Transformismo no exército nazi, entre a guerra e o espírito carnavalesco
Soldier Studies reúne 118 imagens de arquivo que são testemunho de um fenómeno que ocorreu durante a Segunda Guerra Mundial e que se mantém pouco estudado e documentado até hoje: o do transformismo no seio do exército de Adolf Hitler. Em conversa com o P2, o coleccionador Martin Dammann levanta o véu sobre o que poderá estar na origem de um fenómeno aparentemente inconciliável com os valores proclamados pelo Terceiro Reich.
“Um homem que cometa actos lascivos e indecentes com outro homem [será] castigado com pena de prisão”. Era este o articulado de uma lei alemã, conhecida por “Parágrafo 175”, que foi implementada em 1870 e abolida apenas em 1994. Durante a vigência do regime nazi a lei manteve-se, mas a sua implementação foi reforçada: em 1936, Heinrich Himmler – então chefe da organização paramilitar Schutzstaffel (também conhecida por SS) – criou o Departamento Central do Reich para o Combate à Homossexualidade e ao Aborto. Em consequência desta decisão, “milhares de homens foram enviados para os campos de concentração por serem homossexuais, onde acabariam por morrer”, pode ler-se hoje numa inscrição do Monumento de Homenagem aos Homossexuais Perseguidos Pelo Regime Nazi, erigido no Parque Tiergarten, em Berlim, em 2008.
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“Um homem que cometa actos lascivos e indecentes com outro homem [será] castigado com pena de prisão”. Era este o articulado de uma lei alemã, conhecida por “Parágrafo 175”, que foi implementada em 1870 e abolida apenas em 1994. Durante a vigência do regime nazi a lei manteve-se, mas a sua implementação foi reforçada: em 1936, Heinrich Himmler – então chefe da organização paramilitar Schutzstaffel (também conhecida por SS) – criou o Departamento Central do Reich para o Combate à Homossexualidade e ao Aborto. Em consequência desta decisão, “milhares de homens foram enviados para os campos de concentração por serem homossexuais, onde acabariam por morrer”, pode ler-se hoje numa inscrição do Monumento de Homenagem aos Homossexuais Perseguidos Pelo Regime Nazi, erigido no Parque Tiergarten, em Berlim, em 2008.
É provável que todos os soldados que figuram nas fotografias que compõem o livro Soldier Studies –? Cross Dressing in the Wehrmacht tenham cometido ou testemunhado actos de extrema violência – não fosse a II Guerra Mundial por tantos entendida como o pináculo da sistematização do extermínio humano. As 118 imagens de arquivo reunidas pelo artista alemão Martin Damman retratam elementos do exército nazi em ambiente festivo, na privacidade dos seus destacamentos militares nas diversas frentes de combate que se formaram no decorrer do conflito. São fotografias raras, exemplares únicos, e a sua junção resulta de 16 anos de busca intensiva e ininterrupta em arquivos familiares, colecções privadas e feiras de rua de todo o território germânico. O que têm em comum? Nelas figuram soldados vestidos de mulher ou que exibem comportamentos homossexuais.
Martin Dammann, em entrevista telefónica ao P2, divide a sua colecção de fotografias sobre transformismo no Terceiro Reich em quatro categorias. “A primeira está relacionada com rituais juvenis de iniciação à vida militar, que têm um aspecto bastante inocente”, explica. Na segunda categoria, coloca as fotografias dos espectáculos oficiais produzidos pela Kraft durch Freude, a organização do Terceiro Reich responsável (não estritamente) pelo entretenimento das tropas no exterior. Na terceira, Dammann coloca as fotografias relativas a espectáculos de grande produção que eram montados nos campos de prisioneiros de guerra. “A última e maior fatia das fotografias que estão disponíveis no livro foram tiradas na frente de guerra ou nas suas imediações, onde os soldados, por iniciativa própria, produziam o seu próprio entretenimento”, explica. Esse exercício consistia em peças de teatro, espectáculos musicais ou outros divertimentos que incluíam máscaras. “Sobre estas iniciativas, existe pouca ou nenhuma informação histórica”, lamenta o artista alemão, confessando ter passado os últimos três anos em busca de sustentação teórica para o livro que lançou em Novembro de 2018, pela editora Hatje Cantz. “Encontrei apenas breves menções em diários, cartas, algumas crónicas de guerra”, esclarece. “Nesses documentos privados, essas mascaradas não são descritas, analisadas. Acredito que fossem tão corriqueiras para os soldados que nem seriam dignas de referência; que seria algo demasiado evidente, demasiado normal.”
A normalidade e a excepção
Na raiz do comportamento transformista dos soldados nazis podem estar as tradições carnavalescas alemãs, sugere Dammann. “No Carnaval, era e é comum na Alemanha que um homem se vista de mulher e vice-versa.” O autor acredita que nas fotografias estão retratados soldados de todo o tipo de orientação sexual e identidade de género. “Neste contexto particular, essas preferências tornam-se indistintas, motivo pelo qual este tipo de acontecimento poderá ter sido utilizado pelos soldados para dissimular comportamentos de natureza homossexual”, refere. “Acho que é impossível distinguir, nas imagens, quais são os homens que mostram desejo sexual por homens ou por mulheres. Acho que, por vezes, ambos estão presentes na mesma fotografia.” Dammann analisou cada uma das imagens e garante que em nenhuma encontrou “indícios de irritação”. Nos rostos em redor da figura transformista ou dos protagonistas de uma demonstração de afecto homossexual não é visível nenhum sinal de desconforto, apenas manifestações de alegria. “Assumo que, naquele contexto carnavalesco, toda a gente tivesse a liberdade de se exprimir livremente e de ser feliz.”
O autor termina referindo que o fenómeno do transformismo em contexto militar não é exclusivo do exército nazi. “Tenho fotografias semelhantes de soldados americanos, britânicos, franceses. Já li crónicas da guerra napoleónica em que este tipo de comportamento vem descrito. Creio que o contexto de guerra conduz os soldados a assumir o mesmo tipo de reacção.”