Cerco policial não abafou a “raiva” nem o “desespero” dos “coletes amarelos”
Quarto acto dos protestos em Paris começou com tranquilidade, mas a tensão subiu ao longo do dia e à noite a capital francesa voltou a ser palco de uma batalha campal, quando os jovens dos subúrbios tomaram o lugar dos manifestantes.
Para o “quarto acto”, o quarto sábado consecutivo de protestos em Paris, milhares de “coletes amarelos” chegaram de toda a França para provar ao Presidente da República, Emmanuel Macron — e a todos os franceses —, que, ao contrário do que dizem os media, não são um grupo de desordeiros, mas manifestantes pacíficos que assumiram a responsabilidade de vir para a rua dar voz ao descontentamento de um povo que já não consegue suportar mais a carestia de vida depois de décadas de empobrecimento.
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Para o “quarto acto”, o quarto sábado consecutivo de protestos em Paris, milhares de “coletes amarelos” chegaram de toda a França para provar ao Presidente da República, Emmanuel Macron — e a todos os franceses —, que, ao contrário do que dizem os media, não são um grupo de desordeiros, mas manifestantes pacíficos que assumiram a responsabilidade de vir para a rua dar voz ao descontentamento de um povo que já não consegue suportar mais a carestia de vida depois de décadas de empobrecimento.
E durante uma boa parte do dia, os milhares de “coletes amarelos” que estiveram em Paris cumpriram essa missão. Agitando a bandeira da França, e entoando o hino nacional; segurando pequenos cartazes e escrevendo mensagens nas costas dos seus coletes, homens e mulheres, mais jovens e mais velhos, caminharam para cima e para baixo da Avenida dos Campos Elísios, o local simbólico e autorizado para a manifestação.
Um impressionante dispositivo policial, com mais de oito mil efectivos de diversos brigadas e departamentos da polícia e Guarda Nacional, foi montado logo às primeiras horas da manhã para garantir que, desta vez, os manifestantes não conseguiam circular livremente pelas ruas do 16.º Bairro da capital. Nem aproximar-se do Arco do Triunfo, como tinham feito uma semana antes. Com tanques, carrinhas, ambulâncias, motorizadas e centenas e centenas de agentes infiltrados num cordão humano, as autoridades formaram um perímetro em torno da Praça de l’Étoile (actualmente, Praça Charles-de-Gaulle), assegurando que o Arco do Triunfo não era novamente “profanado”, e que nenhum dos “coletes amarelos” escapava da vigilância.
Ao longo de horas, tudo funcionou como devia, com polícia e manifestantes a avançarem e recuarem numa coreografia ensaiada nas semanas anteriores e aperfeiçoada entre as oito e as dez da manhã, quando os “coletes amarelos” começaram a chegar vindos de cidades e vilas da Borgonha à Normandia, e os Campos Elísios ficaram bem compostos de gente.
No interior desse perímetro determinado como palco dos protestos, debaixo da vigilância musculada das forças da polícia, os “coletes” tiveram margem de manobra para dar voz ao seu descontentamento. Houve vaias e insultos e, de tempos a tempos, algumas provocações e escaramuças. Foram disparados muitos petardos, fogos-de-artifício e very lights. Mas em contraste com a última vez, não houve nem confronto nem destruição.
“Nós somos pacifistas. Não somos extremistas, não somos radicais. Viemos aqui bater-nos por direitos, não para partir e estragar”, dizia Jean-Baptiste, de 27 anos, vindo de Le Neubourg, uma comuna de quatro mil habitantes na região da Normandia, a cerca de duas horas e meia de Paris.
Para chegar aos Campos Elísios, Jean-Baptiste passou por oito pontos de controlo da polícia, e em todos foi obrigado a mostrar a identificação, a abrir a mochila que trazia uma máscara antigás, uma garrafa de água e duas sanduíches. “Revistaram-nos e fecharam-nos aqui, mas não é grave”, disse, confessando-se em partes iguais “incomodado” e “tranquilizado” com a vigilância que também garantia a segurança dos manifestantes.
Ao seu lado havia quem criticasse o excesso da presença policial, interpretando-a como uma mensagem do Governo para os manifestantes. “Isto é o [ministro do Interior, Christophe] Castaner a querer atear o fogo. O interesse do Governo é dividir, e é por isso que nos misturam a todos no mesmo saco, ‘coletes amarelos’ e vândalos. Mas o Presidente Macron que veja o que está aqui a acontecer e pare de nos tratar como vândalos. Nós não viemos para destruir a mais bela avenida do mundo. Viemos para dizer que um salário tem de servir para uma pessoa viver decentemente”, explicava Pierre, que tinha uma única frase escrita no seu colete: “Não estou contente”.
A mesma mensagem era repetida por um e outro “colete amarelo”. Todos falavam de “raiva” e “cólera”, mas também de “exasperação”, “angústia” e “desespero” — porque o valor dos salários, das reformas e das pensões não garante uma vida digna; porque à carga fiscal “mais elevada da Europa” não correspondem os serviços públicos de qualidade que os contribuintes têm de pagar; porque os governantes estão “desligados da realidade” e da vida quotidiana dos cidadãos e os políticos só respondem “às ordens dos lobbies, dos banqueiros e dos grandes grupos”, tornando-se nos principais promotores da corrupção.
