Gil Vicente e Beckett encontram-se uma noite no futuro
Nuno Carinhas despede-se da direcção artística do Teatro Nacional São João com um espectáculo sobre a memória que faz coexistir textos e personagens de dois dos autores que mais marcaram o seu percurso de encenador.
Nuno Carinhas e Pedro Sobrado celebram uma longa colaboração entre encenador e dramaturgista, agora que o primeiro deixa a direcção artística do Teatro Nacional S. João (TNSJ) e o segundo ascendeu (se o verbo tem aqui aplicação) a funções mais administrativas, com um espectáculo que evoca, por sobre os séculos, a enigmática afinidade de dois genuínos contemporâneos: Gil Vicente e Samuel Beckett.
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Nuno Carinhas e Pedro Sobrado celebram uma longa colaboração entre encenador e dramaturgista, agora que o primeiro deixa a direcção artística do Teatro Nacional S. João (TNSJ) e o segundo ascendeu (se o verbo tem aqui aplicação) a funções mais administrativas, com um espectáculo que evoca, por sobre os séculos, a enigmática afinidade de dois genuínos contemporâneos: Gil Vicente e Samuel Beckett.
Uma Noite no Futuro, que esta noite se estreia no Teatro Carlos Alberto (onde ficará até dia 22), faz dialogar dois textos de Beckett – Velha Toada, reescrita de uma peça radiofónica de Robert Pinget, e A Última Gravação de Krapp – com um quase desconhecido auto de Gil Vicente, Fé, escrito em português e dialecto saiaguês e estreado no Natal de 1510. “Colaborei com o Nuno, como dramaturgista, em espectáculos vicentinos, e uma questão recorrente que se me colocava era a de como encenar Gil Vicente”, conta Pedro Sobrado, “e parecia-nos que devia ser encenado como um texto de Beckett que tivesse acabado de ser descoberto”.
Esta peça demonstra bem que não se trata de uma boutade. É com inteira naturalidade que o espectador transita dos velhos compinchas desmemoriados Gorman e Cream, de Velha Toada, para o escritor falhado Krapp, que assinala os aniversários procurando reter o seu próprio devir em bobines de fita magnética, com uma consciência simultaneamente irada e comovida do patetismo da tentativa, e depois para os inocentes pastores Benito e Brás, isentos de saber ou memória, que vão assimilando, perplexos e deslumbrados, o enigmático conceito cristão do Natal: “Y ahora ñace outra vez?/ De mil años s’acordó?”. Respondendo em português culto ao seu ingénuo saiaguês, já de sabor arcaico no tempo de Gil Vicente, a personagem da Fé, interpretada por Sara Barros Leitão, faz-lhes ver (e faz-nos ver a nós, fornecendo-nos uma possível chave para esta peça que reúne dois autores que só as formalidades cronológicas afastam): “Tanto monta se agora/ contemplares aquela hora/ como s’agora passara”.
Nuno Carinhas faz questão de deixar claro que a circunstância de estar agora a fechar um ciclo da sua vida profissional não nos deve levar a ver nesta peça uma qualquer intenção testamentária, mas há nela uma evocação ostensiva do seu próprio percurso, inteiramente coerente com a centralidade que o tema da memória desempenha nos três textos que compõem Uma Noite no Futuro. O próprio facto de a cenografia recuperar uma série de objectos vindos de encenações anteriores – o tapete de O Tio Vânia (2005), o beliche de Breve Sumário da História de Deus (2009), a porta de Exactamente Antunes (2011), o alguidar de Alma (2012) – pode ser entendido em analogia, também ela ao mesmo tempo auto-irónica e sentimental, com as bobines que Krapp grava todos os aniversários para, como se diz em contexto judicial, “memória futura”.
E se admitirmos que Shakespeare é demasiado universal para poder corresponder verdadeiramente a uma predilecção pessoal, talvez Gil Vicente e Samuel Beckett sejam os grandes autores de Carinhas, ou pelo menos aqueles a que mais continuamente voltou no TNSJ. Do primeiro já encenara Beiras (espectáculo de 2007 que juntava A Farsa de Inês Pereira, A Farsa do Juiz da Beira e a Tragicomédia Pastoril da Serra da Estrela), Breve Sumário da História de Deus e Alma, a partir do auto homónimo. Com o segundo lidara pela primeira vez em 2006, quando encenou Todos os que Falam, baseado em quatro “dramatículos”, e regressara a ele mais recentemente com Ah, os Dias Felizes (2013).
A decisão de agora reunir em palco o português do início do século XVI e o irlandês do século XX não corresponde a um desses achados mais surpreendentes do que consistentes. Pelo contrário, ela surge como corolário natural de uma reflexão partilhada de muitos anos, e desenvolvida na íntima e intensa relação com os textos que o trabalho dramatúrgico implica, acerca das afinidades entre ambos. “Tínhamos a percepção de que Gil Vicente, quando comparado não apenas com Shakespeare, face ao qual tudo parece obsoleto, mas também com autores como Molière, Racine ou Corneille, parecia muito antigo, mesmo para um autor do início do século XVI”, diz Sobrado, “mas quando o comparamos com autores do século XX, ele parece muito moderno”.
