Admirável Língua Nova (Parte IX)
Recentemente, apareceu escrito num canal televisivo: “Aconselhou-me a fazer uma comediação.” Nada que ver com comédia — trata-se da versão acordizada de “co-mediação”. Em suma, o Acordo é uma comédia, uma grande paródia.
Há uns anos, na RTP2, vi uma série em que, numa faculdade, o professor pedia aos alunos que, na aula seguinte, defendessem uma ideia ou ideologia contrária àquela que era a sua crença arraigada. Tento aqui executar semelhante exercício.
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Há uns anos, na RTP2, vi uma série em que, numa faculdade, o professor pedia aos alunos que, na aula seguinte, defendessem uma ideia ou ideologia contrária àquela que era a sua crença arraigada. Tento aqui executar semelhante exercício.
Comecemos com algumas frases.
“Tirámos o curso de Medicina.”
“Andámos expectantes na Rua do Ouro e na descaracterizada Avenida Almirante Reis.”
“Rezámos a Santo António.”
“Desligámos o interruptor.”
“Visitámos o Palácio Nacional da Ajuda, o Largo do Carmo, a Igreja do Bonfim e o Pavilhão de Portugal.”
“Iremos à Sé de Braga.”
“Descaracterizámos ou deixámos descaracterizar Lisboa.”
“Chegámos ao Templo de Salomão.”
“O professor quer que dêmos tudo na aula de Matemática.”
As frases apresentadas, sem o Novo Acordo, têm uma forma ortográfica. Com o novo, terão quantas? Vejamos.
“Tirámos [com ou sem acento] o curso de Medicina [com maiúscula ou minúscula inicial].”
“Andámos [com ou sem acento] expectantes [com ou sem c] na Rua do Ouro [com maiúscula ou minúscula inicial] e na descaracterizada [com ou sem c] Avenida Almirante Reis [com maiúscula ou minúscula inicial].”
“Rezámos [com ou sem acento] a Santo António [com maiúscula ou minúscula inicial].”
“Desligámos [com ou sem acento] o interruptor [com ou sem p para a Porto Editora ou o Portal da Língua Portuguesa, por exemplo].”
“Visitámos [com ou sem acento] o Palácio Nacional da Ajuda [com maiúscula ou minúscula inicial], o Largo do Carmo [com maiúscula ou minúscula inicial], a Igreja do Bonfim [com maiúscula ou minúscula inicial] e o Pavilhão de Portugal [com maiúscula ou minúscula inicial].”
“Iremos à Sé de Braga [com maiúscula ou minúscula inicial].”
“Descaracterizámos [com ou sem c e com ou sem acento, ou seja, quatro formas ortográficas] ou deixámos [com ou sem acento] descaracterizar [com ou sem c] Lisboa.”
“Chegámos [com ou sem acento] ao Templo [com maiúscula ou minúscula inicial] de Salomão.”
“O professor quer que dêmos [com ou sem acento] tudo na aula de Matemática [com maiúscula ou minúscula inicial].”
Resposta: 33 554 432 formas ortográficas. A conta: 2 x 2 x 2 x 2 x 2 x 2 x 2 x 2 x 2 x 2 x 2 x 2 x 2 x 2 x 2 x 2 x 2 x 2 x 2 x 2 x 2 x 2 x 2 x 2 x 2 = 33 554 432.
O Acordo permite a plurigrafia e esta pode ser bem divertida. Morte à ortografia!
Acresce uma nota curiosa. Quando à primeira pessoa do plural se liga a forma pronominal “nos”, o s desaparece. Exemplos: “Nós amámos”, “Nós sentámos”. Pospondo-lhe “-nos”, ficará “Nós amámo-nos”, “Nós sentámo-nos”. Com o Novo Acordo, “amámos” e “sentámos” (meros exemplos entre uma miríade), referindo-nos a um tempo pretérito, podem ter ou não ter acento. Ou seja, poderemos suprimir o s de “sentámos” ou “sentamos” quando se liga à forma pronominal “nos”, referindo-nos ao pretérito perfeito. “Sentamo-nos”[1] poderá ser, com o Acordo, uma ordem, uma sugestão ou uma referência ao passado — aquilo que, sem o Acordo, será obrigatoriamente “Sentámo-nos”.
Como é divertido ainda usar o prefixo “co-”. Temos “conavegante”, “corrés”. Sem o Acordo: “co-navegante”, “co-rés”. Temos “cocomissário”, “cocomandante”; não, não é o missário do coco nem o mandante do coco — vejamos sem Acordo: “co-comissário”, “co-comandante”. Temos ainda o “co-mandante” transformado em “comandante”. Recentemente, como poderá ver na página Acordo Ortográfico Não!, numa publicação de 27 de Outubro de 2018, de Francisco Miguel Valada, apareceu escrito num canal televisivo: “Aconselhou-me a fazer uma comediação.” Nada que ver com comédia — trata-se da versão acordizada de “co-mediação”.
Em suma, o Acordo é uma comédia, uma grande paródia. E quem não gosta de uma boa pândega?
Autor de Por Amor à Língua — Contra a Linguagem Que por aí Circula
(Continua.)
[1] No imperativo: “sentemo-nos”.