De Braga ao Brasil e a ironizar com isso

Cinco anos depois de Dentro, disco de estreia gravado em São Paulo, Cati Freitas ressurge com Estrangeira, onde ironiza com esse cruzamento, o de uma cantora nascida em Braga com o Brasil por laboratório.

Foto
Miguel Ângelo

Foram precisos cinco anos após a gravação do seu disco de estreia, Dentro, para que Cati Freitas encontrasse um caminho mais pessoal para a sua música. E esse caminho tomou forma em Estrangeira, disco onde assina a quase totalidade dos temas e até a produção.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Foram precisos cinco anos após a gravação do seu disco de estreia, Dentro, para que Cati Freitas encontrasse um caminho mais pessoal para a sua música. E esse caminho tomou forma em Estrangeira, disco onde assina a quase totalidade dos temas e até a produção.

Nascida em Braga, há 33 anos, o primeiro disco gravou-o em São Paulo, Brasil, com um quarteto que incluía o pianista Tiago Costa (que acompanhou Maria Rita nos primeiros trabalhos), Sylvinho Mazzuca, Cuca Teixeira e Felipe Roseno. O disco, lançado em 2013, tinha versões de temas de Marcelo Camelo, Rodrigo Amarante, Maria Gadú, Caetano Veloso, Vinicius de Moraes e Baden Powell ou Chico Buarque e Edu Lobo, mas todas elas cantadas em português de Portugal, a par de três temas escritos inteiramente por ela.

Cati vinha de um processo que começou aos 18 anos, na Operação Triunfo (inscrita pela mãe, ali cantou Amália e Madonna) e continuou mais tarde quando a convidaram a fazer coros nos Expensive Soul ou a participar num tributo a Joni Mitchell no CCB. Com uma paragem de três anos pelo meio, onde voltou a Braga e continuou a estudar enfermagem. Visto à distância, o primeiro disco teve para ela o efeito de definir a voz: “Foi mais interpretativo, eu ainda não tinha percebido para onde seguir. Precisei de parar, para entender o que esta voz interior me estava a querer dizer.”

Fiel a um sentimento

Regressou a casa, ao Minho, e aí apercebeu-se que tinha de escrever o seu próprio disco: “Primeiro escrevi muitos textos, sem música. E deitei muita coisa ao lixo, porque não gostava do que tinha escrito.” O exercício implicou ler muita poesia, muitos livros. “Li mais do que ouvi música, neste processo. Aliás, deixei de escutar música, fui mais pela palavra. E foi um pouco sofrido porque, como quis ser completamente fiel ao que sentia, percebi que descrever um sentimento é muito difícil.”

Mas quando encontrou um caminho, o que se seguiu acabou por ser mais fácil. “A divulgação não me custou, porque se o processo foi rebuscado, tentei não intelectualizar as minhas letras, porque à medida que ia escrevendo, percebi onde é que eu me situava interiormente, como ser humano.” O que leu, nesse processo? “Li muito Adélia Prado, Clarice Lispector, li Paulo Coelho, Mia Couto. Tive momentos em que me focava em ler dez poemas por dia e tentava absorver aquilo que os poemas me diziam. E senti que isso foi muito importante, até para assimilar novas palavras na minha mente. Mas mais do que mergulhar no universo desses autores, ao mesmo tempo que absorvia eu tentava limpar, para procurar a minha própria estética.”

Foto
Miguel Ângelo

E aqui a música ia entrando. “Primeiro a voz, num gravador. Depois a letra e a melodia. Normalmente surge-me a melodia e depois a letra, mas houve temas, como Jardins de gardénia, onde surgiu primeiro a letra e escrevi depois a música numa semana. Já Falo com Deus levou três meses a fazer. Porque senti muito a necessidade de escrever sobre um estado de oração e queria dar-lhe um som. Quando eu estava nesse estado, ia buscar o meu gravador e tentava colocar, em forma meditativa, som àquele sentimento. Pode parecer pouco objectivo, mas preciso de ter um retrato sonoro do que sinto interiormente, não consigo compor sem ter uma emoção forte.”

Estrangeira, a canção que abre o disco e lhe dá título, é quase um manifesto, mescla de declaração de princípios e de afirmação de identidade. “É uma apresentação, em nome próprio, na primeira pessoa do singular.” Antes dela, porém, numa curta declaração que serve de prefácio ao disco, Cati Freitas escreve: “É preciso encontrar o molde da expressão, cozinhá-lo no sábio forno do tempo, só isso me inquieta.” E o lugar de gestação do novo disco voltou a encontrá-lo no Brasil, onde concretizara com êxito o primeiro.

“É um regresso. A minha relação com o Tiago [Costa, pianista, compositor e arranjador brasileiro, que co-assina com Cati Freitas a produção] é de cumplicidade e afinidade muito grande, musical e pessoal, e tem-se desenvolvido de forma muito intensa. Mantive sempre contacto com ele e quando quis partir para uma nova aventura também senti que queria uma nova paisagem sonora. Então, para além do Tiago, quis fazer uma mistura daquilo que tinha acontecido no primeiro disco, mas com pessoas novas, dada a sonoridade que eu pretendia, de uma maior contemporaneidade.” Daí a participação no disco, como co-produtor, de Conrado Goys, guitarrista, violonista, compositor e arranjador, que acompanha actualmente o cantor Pedro Mariano, irmão de Maria Rita, e já trabalhou com dezenas de músicos brasileiros de várias gerações.

Fora, a olhar para dentro

Com influências do jazz, da pop mas também da música tradicional portuguesa, os temas carregam uma atmosfera que oscila entre a suavidade e a densidade instrumental. O que, de certo modo, a reflecte: “Tanto sou muito calma como muito intensa. Então, consoante o que queria passar, ia aliando essa força ou essa serenidade, porque é assim que eu sou. Tanto posso ser uma calmaria como um vendaval.”

Curiosamente, a calmaria reflecte-se mais nas versões de temas originalmente fortes, como Barco negro (de Amália) ou Perdidamente (Trovante). “O Barco negro tem esse poder, interpretativo e instrumental. Mas eu tenho a minha visão da morte, da separação. E não quis associar a morte a um lugar pesado, a uma veste preta, quis transmitir uma aceitação e uma leveza de quem aceita a partida, e dizer que não é por essa pessoa ter partido fisicamente que ela morreu para sempre, porque continua comigo, no meu coração.” Isto tem a ver sobretudo com a sua percepção espiritual da vida. “Com a minha fé. Não sou católica, sou espiritualizada, não sigo nenhuma religião. Mas acredito noutras vidas. Há a morte do corpo, sim, mas acho a alma e a consciência não morrem.”

Perdidamente teve outro objectivo: “É uma canção de amor que quis dedicar ao palco porque, como estive muito tempo afastada, quis falar com ele baixinho e dizer-lhe: que saudades eu tenho.” E contou, aqui, com Jaques Morelenbaum: “Aquele violoncelo canta. E o Jaques tem essa profundidade quando toca traz toda uma alma, todo um ‘arquivo’ que está dentro dele.”

Já o nome Estrangeira, diz ela, vem uma necessidade: “A de dizer que essas influências existem porque foi com artistas desses quadrantes geográficos [sobretudo o Brasil] que percebi a importância da palavra e da poesia. Mas nem por isso deixo de ser portuguesa e de estar focada na minha nacionalidade e na minha pátria. E Estrangeira vem ironizar com isso: apesar de eu ter um olhar para fora, este disco é totalmente um olhar para dentro.”