Forte com os fracos…
A “almofada financeira” pública que não há maneira de descer e os resgates obscenos à banca constituem os principais desperdícios de dinheiros públicos do passado recente.
O primeiro-ministro anunciou no Parlamento que Portugal irá pagar antecipadamente o remanescente da dívida ao FMI até ao final do ano, cerca de 4700 milhões de euros (M€), o que permitirá algumas, pequenas, poupanças na despesa com juros porque a taxa de juro dos empréstimos ao FMI é um pouco mais alta do que a taxa de juro em euros.
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O primeiro-ministro anunciou no Parlamento que Portugal irá pagar antecipadamente o remanescente da dívida ao FMI até ao final do ano, cerca de 4700 milhões de euros (M€), o que permitirá algumas, pequenas, poupanças na despesa com juros porque a taxa de juro dos empréstimos ao FMI é um pouco mais alta do que a taxa de juro em euros.
O Governo deveria disponibilizar mais informação sobre as suas decisões
Seria bom que o Governo elucidasse sobre os cálculos subjacentes nesta como noutras decisões similares. Por exemplo, a decisão de emitir dívida a cinco anos em moeda chinesa (“panda bonds”) a uma taxa de juro que provavelmente será próxima de 5%...
Refira-se que os 4700 M€ de dívida remanescente de Portugal ao FMI vencem entre 2021 e 2024, i.e., têm maturidades entre três e seis anos, com a maior parte dessa dívida (cerca de 4000 M€) a vencer em 2021 e 2022. A taxa de juro actual dessa dívida ao FMI, denominada em SDR (Special Drawing Rights), é de cerca de 2,08% (1,079% mais uma margem de 100 pontos base).
Contudo, a taxa de juro no mercado secundário para dívida com essa maturidade denominada em euros está entre -0,55% (3 anos) e +0,74% (seis anos).
Por conseguinte, se fosse emitida dívida em euros com a mesma maturidade da dívida ao FMI que se vence, as poupanças seriam de 85 a 90 M€ por ano, mas somente até 2021. A partir de 2022, as poupanças passariam a ser de cerca de 40 M€ por ano. E desapareceriam a partir de 2024. Isto porque a dívida ao FMI teria de ser amortizada nessas datas.
Essa poupança na despesa com juros da dívida ao FMI representa muito dinheiro, ainda que “migalhas” no contexto da enorme despesa anual com juros (8426 M€ previstos em 2018).
Assim, a decisão de amortizar antecipadamente essa dívida, numa primeira análise, parece ser uma medida positiva para o país, sobretudo se fosse acompanhada por uma diminuição da almofada financeira e do saldo bruto da dívida. Mas será mesmo?
Fundamentações inconsistentes nas opções políticas do Governo
Claro que a fundamentação desta operação de substituição da dívida ao FMI por dívida em euros a taxas de juro mais baixas deita por terra outras decisões do Governo. Como é que o Governo justifica esta operação, ao mesmo tempo que fundamenta uma operação para se endividar em moeda chinesa a uma taxa de juro que poderá ser de 5% ao ano?
O blogue do Wall Street Journal refere que o mercado das “panda bonds” tem estado em contracção devido às altas taxas de juro chinesas. O próprio Estado chinês, com rating A+/A1 pela S&P, muito melhor do que o de Portugal, paga taxas de juro 3,02% a cinco anos, ou seja taxas de juro muito superiores às taxas de juro a que Portugal se financia em euros, sem ter risco cambial.
Essa emissão de dívida pública portuguesa em moeda chinesa é justificada com o interesse em “diversificar” fontes de financiamento, mas então porque se acaba antecipadamente com o “diversificado” financiamento do FMI? A “bota não dá com a perdigota”. A China quer desenvolver o mercado de dívida em moeda chinesa e Portugal faz-lhe a vontade, é isso? Não se pode dizer não ao DDT?
Política de curto prazo, cega aos custos no longo prazo?
No entanto, para se fazer um brilharete no curto prazo, quase parece que se está disposto a entregar a filha em casamento.
Com efeito, os pagamentos antecipados da dívida ao FMI exigem a autorização do outro credor sénior do sector oficial, ou seja, as instituições da zona euro. Para obter esse consentimento, Portugal teve de prometer algo em troca ao Eurogrupo. Com efeito, parece que tudo (ou quase tudo) acaba por ser um jogo de dar para receber algo em troca (quid pro quo).
