Um Quartett de crueldade, amor e compreensão
Passados 19 anos sobre a estreia original, as companhias belgas tg STAN e Rosas regressam a Quartett, de Heiner Müller. Acontece que o tempo passou também para os intérpretes e a fisicalidade da peça é hoje mais rica. De terça a quinta, ocupa o palco do D. Maria II, em Lisboa.
Em 1999, a bailarina Cynthia Loemij e o actor Frank Vercruyssen tinham pouco mais de 30 anos. O seu encontro em palco, enquanto Merteuil e Valmont, seguindo as pistas do texto de Heiner Müller (Quartett) a partir do romance epistolar As Ligações Perigosas, de Choderlos de Laclos, num jogo de manipulação de afectos e desejos, em que ambos tentavam tanto seduzir quanto manietar o outro, tinha então uma carga muito diferente. Agora que regressam a essa peça – apresentações de terça a quinta-feira no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa – que iniciou uma série de colaborações entre as companhias belgas tg STAN (teatro) e Rosas (dança), os seus corpos são outros e as histórias que carregam consigo têm outro lastro. Deixaram de ser corpos quase só com futuro pela frente para passarem a ser corpos marcados pelo passado que acumulam.
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Em 1999, a bailarina Cynthia Loemij e o actor Frank Vercruyssen tinham pouco mais de 30 anos. O seu encontro em palco, enquanto Merteuil e Valmont, seguindo as pistas do texto de Heiner Müller (Quartett) a partir do romance epistolar As Ligações Perigosas, de Choderlos de Laclos, num jogo de manipulação de afectos e desejos, em que ambos tentavam tanto seduzir quanto manietar o outro, tinha então uma carga muito diferente. Agora que regressam a essa peça – apresentações de terça a quinta-feira no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa – que iniciou uma série de colaborações entre as companhias belgas tg STAN (teatro) e Rosas (dança), os seus corpos são outros e as histórias que carregam consigo têm outro lastro. Deixaram de ser corpos quase só com futuro pela frente para passarem a ser corpos marcados pelo passado que acumulam.
A riqueza do texto e as enormes possibilidades que oferece fizeram da peça de Müller uma das mais apetecíveis do reportório teatral, tendo originado encenações como aquela em que Isabelle Huppert se bateu com Ariel Garcia Valdès sob a direcção de Robert Wilson – por cá, ainda há dois anos Crista Alfaiate e Ivo Canelas se precipitavam para o fim do mundo sob o olhar de Jorge Silva Melo. No caso do encontro entre tg STAN e Rosas, em 1999, acabou por ser o pretexto perfeito para as irmãs Jolente e Anne Teresa de Keersmaeker criarem um espaço que permitisse o encontro entre duas fortíssimas linguagens de teatro e de dança.
“Aquilo que a Anne Teresa e eu fizemos nesses anos”, lembra ao PÚBLICO Jolente de Keersmaeker, co-criadora de um espectáculo inventado a quatro, “foi uma pesquisa sobre o que acontece quando um bailarino fala e quando um actor dança.” E foi a partir dessa pesquisa que Quartett começou a tomar forma, encaminhando-se para algo que Jolente acredita ter correspondido à descoberta de “uma terceira linguagem”. Nem música, nem dança – antes um híbrido, em que nenhuma expressão subjuga a outra. Tentando combinar dois métodos de trabalho muitíssimo distintos – as coreografias de Anne Teresa são de um enorme rigor, as peças dos STAN são ensaiadas em leituras de mesa, só se descobrindo verdadeiramente no palco quando se vêem diante do público –, a coreógrafa começou por criar sequências de movimentos para Cynthia e para Frank. Só depois o texto entrou e procuraram estabelecer ligações entre o movimento e a palavra, inscrevendo uma narrativa nos corpos e retrabalhando a gestualidade que acompanha as palavras.
Amor e compreensão
Quartett tinha ficado num lugar bonito das prateleiras dos tg STAN e da companhia Rosas, enquanto iluminada colaboração que injectava uma extraordinária fisicalidade ao jogo de gato-e-rato que Merteuil e Valmont desembainhavam em palco. E teria permanecido nessa condição de passado caso Marie Collin, directora do Festival d’Automne, em Paris, não tivesse pedido que a peça fosse remontada para a edição deste ano, que inclui um foco particular sobre a obra de Anne Teresa de Keersmaeker.
O desafio, recorda, Jolente de Keersmaeker, foi prontamente aceite. “Estando a Cynthia e o Frank quase 20 anos mais velhos, quisemos ver o que este texto faria com eles.” E, na opinião da fundadora dos STAN, aquilo que aconteceu foi um profundo acréscimo de densidade. “É mesmo incrível”, comenta, não escondendo que prefere sem hesitações esta nova versão. “Cada palavra e cada significado nos jogos cruéis que eles têm um com o outro parecem muito diferentes.” Mais do que a luta entre uma mulher e um homem, reconhece agora a actriz e encenadora, a peça coloca em cena “uma luta entre dois seres humanos que tentam viver juntos ou lidar com o outro”. O que importa não são questões de género ou de natureza sexual, acredita, mas sim “a linha ténue entre o amor e o ódio, a questão do que é realmente o amor e se é sempre cruel ou não”.
Se há 19 anos esse jogo de crueldade era travado com as armas de uma enorme fisicalidade, essa característica mantém-se neste novo Quartett. Só que traz consigo corpos que, com os anos, se tornaram mais vulneráveis. A tentativa de manipulação e de controlo do outro, sem alterar uma vírgula ao texto, faz-se agora com as fraquezas mais expostas. E a idade operou em todos um olhar renovado sobre o texto de Müller, revelando sugestões de humor e toda uma série de nuances e ambiguidades que tornam a peça mais humana. A ponto de Jolente já não pensar de imediato apenas em crueldade em relação a Quartett, ocorrendo-lhe também as palavras “amor” e “compreensão”. Nem tudo é o que parece, diz-nos. Sobretudo passados 20 anos.