Memória esburacada
O actual presidente do TNSJ acredita que estas percepções aparentemente contraditórias se explicam pelo facto de autores como Brecht, Beckett ou Ionesco terem reposto em circulação formas teatrais que se relacionam com o teatro medieval, do qual Gil Vicente, na sua posição de charneira, seria ainda de algum modo o último grande cultor na Europa. O “desdém pela unidade de tempo e acção” ou a estratégia de criar um “estendal de episódios” são algumas dessas afinidades apontadas por Sobrado, que nota que “a Serra da Estrela, ou a Fé e a Alma, estão para Gil Vicente como as torres de Manhattan ou a Europa estão para Brecht: são personagens”. E vê mesmo na parelha pastoril de Benito e Brás “ascendentes remotos” da dupla beckettiana de À Espera de Godot, sugerindo que “os actores não precisariam de mudar muito o registo de interpretação” para encarnarem as personagens de Vladimir e Estragon.
Nuno Carinhas acrescenta que há ainda tanto em Gil Vicente como em Beckett “um tratamento muito forte do divino”, e que a equívoca reputação de autor cómico que o primeiro foi granjeando contribui para ocultar “que também há ali um grande negrume”. Sobrado encontrou no filósofo italiano Giorgio Agamben uma definição de contemporâneo que lhe parece esclarecer o modo como ele próprio foi pressentindo a contemporaneidade de Vicente e Beckett. “Contemporâneo é aquele que mantém o olhar fixo no seu tempo, não para captar a sua luz, mas as suas trevas”, escreveu Agamben, cuja posterior reformulação desta tese talvez ilumine de forma ainda mais minuciosa uma das ideias centrais desta peça: “Captar, na escuridão do presente, a luz que se esforça por chegar até nos sem nunca nos alcançar – é isto o que significa ser contemporâneo”.
O tocador de realejo Cream, cuja máquina está sempre a falhar, tal como a sua memória, e o seu velho amigo Gorman (respectiva e notavelmente interpretados por Paulo Freixinho e Alberto Magassela), rememoram lugares, lojas, pessoas que conheceram, mas não se entendem nos pormenores, e vão-se exasperando um com o outro, enquanto lamentam, ao agressivo som dos velozes carros que passam, o fragmentado e “ruinado” mundo presente, ignorando, nota Sobrado, que descrevem a sua própria "memória esburacada". Estão ambos desejosos de fumar um cigarro, mas “bisparam” o isqueiro a Gorman, de modo que vão pedindo lume aos transeuntes que se aproximam, mas nenhum lhes traz essa chama pela qual anseiam.
Também Krapp (João Cardoso), mergulhado na sua áudio-treva de vozes fantasmáticas, nas quais vai reconhecendo com pungente escárnio os vários idiotas que foi sendo, nos fala de uma “memorável noite de Março” em que “de repente tudo se tornou claro”. Uma noite que não volta, ou só volta sem verdadeiramente voltar no ritual de uma memória assistida, como esse nascimento irrepetível e constantemente reactualizado a cujo mistério os simples pastores (Paulo Freixinho e João Delgado Lourenço) tentam aceder fechando os olhos, por sugestão da própria Fé, ao esplendor das celebrações natalícias.
“Tanto em Gil Vicente como em Beckett há um negrume, mas também uma luz que está sempre prometida e nunca chega”, como na definição de Agamben, argumenta Sobrado, para quem Uma Noite no Futuro pode ser vista como “uma peça sobre a memória enquanto tecnologia obsoleta”, representada pelo “realejo escangalhado” e pelas anacrónicas bobines de Krapp, ou ainda pela “cassete doutrinária” da Fé.
As três partes do espectáculo, às quais se soma, como uma espécie de coda, um poema de Filipa Leal, partilham uma mesma cenografia, que tem a madeira como material predominante e que se reduz ao essencial: o beliche onde a Fé e Krapp vão aguardando a sua entrada em cena, a primeira sempre atenta, o segundo a dormir, a secretária antiga do escritor falhado, o venerado sacrário que guarda a árvore da vida, onde uma nova folha brotou. Tão belo quanto eficaz, é um cenário para o qual, nota Carinhas, se poderiam ter convocado, além destas personagens de Gil Vicente e Beckett, “muitos outros textos, muitos outros espectros”.
Lembrando que todo o teatro que fez “assenta na memória”, o encenador defende que neste tempo marcado pela velocidade sente ainda mais reforçada “a obrigação de trabalhar com a memória e com as raízes culturais”. Como as que lhe fornece Gil Vicente. “Se tivesse nascido em Nova Iorque, estaria imbuído da cultura americana, mas nasci em Portugal, em Lisboa, e depois vim para o Porto, e tudo isto é a minha bagagem, e não se pode fazer teatro apesar dela, temos de ter um fundamento qualquer, por muito eruditos e cosmopolitas que sejamos, não podemos perder as nossas raízes”.