Uma interpretação do presente e um cenário futuro
As alterações climáticas tornaram-se um tema perene que, contrariamente a muitos outros, teima em não passar de moda.
Parte significativa da população mundial vive todo o dia atenta às notícias que atingem permanentemente os seus telemóveis, computadores e televisões, vindas de todos os cantos do mundo. Agora surge nos media a Conferência das Nações Unidas sobre o clima que decorre atualmente, de 2 a 14 de dezembro, em Katowice, Polónia.
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Parte significativa da população mundial vive todo o dia atenta às notícias que atingem permanentemente os seus telemóveis, computadores e televisões, vindas de todos os cantos do mundo. Agora surge nos media a Conferência das Nações Unidas sobre o clima que decorre atualmente, de 2 a 14 de dezembro, em Katowice, Polónia.
As alterações climáticas tornaram-se um tema perene que, contrariamente a muitos outros, teima em não passar de moda. A razão desta resistência é ser um problema real, sobretudo de médio e longo prazo, gerado de forma inadvertida pela humanidade e ao qual é necessário dar resposta.
Muitos dizem que se não eliminarmos progressivamente as causas das alterações climáticas, ou seja, se não fizermos uma transição energética para as energias renováveis e se não aumentarmos muito a eficiência energética, a humanidade aproxima-se da catástrofe, ou até, segundo um grupo menos numeroso, da extinção. Não me identifico com estes cenários catastrofistas, em parte porque o significado da palavra catástrofe neste contexto não está definido. A ideia da catástrofe e da eventual extinção é indefinida e simplista enquanto tudo o que diz respeito ao homem é complexo e quase sempre imprevisível, sobretudo nos detalhes.
O Homo sapiens é uma espécie biológica recente, com cerca de 300.000 anos, e tem uma capacidade de sobrevivência e de adaptação notáveis que já foi posta à prova muitas vezes no passado. Mas, além das alterações climáticas, há muitos outros sinais perturbantes nas notícias que teimam em permanecer: profundas polarizações e crispações políticas e violência em vários países; enfraquecimento da prática e dos valores da democracia e migrações humanas persistentes provenientes de países muito fragilizados, alguns vitimizados por conflitos, entre muitos outros sinais. Que se passa?
Se me pedissem para eleger uma característica determinante da época em que vivemos, e apenas uma, escolheria o decrescimento das médias decadais do aumento anual do PIB mundial a preços constantes desde a década de 1940. Por outras palavras, o PIB mundial anual, descontada a inflação, continua em média a aumentar mas o valor médio da percentagem de aumento anual tem baixado desde o final da Segunda Guerra Mundial. Durante o período de 1940-1970 a média do PIB mundial anual a preços constantes cresceu anualmente cerca de 3,8%, mas este valor decresceu para 3,3% de 1970 a 2000 e para 2,7% de 2000 a 2014. Se considerarmos o PIB per capita mundial a preços constantes, o que constitui um indicador preferível para a riqueza a nível pessoal, o decrescimento é ainda mais acentuado. Na década de 1960 a média do crescimento anual do PIB mundial anual per capita a preços constantes foi de 3,3% e decresceu para 1,4% na década de 2000.
Estes decrescimentos, mais acentuados nos países com economias avançadas do que em algumas economias emergentes e em especial na China é o oposto da narrativa da esmagadora maioria dos decisores políticos através do mundo. Note-se que estes decrescimentos se dão apesar da revolução digital, uma das componentes emblemáticas da 3.ª Revolução Industrial!
Porém, o que os decisores políticos salientam nos seus discursos é o poder e o sucesso da inovação tecnológica em promover o crescimento. Procuram convencer que as suas políticas asseguram o crescimento da economia o que, supostamente, garantirá o aumento do poder de compra dos seus eleitores. O discurso político está a divergir progressivamente da realidade socioeconómica e ambiental e não se vê um esforço de análise e de comunicação aos eleitores sobre o que se está a passar. O problema é efetivamente muito mais complexo do que o discurso político dá a entender.
De acordo com o World Inequality Report de 2018, a percentagem do rendimento total nos grandes países e regiões do mundo em 2016, partilhada pelos 10% com maiores rendimentos, era 37% na Europa, 41% na China, 46% na Rússia, 47% nos EUA-Canada, cerca de 55% na África subsaariana, Brasil e Índia e 61% no Médio Oriente. No período de 1980-2016 as desigualdades cresceram acentuadamente na América do Norte, China, Índia e moderadamente na Europa. No caso dos EUA, que funcionam como modelo e ensaio geral daquilo que depois se passa no mundo, um estudo de T. Piketty, E. Saez e G. Zucman (Piketty, 2016), que referi em artigo anterior, mostra claramente que o começo do agravamento das desigualdades se situa no início da década de 1980. De acordo com o relatório do Banco Suíço UBS a riqueza total dos bilionários (com mais de mil milhões de dólares) aumentou de 19% em 2017 atingindo 8,9 milhões de milhões de dólares. A riqueza total dos 2158 bilionários que a UBS identifica no mundo atual aumentou 1,4 milhões de milhões de dólares em 2017, o que é considerado o maior crescimento jamais registado por esse segmento em termos absolutos.
Em resumo, as sociedades e os respetivos governos reagiram à adversidade do decrescimento do PIB per capita global nas últimas três décadas com egoísmo, aumentando as desigualdades de riqueza de forma grotesca. Do ponto de vista da teoria económica neoclássica mainstream o sistema defendeu-se privilegiando aqueles que considera serem os principais impulsionadores do crescimento económico, os promotores da riqueza, ou seja, os que têm inteligência, visão e capacidade financeira para investir, diminuindo-lhes a carga fiscal através de variados mecanismos diretos e indiretos e lacunas jurídicas intencionais, na esperança de que eles voltem a assegurar o crescimento da economia verificado depois da Segunda Guerra Mundial.
