, está longe de ser o ponto de chegada para a equipa do MNAA no que toca a esta obra de Barros Laborão: “Vamos continuar a aprofundar o estudo porque um museu é antes de tudo um centro de investigação e não uma montra.” E o que se vier a saber será para partilhar em livro.