O sortilégio de Brigadoon
No comboio que me leva ao Porto, pego no livro que o investigador Paulo Cunha escreveu sobre o Cinema Novo português (que ele prefere definir como “Novo cinema”). Cunha afirma que não se pode contar a história do cinema português apenas olhando para os filmes em si, enquanto obras de arte como até agora tem sido feito, mas sim levando em conta todo o contexto (social, económico, político) que rodeou e implicou a sua criação, a sua produção, a sua exibição.
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No comboio que me leva ao Porto, pego no livro que o investigador Paulo Cunha escreveu sobre o Cinema Novo português (que ele prefere definir como “Novo cinema”). Cunha afirma que não se pode contar a história do cinema português apenas olhando para os filmes em si, enquanto obras de arte como até agora tem sido feito, mas sim levando em conta todo o contexto (social, económico, político) que rodeou e implicou a sua criação, a sua produção, a sua exibição.
Parece uma evidência, mas o livro é muito esclarecedor quanto à história ser escrita pelos “vencedores”, o que neste caso se traduz, por exemplo, no papel secundário injustamente atribuído a toda uma categoria de produções de importância seminal para o desenvolvimento do cinema moderno entre nós — filmes institucionais, jornais de actualidades, curtas-metragens onde muitos e bons cineastas tiveram a sua primeira oportunidade de filmar. No Porto/Post/Doc vi um bom exemplo — Painéis do Porto, filme turístico assinado por António Reis e pelo produtor César Guerra Leal, onde já se antevia algum do olhar pictural do cineasta.
Isto vem a propósito, precisamente, do contexto. Porque é o contexto que torna tão especial ver os filmes de António Reis e Margarida Cordeiro que o Porto/Post/Doc exibiu. A sua aura mítica não é exclusiva da sua própria natureza enquanto filmes; tem também a ver com a sua ausência do olhar público. Não é a inexistência de cópias ou a degradação dos materiais que impede que sejam mais vistos ou que comecem a ser reconhecidos ao nível de nomes como Oliveira ou Monteiro; antes questões de direitos de autor e propriedade intelectual, “banais” porque pertencentes a um quotidiano prosaico que está nos antípodas da transcendência dos filmes.
Trás-os-Montes, Ana e Rosa de Areia, independentemente de se gostar mais ou menos de um ou de outro, transportam-nos para um outro mundo, ancestral e telúrico, longe da “civilização” moderna; criam uma espécie de sortilégio em quem os vê. Dei por mim a pensar, enquanto as luzes se apagavam no esgotado pequeno auditório do Rivoli, que deve ter sido isto que se sentia nos tempos áureos da cinefilia na Cinemateca ou nos ciclos da Casa da Imprensa. A electricidade de finalmente ter acesso a um segredo reservado a poucos, de se poder descobrir aquele filme de que tanto se tinha ouvido falar mas que nunca se tinha conseguido ver.
E dei também por mim a pensar num dos meus filmes preferidos de Vincente Minnelli — Brigadoon, adaptação de um êxito da Broadway sobre uma aldeia escocesa que apenas ressurge das brumas uma vez a cada cem anos. O sortilégio da aldeia criada em estúdio por Minnelli repetia-se no olhar quase Turneriano de Reis e Cordeiro sobre o além transmontano, como se os próprios filmes encarnassem a aldeia sebastiânica que apenas a espaços ressurge, procurada (em vão) por muitos cinéfilos globais. Uma comunidade curiosa, que pode estar atomizada devido às tecnologias que tornaram tudo acessível, mas que continua a existir e que, perante as salas esgotadas, foi capaz de acorrer à chamada do Porto/Post/Doc para vir descobrir Reis e Cordeiro.
Muito do cinema que se fez em Portugal sofre dessa dificuldade de se dar a ver: fora da Cinemateca ou de ciclos pontuais, muita da sua história está inacessível ao público, ou apenas em cópias mais ou menos “paralelas” online. A comunidade manifestou-se no Porto, no entanto, como não se manifestou para outros cineastas ou outras retrospectivas; é significativo da raridade e a irredutibilidade do cinema de Reis e Cordeiro, do peso da sua influência na geração dos autores que se ergueu nos anos 1990 e com a qual muitos cinéfilos aprenderam a ver cinema.
É uma obra singular e irrepetível, que resiste à facilidade, à categorização; funciona numa lógica de segredo que apenas se abre àqueles dispostos a lidar com ele nos seus próprios termos. De certo modo, os seus filmes são o “ponto zero” do artesanato autoral que hoje é a marca registada internacional do cinema feito entre nós — numa altura em que o divórcio entre o público e o cinema não existia ainda como hoje (falamos de um período em que O Lugar do Morto e Non ou a Vã Glória de Mandar podiam ambos atingir os cem mil espectadores...).
A certa altura em Rosa de Areia, surge Fernando Lopes num pequeno papel. Lopes foi o homem que, quando dirigia o Centro Português de Cinema, aceitou produzir Jaime depois de ver o trabalho de Reis em filmes como Painéis do Porto e reconhecer ali um olhar de cineasta. Nada podia afastar mais o cinema de Reis e Cordeiro do de Lopes, e contudo, nem que fosse por um momento, dois mundos tocaram-se, coexistiram-se, não estiveram de costas voltadas como hoje o meio do cinema está, dividido num discurso inquinado dividido entre vencedores e vencidos. Não foi há tanto tempo assim. E a aldeia escocesa-transmontana do inigualável Trás-os-Montes não está assim tão longe da aldeia gaulesa que resiste ainda e sempre ao invasor — uma boa metáfora para a teimosia de fazer cinema em Portugal, qualquer que ele seja. Fiquei a pensar que não estamos assim tão longe de Brigadoon — mesmo que isso não passe de uma utopia romântica.