Lições europeias do terramoto francês
Quando se perde o controlo dos acontecimentos e não se sabe como recuperá-lo, o pior é, infelizmente, sempre possível.
Escrevo antes de conhecer as repercussões dos acontecimentos de ontem em Paris e no resto da França, mas os dados estavam lançados antes disso. Dados que ninguém – a começar pelo Presidente Macron – conseguiu antecipar e que estão na origem de um terramoto social sem precedentes, pelo menos desde 1968 (embora correspondam a uma velha tradição francesa de levantamentos populares surpreendentes e incontroláveis, como foi a Revolução de 1789).
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Escrevo antes de conhecer as repercussões dos acontecimentos de ontem em Paris e no resto da França, mas os dados estavam lançados antes disso. Dados que ninguém – a começar pelo Presidente Macron – conseguiu antecipar e que estão na origem de um terramoto social sem precedentes, pelo menos desde 1968 (embora correspondam a uma velha tradição francesa de levantamentos populares surpreendentes e incontroláveis, como foi a Revolução de 1789).
É um terramoto que nos confronta com a incapacidade de prever aquilo que, independentemente das enormes proporções que tomou – e a deriva no vandalismo e no caos –, se vinha anunciando ao longo dos últimos meses, quando Macron começou a perder o controlo dos acontecimentos e a ficar cada vez mais refém deles (desde o quase anedótico mas revelador caso do seu guarda-costas Benalla até às demissões sem aviso prévio mas afinal previsíveis dos ministros Hulot e Collomb das pastas nucleares da Ecologia e do Interior).
Mas como é que um Presidente eleito de forma tão fulminante – e auspiciosa – há apenas um ano e meio, com uma ambiciosa agenda reformista, que rapidamente se tornaria a mais promissora figura política europeia, acabou por ficar tão depressa prisioneiro de si mesmo, da sua arrogância majestática que o isolou no Eliseu e lhe fez perder o contacto com as realidades sociais dessa França que se propunha reformar?
Para além das tradicionais resistências às reformas que caracterizam a sociedade francesa – e que terá tratado de ânimo leve –, Macron não foi capaz de perceber até que ponto o selo que lhe colaram de "Presidente dos ricos" – devido, em grande parte, à supressão do imposto sobre a fortuna, visando desencorajar a fuga dos franceses mais abonados para paragens fiscais mais benignas – o precipitaria num abismo de rejeição junto das classes médias-baixas, dos desprezados da França profunda e, por isso, tão sensível aos efeitos de outro imposto, penalizador dos combustíveis e decretado por imperativo ecológico, mas potenciador das desigualdades.
A percepção dessas desigualdades de tratamento entre privilegiados e marginalizados – que Macron alimentou, aliás, com reacções de desprezo e soberba aos protestos que ia ouvindo – foi o rastilho na origem do incêndio que depois se propagou vertiginosamente através de toda a França. As reivindicações de um movimento inorgânico e à margem da representação de partidos, sindicatos e outros corpos intermédios multiplicaram-se de forma colérica e caótica, degenerando tantas vezes em actos de violência e vandalismo (alguns deles devido à infiltração de extremistas políticos). As cedências do poder chegaram tarde de mais, além de minarem, por outro lado, a autoridade do Estado.
Ao vazio ocupado transitoriamente – e ilusoriamente – por Macron e o seu partido, depois da derrocada parlamentar da esquerda e da direita nas eleições de 2017, seguiu-se outro vazio, quando se tornou evidente que os macronistas não tinham sido capazes de preencher o lugar deixado vago pelos partidos tradicionais através da França profunda (e também a outra). Ora, foi nesse território que medrou o movimento dos "coletes amarelos", aproveitando a força de propagação incendiária das redes sociais (o que torna Maio 68 quase um anacronismo pré-histórico). Um movimento sem porta-vozes e, logo, sem interlocutores, onde cabe tudo e mais alguma coisa, que ameaça já a sobrevivência política de Macron, a braços com índices inéditos de impopularidade, mas pode também mergulhar a França num estado de anarquia propício à explosão do populismo mais agressivo e às tentações autoritárias.
É por isso que o terramoto francês suscita tantos motivos de alerta e reflexão a uma Europa já em depressão profunda. Quem escapa agora ao contágio do que acontece em França? Quando se perde o controlo dos acontecimentos e não se sabe como recuperá-lo, o pior é, infelizmente, sempre possível. Eis também uma lição para nós, portugueses, nestes tempos de greves e reivindicações em cadeia.