Aprender com a crise da Fundação Mário Soares

A crise na FMS tem outro efeito perverso que é a desconfiança de que a entrega de espólios e acervos a instituições que pareciam sólidas se revele instável com o tempo.

Este artigo pode ser entendido como manifestando um conflito de interesses. Fica já isto dito à cabeça, embora pense que na verdade não o seja, visto que o que me move é uma questão de interesse público que está muito para além de também eu “andar aos papéis” para o Arquivo Ephemera.

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Este artigo pode ser entendido como manifestando um conflito de interesses. Fica já isto dito à cabeça, embora pense que na verdade não o seja, visto que o que me move é uma questão de interesse público que está muito para além de também eu “andar aos papéis” para o Arquivo Ephemera.

O assunto é, como é óbvio, a crise da Fundação Mário Soares (FMS), uma instituição com enorme mérito, que muito estimo e que acompanho praticamente desde a sua criação. Aproveito, aliás, para dizer que o que se diz pelas redes sociais e nos comentários, mesmo de leitores do PÚBLICO, sobre essa crise me merece a maior repulsa e um sentimento de vergonha pelos meus semelhantes capazes de se regozijarem com o que se está a passar em nome do ódio a Mário Soares. Esse ódio justifica para eles uma política de terra queimada, o equivalente a queimar livros numa pira como se fazia nos tempos do nacional-socialismo. A crise da FMS empobrece-nos a todos e torna Portugal pior.

Mas há que reflectir, até porque a crise da FMS tem efeitos perversos para além do seu próprio destino. Um deles é acentuar a concentração de arquivos em instituições que não têm os recursos, nem muitas vezes a sensibilidade para valorizar determinados espólios que exigem uma especialização de “olhar”, como é o caso de alguns espólios que para um grande arquivo parecem menores e pouco interessantes. Vejo por isso com preocupação a ideia de que tudo possa ir parar à Torre do Tombo, ou a outros grandes arquivos estatais, independentemente da qualidade da sua gestão. A Torre do Tombo é excelentemente gerida e, no caso actual, até por alguém que percebe a importância do tipo de espólios contemporâneos do género daqueles que se encontram na FMS. Mas não foi assim num passado recente e nada nos garante que seja assim no futuro.

Os arquivos estatais e bibliotecas estão cheios de espólios mortos que foram oferecidos com grande esperanças por individualidades ou famílias ou instituições e estão lá a um canto fechados no mesmo estado em que entraram. E não é bom que se enfraqueça a existência de arquivos variados no seu conteúdo e especialização, pertencentes a universidades (como é o caso do Centro 25 de Abril), a instituições locais, colectividades, autarquias, partidos políticos, clubes, etc. O facto de um arquivo e um conjunto de espólios pertencerem a uma colectividade específica torna o seu uso e divulgação mais diferenciado e enriquecedor não só pelo trabalho de memória que é importante para quem o detém, como para diversificar a oferta a investigadores e ao público em geral. Sou firme defensor da multiplicidade de arquivos pelo país fora e da sua autonomia face ao poder político e económico.

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A crise na FMS tem outro efeito perverso que é a desconfiança de que a entrega de espólios e acervos a instituições que pareciam sólidas se revele instável com o tempo. Conheço bem esse problema que, mesmo que as pessoas não tenham muitas vezes por delicadeza a coragem de o levantar, se traduz na pergunta: “E o que é acontece depois de morrer?” O facto de a crise da FMS ocorrer depois da morte de Mário Soares favorece esta perplexidade e leva também à concentração de ofertas em instituições consideradas mais fiáveis. Mas aqui encontramos um outro problema que é muito das instituições europeias (com excepção das anglo-saxónicas) e, no caso português, agravado pelas mudanças na legislação sobre as fundações no tempo do “ajustamento”.

O problema é que a FMS tinha um funcionamento muito pesado, demasiado dependente de subsídios e apoios financeiros, um número elevado de pessoas assalariadas e isso tornou-a muito vulnerável. A isto soma-se o facto de a actual legislação, feita por gente das finanças, ser boa para as grandes fundações e não impedir as fraudulentas que já existiam e continuam a existir, mas ser hostil para as pequenas e médias fundações. O resultado foi não só a demonização das fundações, que representam, no seu melhor sentido, uma doação de bens privados ao público, como a crise na criação de novas fundações que, entre outras coisas, podem diminuir o peso sobre o Estado de cumprir determinadas funções culturais, sociais, etc. E são, insisto, um acto de altruísmo social. A alternativa é muitas vezes a venda e dispersão de espólios valiosos ou a sua destruição.

De há muito que defendo a necessidade de rever a lei, no sentido de facilitar um novo modelo de pequenas e médias fundações que unam a flexibilidade do funcionamento das associações culturais sem fins lucrativos à solidez patrimonial das fundações. Nos países anglo-saxónicos, no Reino Unido e nos EUA existe o modelo das charities, que prestam relevantes serviços públicos, em particular usando os recursos do voluntariado, que tornam possível fazer muito mais do que instituições e fundações grandes e pesadas, sem os custos elevados do seu funcionamento.

É uma experiência que conheço bem, dada a enorme dedicação de muitas pessoas que oferecem o bem mais precioso do seu trabalho, e que permite fazer muito com poucos recursos. E, fazendo muito, os recursos também aumentam pelo exemplo, assim como a capacidade de salvação de muito que seria perdido, se não existissem.

Aliás, nos tempos de hoje, de destruição quotidiana e maciça de bibliotecas, espólios e acervos, a própria possibilidade de salvação de muito do que é deitado ao lixo ou destruído já justifica que se facilite a actividade de instituições que recolhem essa parte preciosa da nossa memória. A rede de “pesca” pode ser assim mais fina a nível nacional. O que acontece depois pode não ser perfeito, pode ser moroso, mas o que se salvou tem mais probabilidades de continuar salvo.

É por isso que instituições mais leves, menos dependentes de grandes orçamento e custos de salários, assentes no trabalho voluntário e em recursos pro bono, geridas por gente dedicada que nada tem a ganhar a não ser o gosto do que estão a fazer, sobrevivem melhor aos seus fundadores e à instabilidade do seu financiamento. E são por isso confiáveis para os seus papéis, fotografias, objectos, memórias.