Os genes da vida gigante de Lonesome George
Análise ao genoma de duas tartarugas-gigantes forneceu pistas importantes sobre o seu tamanho e longevidade destes animais. Foram identificadas marcas associadas ao risco de cancro que podem explicar o facto de os tumores serem raros nestas espécies.
Começamos pelo fim: “Lonesome George – o último representante de Chelonoidis abingdonii e um conhecido símbolo da situação das espécies em extinção – deixou um legado que inclui uma história escrita no seu genoma cuja revelação começa agora”. Esta é a última frase de um artigo publicado na revista Nature Ecology & Evolution que apresenta uma primeira análise ao genoma de duas espécies de tartarugas-gigantes, entre as quais está Lonesome George, que morreu em 2012 nas ilhas Galápagos quando teria (há várias estimativas) mais de cem anos.
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Começamos pelo fim: “Lonesome George – o último representante de Chelonoidis abingdonii e um conhecido símbolo da situação das espécies em extinção – deixou um legado que inclui uma história escrita no seu genoma cuja revelação começa agora”. Esta é a última frase de um artigo publicado na revista Nature Ecology & Evolution que apresenta uma primeira análise ao genoma de duas espécies de tartarugas-gigantes, entre as quais está Lonesome George, que morreu em 2012 nas ilhas Galápagos quando teria (há várias estimativas) mais de cem anos.
Para quem não sabe, a gigante-tartaruga Lonesome George (ou George Solitário, numa tradução literal) faz parte da história da ciência, por ter sido considerada uma das mais raras criaturas animais na Terra. Foi vista pela primeira vez em 1972 na ilha de Pinta e depois acompanhada de perto até ao fim, quando teria já mais de 100 anos. Depois da sua morte, Lonesome George foi embalsamado, foi estrela principal em várias exibições de história natural e regressou em 2017 a casa, às Galápagos. Quando morreu era o último exemplar da sua espécie, Chelonoidis abingdonii. Apesar das muitas tentativas de acasalamento do macho com fêmeas de espécies próximas, Lonesome George não deixou descendentes.
As tartarugas-gigantes, que podem alcançar 225 quilos, são das mais famosas criaturas das ilhas Galápagos, no Equador, que foram estudadas pormenorizadamente por Charles Darwin. Além deste local, também é possível encontrar estes exemplares de grande porte no atol de Aldabra, nas Seicheles, no oceano Índico. Agora, uma equipa internacional de cientistas sequenciou o genoma de Lonesome George e de uma tartaruga-gigante de Aldabra (Aldabrachelys gigantea), a única espécie viva de tartaruga-gigante do oceano Índico.
Comparando os seus genomas com outros de espécies relacionadas, os investigadores encontram assinaturas de famílias de genes que estão associadas a uma melhor regulação do metabolismo e resposta imunitária. Estes serão, segundo os autores, dois factores que podem explicar o tamanho e a longa vida destas tartarugas. Mas há mais dados e pistas que podem esclarecer alguns dos mistérios associados a esta espécie e ajudar a proteger outras tartarugas-gigantes nas Galápagos. Aliás, em 2015, uma equipa de cientistas identificou uma nova espécie de tartaruga-gigante nas Galápagos (a Chelonoidis donfaustoi), usando informação genética para determinar que um grupo de 250 tartarugas era distinto de outra espécie residente no arquipélago do oceano Pacífico.
Mas voltando ao estudo do genoma de Lonesome George e da sua “prima” do oceano Índico, os cientistas encontraram outros sinais importantes, além da questão do metabolismo e da resistência do sistema imunitário inato. Na análise, os autores apoiaram-se no que já se sabe sobre o papel de alguns genes e das suas variações noutras espécies de mamíferos e vertebrados. A partir daí, é possível especular e extrapolar. Um exemplo: procurando um conjunto de genes que tem sido associado a uma protecção para doenças ligadas ao envelhecimento, os investigadores encontraram correspondências que podem justificar a longevidade destes animais. Assim, encontraram o que os geneticistas chamam “assinatura de selecção positiva”, genes que serão dominantes nesta espécie.
Além de indicadores que podem explicar a formação da carapaça da tartaruga ou o (pobre) desenvolvimento dos seus dentes, os autores fazem referência aos genes que regulam o metabolismo da glucose. “Os resultados levam-nos a levantar a hipótese de que variantes genómicas que afectam o metabolismo da glicose podem ter sido um factor no desenvolvimento de tartarugas.”
Numa investigação orientada para a resposta ao stress e para os mecanismos naturais de reparação do ADN, encontraram também vestígios do passado. “Juntamente com os celacantos [enormes peixes considerados fósseis vivos que existem há cerca de 400 milhões de anos], as tartarugas, incluindo as tartarugas-gigantes, são os únicos organismos conhecidos por possuírem todos os oito tipos diferentes de globinas (proteínas capazes de transportar oxigénio)”, referem no artigo, acrescentando que encontraram nos genomas das duas tartarugas-gigantes uma variante genética “que tem sido associada à resistência à hipoxia em alguns mamíferos e peixes”. E concluem que a descoberta “sugere fortemente um processo de evolução convergente na adaptação à hipoxia, provavelmente impulsionada por um ambiente aquático ancestral, que deixou essa pegada nos genomas das tartarugas-gigantes terrestres”.
Outra das questões investigadas foi o cancro. Isto porque se sabe que os vertebrados de grandes dimensões têm uma necessidade de possuir mecanismos mais afinados de protecção ao cancro para fazer face à deterioração celular inerente a uma longa vida. “Curiosamente, acredita-se que os tumores sejam muito raros em tartarugas. Portanto, analisámos mais de 400 genes classificados como oncogenes e supressores de tumores”, escrevem os investigadores.
Na sequência desta busca, foram detectadas alterações em alguns genes, entre os quais vários que adquirem uma função de supressores tumorais. Foram ainda detectados sinais genéticos que sugerem que as tartarugas-gigantes beneficiem de um sistema melhorado de “imunovigilância” e alterações que afectam dois genes que são reconhecidos como oncogenes (cuja expressão em excesso é conhecida por contribuir para o cancro). “Em conjunto, os resultados sugerem que múltiplas alterações no número de cópias de genes podem ter influenciado os mecanismos de crescimento espontâneo de tumores”, concluem os autores acrescentando, no entanto, que são necessários mais estudos “para avaliar as características genéticas de mecanismos específicos associados ao cancro das tartaruga-gigantes”.
Uma importante parte do trabalho já foi feita com este pontapé de saída que levou à identificação de marcas genéticas que afectam a reparação do ADN, mediadores inflamatórios e o desenvolvimento de cancro. E assim se alimenta a esperança de recuperar as populações de tartarugas-gigantes ameaçadas de extinção. Era bom acreditar que um dia possam não ser tão raras e solitárias como foi Lonesome George.