Desta feita, o Governo português comprometeu-se a continuar a manter uma almofada financeira de, pelo menos, 40% das necessidades de financiamento previstas para o ano seguinte. Segundo se depreende de artigo de Sérgio Anibal no PÚBLICO de 1 de Dezembro, já tinha sido essa a condição exigida pelo Eurogrupo para autorizar Portugal a amortizar antecipadamente a dívida ao FMI em 2016 e 2017.
Coloca-se, pois, a questão de saber se os benefícios acima identificados compensam os custos da almofada financeira, agora exigida, pelos credores europeus de Portugal.
Para a actual direcção do IGCP, essa exigência dos credores europeus não se traduz em quaisquer custos, porque meramente cristaliza em “pedra” – num compromisso internacional do Governo de Portugal – as suas preferências. É como que uma validação, pelas autoridades europeias, de que a gestão do IGCP está a ser prudente e responsável. Esquece-se que as autoridades europeias estão, neste ponto, a reflectir os seus próprios interesses enquanto credores, e que, por conseguinte, são os credores que acham bem e aplaudem que o IGCP mantenha uma almofada financeira de, pelo menos, 40% das necessidades brutas de financiamento.
Ou seja, ao exigir uma almofada de 40% das necessidades brutas de financiamento de médio e longo prazo do ano seguinte (presentemente, o IGCP mantém uma almofada de 51,6% dessas necessidades brutas), as autoridades europeias estão sobretudo a defender os interesses dos credores, e não os interesses do devedor (Portugal).
A tal almofada financeira de, pelo menos, 40% das necessidades brutas de financiamento (que corresponde a cerca de 6100 M€ na actualidade), tem custos.
Segundo o IGCP, em 2018, a taxa de juro média da dívida de médio e longo prazo é de 3,5%. Nessas condições, o benefício da operação de amortização antecipada de dívida ao FMI (85 a 90 M€ por ano) durante três anos, deveria ser medido em contraponto com o custo de manter a referida almofada financeira, que é de cerca de 213 M€ por ano (=6 100*3,5%). Note-se que não se conhece o prazo durante o qual o Governo se compromete a manter a almofada financeira perante o Eurogrupo, mas poderá ser um prazo longo, uma vez que os empréstimos das instituições europeias a Portugal têm maturidade média final de cerca de 20 anos.
Em resumo, a operação financeira anunciada pelo Governo não é assim tão positiva como parece.
Uma poupança de menos de 90 M€ por ano até 2021 e que desaparece completamente após 2024, em contraponto com o compromisso do Governo de manter uma almofada financeira que poderá custar 200 M€ por ano, durante um prazo indefinido, mas que poderá ser longo, não se afigura de facto uma medida de política económica avisada e prudente.
Estes pormenores deveriam ser conhecidos, para que, perante a decisão de avançar com a referida amortização antecipada de dívida ao FMI, a opinião pública portuguesa soubesse que “não há bela sem senão” e que os nossos parceiros europeus estão com frequência a “prejudicar-nos” por portas travessas…
Quem defende, então, o interesse do devedor Portugal?
O Governo de Portugal e o IGCP, em particular, não o parecem fazer neste caso. Parecem, pelo contrário, num caso típico de síndrome de Estocolmo, terem os interesses alinhados com os interesses dos credores de Portugal.
7900 milhões de euros é muito dinheiro parado a ganhar mofo…
No artigo do PÚBLICO antes referido, até parece que o IGCP se queixa que 7900 M€ é muito pouco dinheiro e é um montante insuficiente (“relativamente reduzido”). Mas 7900 M€ corresponde a quase 4% da riqueza produzida anualmente em Portugal!
Acresce que, na realidade, as Administrações Públicas têm muito mais dinheiro parado: 25 mil M€ (12,5% do PIB) em Setembro de 2018, incluindo os referidos quase 8 mil M€ do IGCP.
Em 2011, o défice orçamental foi de 13 mil M€ (7,4% do PIB). Em 2018, o défice orçamental será próximo de 0% do PIB. Mas o volume de depósitos das Administrações Públicas parece imune e indiferente a essa realidade e à subida do rating da República entretanto ocorrida, independentemente do seu custo para o erário público.
Esta “almofada financeira” pública que, faz anos, não há maneira de descer e os resgates obscenos à banca constituem os principais desperdícios de dinheiros públicos do passado recente.
Custa reconhecer mas, nestas duas dimensões, o actual Governo tem desapontado!