As queixas são muitas e variadas, e já vão muito além do abandono definitivo da anunciada revisão em alta do imposto sobre os combustíveis, a gota de água que fez transbordar o copo e pôs em marcha o movimento “coletes amarelos”. Nenhum deles comprou a trégua pedida pelo Presidente Emmanuel Macron, que numa primeira reacção às exigências dos manifestantes prometeu suspender essa medida temporariamente.
Aquilo que os coletes mais reclamavam neste sábado era a atenção do Presidente Macron. Não acreditavam como o chefe de Estado ainda não falara aos cidadãos, como continuava alheio às suas reivindicações — que, mostram as sondagens, têm a simpatia ou apoio de sete em cada dez franceses.
A única palavra de ordem que gritavam era “Macron démission”, provando que o movimento permanece, por enquanto, imune à apropriação política de partidos, sindicatos e outras organizações políticas.
“Nenhum político me interessa, nenhum deles me convence, já há muito que deixei de acreditar neles, sejam de direita, esquerda ou centro”, declarava Leonel, um luso-descendente que veio com quatro companheiros de Toulouse, no Sul do país.
“Em França já não há democracia. Há mais de 30 anos que as pessoas estão a empobrecer”, dizia, garantindo que “as pessoas estão a começar a ferver” e a olhar para casos como o da Islândia, onde, confrontado com a crise e a corrupção, “o povo tomou o país nas mãos para fazer as leis”, disse. Essa seria a fórmula para ultrapassar o impasse político em França, defende: “Um referendo popular, uma nova república, onde é o povo que decide as acções do Governo”.
Escalada de violência
Porém, o ambiente, por vezes tenso, por vezes distendido, que marcou a manhã não se aguentou todo o dia. A situação alterou-se dramaticamente durante a tarde, à medida que a impaciência, o cansaço, e a fúria dos “coletes amarelos” encurralados nos Campos Elísios se avolumava.
O frente-a-frente com as autoridades endureceu, com muitos manifestantes a deixar de acatar as instruções e enfrentar abertamente as ordens da polícia. Escaramuças que horas antes não chegavam a durar mais do que dois minutos transformaram-se em braços-de-ferro, com a polícia a avançar (embora sem carregar) sobre a multidão e a disparar granadas de dispersão, flashballs e gás lacrimogéneo.
Na resposta, os manifestantes arremessaram aquilo que encontravam: garrafas de plástico, latas de cerveja, pedras... Caixotes do lixo, canteiros ou pinheiros de Natal foram incendiados; muitos painéis de madeira usados para proteger as montras dos estabelecimentos comerciais da avenida foram arrancados, fosse para servir de escudo, fosse para improvisar barricadas, fosse para atirar contra a policia.
Ao mesmo tempo que a tensão atingia o nível máximo nos Campos Elísios, e a razão e moderação se esgotavam de ambos os lados, começavam a espalhar-se pela cidade grupos de jovens casseurs, o nome que os franceses deram aos indivíduos que a pretexto das manifestações e marchas de protesto se infiltram nas multidões para promover a violência. Serão militantes de extrema-direita e extrema-esquerda, anarquistas e black blocks ou simplesmente vândalos e marginais que sem qualquer motivação política evidente aproveitam a confusão para roubar e pilhar.
Num instante, em distintos pontos da cidade, erguiam-se barricadas e incendiavam-se automóveis, com a cortina de fumo resultante a esconder os actos seguintes: o arrombamento e a pilhagem dos comércios que estiveram encerrados por ordem municipal ou os assaltos às caixas de levantamento automático.
Ao fim da tarde, a escalada da violência, já disseminada muito para além do perímetro da manifestação dos “coletes amarelos”, levou a polícia a tomar medidas drásticas para manter o controlo da situação. Os canhões de água foram accionados, a polícia antimotim começou a investir com os bastões.
O número de indivíduos identificados e detidos, que ao final da manhã já era de centenas de pessoas, cresceu para mais de 1300 ao início da noite. O número de feridos conheceu idêntica evolução: de manhã não havia registos de casos, depois do almoço já eram mais de duas dezenas e no fim do dia as autoridades confirmavam o transporte de mais de uma centena de pessoas para unidades hospitalares (18 dos 117 feridos oficiais eram polícias).
“Isto já não tem nada a ver com os ‘coletes amarelos’”, garantia ao PÚBLICO um dos agentes da Brigadas Anticrime (que actuam à paisana) que perseguiam grupos de adolescentes, todos vestidos de preto e com as caras cobertas, que destruíam tudo à sua passagem. “Agora é a vez dos jovens marginais dos subúrbios desceram à cidade”, informava, conformado com a nova rotina dos sábados em Paris. “O turno começa às 4h30, e acaba quando tudo acalmar. Com sorte, estaremos todos a voltar a casa à meia-noite”, despedia-se.