Mas por que razão a média decadal do aumento do PIB mundial anual a preços constantes está a diminuir? Há muitas opiniões sobre as causas, mas as principais razões são: demográficas nos países com economias avançadas; aumento da dívida pública e privada à escala global que, de acordo com um relatório recente do FMI, é já bastante superior à de 2008, antes da crise financeira e económica gerada nos EUA; maior procura e consequente menor abundância de recursos naturais renováveis e não renováveis; maior procura de energia e de água a nível mundial, e alterações climáticas, através da maior frequência e intensidade de alguns fenómenos extremos, tais como ondas de calor, secas, fogos florestais, inundações, tempestades extra tropicais e ciclones tropicais, e ainda através da subida do nível médio global do mar. Note-se que a importância, sobretudo retórica, que os governos dão hoje em dia à economia circular, na qual há reciclagem e reutilização dos recursos naturais, tem origem no facto de que sem ela o crescimento económico fica muito mais difícil. É necessário abandonar a economia linear, onde não há reciclagem nem reutilização, caso contrário, a procura crescente dos recursos torna-os mais escassos, logo mais caros, e isso prejudica o crescimento económico.
Será que o aumento das desigualdades de riqueza e de rendimentos vai resolver algum destes problemas? Não, trata-se de um mecanismo de fuga e defesa do sistema financeiro e económico, personalizado por aqueles que com esse sistema detêm grande parte do poder no mundo atual e estão claramente a ver o filme que se avizinha. O atual sistema financeiro e económico está cada vez mais desajustado a um planeta dominado pelo homem, que não tem limites para a sua ambição de prosperidade económica e de consumo de bens e serviços, cuja população continua a crescer vigorosamente, sendo que o raio da Terra não cresce, mantendo-se teimosamente nos 6371 km. Marte, quando receber grupos de humanos, será sempre a antítese da Côte d’Azur.
A solução que se perfila no horizonte é a inovação tecnológica, concretamente a Quarta Revolução Industrial, que inclui a nanotecnologia, engenharia genética, biologia sintética, geoengenharia do clima, e sobretudo a robótica e a inteligência artificial em todas as áreas de atividade humana desde os transportes à medicina, ao comércio e indústria, à gestão das cidades, aos serviços de justiça, à segurança e à guerra. Há, pois, o perigo de gerar uma classe crescente de humanos “sem utilidade” (useless class) como lhe chama Yuval Harari e que George Wells, já em 1901, no seu ensaio An Experiment in Prophecy, designava por “pessoas do abismo” (people of the abyss). Será que os “sem utilidade” vão aceitar indefinidamente a sua condição? Será que é humano não ter utilidade na sociedade onde se vive?
Com a fé ilimitada no poder da ciência e da tecnologia os problemas da sustentabilidade passam a interpelar muito menos a geração social contemporânea e especialmente o seu comportamento. Neste discurso a tecnologia irá certamente resolver todos os problemas que se irão colocar às gerações futuras. Por outro lado, como o progresso da civilização humana é uma realidade insofismável desde a Revolução Industrial, excetuando alguns períodos terríveis, sobretudo as duas Guerras Mundiais, as gerações vindouras terão em média mais prosperidade económica e, portanto, melhores condições para resolver os problemas com os quais serão confrontadas, entre os quais se encontram as alterações climáticas e os outros problemas referidos.
Este é o discurso, muito provavelmente erróneo, que tem prevalecido na prática. Desde o princípio da década de 1970 que os combustíveis fósseis asseguram cerca de 80% das fontes primárias de energia à escala global, apesar da recente penetração das energias renováveis. A indústria dos combustíveis fósseis tem sido extremamente hábil em manter o seu mercado, tentando convencer que a transição energética é impossível e, também, lançando suspeições sobre a credibilidade científica das alterações climáticas antropogénicas, ou mais concretamente negando ou omitindo que as emissões de CO2 em larga escala causam uma mudança climática.
As Conferências das Nações Unidas sobre o clima, e em particular a de Katowice, têm poucas probabilidades de iniciar um processo robusto de mitigação das alterações climáticas porque quem negoceia são os governos, mas alguns deles estão reféns das grandes empresas multinacionais dos combustíveis fósseis, e dos respetivos acionistas, que têm efetivamente a capacidade para determinar o futuro energético do planeta. Também aqui se observa que o sistema governativo, financeiro e económico atual está desajustado dos problemas globais com que a humanidade está confrontada.
Será que a insustentabilidade do sistema atual irá gerar um futuro catastrófico? Os grupos sociais que detêm uma parte crescente do poder e da riqueza mundial saberão certamente evitar as adversidades desse futuro. Porém, a maior parte da população dos países mais vulneráveis e frágeis e uma grande parte da população economicamente desfavorecida dos outros, em particular “a classe dos sem uso” irá sofrer. A sua prosperidade económica e o seu bem-estar irão diminuir. Se se aceitar que se terá de fazer uma transição para a sustentabilidade a nível da exploração dos recursos naturais, da proteção do ambiente, das alterações climáticas e do comportamento individual e coletivo, teremos de inverter a tendência para o aumento das desigualdades. Diminuir o imposto sobre a riqueza e depois instituir um imposto sobre o carbono, como aconteceu recentemente em França, é contrário à sustentabilidade. Só será possível atingir a sustentabilidade se caminharmos para um mundo menos egoísta, mais solidário e com menos desigualdades. Só será possível se a nível pessoal refletirmos mais sobre o presente e o futuro e influenciarmos as nossas ações com o resultado dessa reflexão.