É preciso devolver património, mas antes há que admitir o erro da colonização
Em Portugal ainda não se discute na esfera pública a restituição de objectos e documentos às ex-colónias, quando países como a França e a Alemanha já o fazem há anos. Por que razão está o país atrasado neste debate? Os museus e arquivos já receberam pedidos de devolução?
A discussão não é de hoje mas, a avaliar pela sua presença mediática nos últimos dois anos, acentuada no final de Novembro com a publicação de um relatório oficial defendendo a restituição do património de origem africana incorporado nas colecções públicas francesas, e com a devolução ao Benim de 26 peças, numa esteve tão presente, nem com tanta acutilância, como agora.
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A discussão não é de hoje mas, a avaliar pela sua presença mediática nos últimos dois anos, acentuada no final de Novembro com a publicação de um relatório oficial defendendo a restituição do património de origem africana incorporado nas colecções públicas francesas, e com a devolução ao Benim de 26 peças, numa esteve tão presente, nem com tanta acutilância, como agora.
Este estudo encomendado pelo Presidente Emmanuel Macron, cujas principais directrizes começaram a inundar as páginas dos jornais mesmo antes de lançado oficialmente, levou já a que curadores, antropólogos e directores de museus por toda a Europa – sobretudo nos países que no passado tiveram impérios ultramarinos – se posicionassem. E como seria de esperar perante um documento que propõe a restituição plena e incondicional de todos os bens que foram retirados “sem consentimento” dos territórios africanos, as opiniões dividem-se, mesmo quando a maioria dos especialistas que já se pronunciaram concorda com a premissa de que a colonização foi um crime, afirmação na base deste estudo feito por Bénédicte Savoy, historiadora de arte francesa radicada em Berlim, e Felwine Sarr, economista e escritor senegalês.
De um lado os que o aplaudem e vêem nele um passo decisivo para que França e outros Estados sigam os bons exemplos de países como o Canadá e a Holanda e possam fazer da devolução do património às suas ex-colónias um acto simbólico que pressupõe a assunção das suas responsabilidades num dos episódios mais negros da história universal. Do outro os que temem um esvaziamento dos museus europeus de etnologia e antropologia e os que questionam a capacidade das instituições dos países de origem para preservar e divulgar os bens restituídos. Entre uns e outros, os que duvidam da aplicabilidade prática de boa parte das propostas do relatório e argumentam que o debate ainda é feito de cima para baixo, ou seja, sem tratar os territórios que foram colonizados como iguais em direitos.
Afinal, o que pretende Macron com este relatório? Trata-se de um documento estratégico que deverá enquadrar as relações de Paris com o continente africano ou, como dizem os mais críticos, de um golpe de teatro no palco da diplomacia? Por que razão fala apenas em restituições a África quando França teve (tem) uma presença importante noutras geografias, nomeadamente no Pacífico? E que papel tem este relatório no debate internacional?
As perguntas sobre o processo de restituição multiplicam-se, assim como os adjectivos que se lhe colam como uma segunda pele: complexo, exigente, demorado, desafiante, casuístico, controverso, urgente. Mas onde está Portugal neste debate? O que pensam de uma eventual devolução historiadores, antropólogos e directores de museus? E o que teria o país de restituir partindo, por exemplo, da colecção do Museu Nacional de Etnologia (MNE)?
António Pinto Ribeiro, programador cultural que acompanha há muito a produção artística do continente africano, está entre os que consideram que o relatório encomendado por Macron é um “contributo notável” na tentativa de encontrar soluções, “necessariamente múltiplas e diversas”, para um “problema inevitável e global” – o do regresso aos países de origem do património que de lá saiu quando estavam sob domínio europeu.
Lembrando que o discurso da restituição faz parte de uma narrativa mais ampla que engloba outro tipo de reparações pós-coloniais e que desafia o desequilíbrio histórico entre os países do hemisfério Norte – as “metrópoles” dos antigos impérios ultramarinos – e os do Sul, Pinto Ribeiro defende que essa restituição deve ser analisada caso a caso.
“É um problema apaixonante do ponto de vista intelectual, mas muito complexo, traz muitos obstáculos. Apurar em que circunstâncias muitas das peças chegaram aos museus europeus não vai ser fácil, assim como não vai ser fácil introduzir alterações à lei em vários países para que elas possam voltar a casa”, diz este investigador do Projecto Memoirs/Universidade de Coimbra, centrado nas memórias dos filhos e netos daqueles que estiveram envolvidos nos processos de descolonização dos impérios português, belga e francês.
Apesar das dificuldades, há já alguns indicadores de sucesso, e não se resumem ao anúncio de que a França vai restituir ao Benim 26 obras de arte espoliadas pelo seu exército numa expedição punitiva ao antigo reino do Daomé em 1892.
Na Holanda as negociações com os indonésios decorrem a bom ritmo; a Bélgica prepara-se para inaugurar já este domingo o novo Museu Africano, que vai associar as colecções etnográficas do velho Museu Real da África Central à arte que se faz hoje naquele continente, de acordo com um programa que reflecte bem a sua condição pós-colonial; e na Alemanha o debate em torno do genocídio dos herero no começo do século XX entrou já pelo discurso de Angela Merkel, ajudou a pôr em causa o Fórum Humboldt, projecto concebido para reunir todas as colecções etnológicas de Berlim, e instalou-se nos tribunais.
“Este movimento está a tornar-se consensual porque é reconhecido que muitos objectos foram recolhidos sem o consentimento dos povos coloniais e, pior do que isso, em condições predatórias, às escondidas”, diz o historiador Francisco Bethencourt, professor do King’s College, em Londres, e autor de várias obras sobre a temática dos impérios, incluindo a aclamada Racismos – Das Cruzadas ao Século XX (Temas e Debates, 2015). “A restituição faz sentido pois os países em desenvolvimento precisam de ter as suas colecções e de reflectir sobre as suas próprias formas de identidade ao longo do processo histórico.”
A historiadora de arte moçambicana Alda Costa reconhece a violência da colonização e as suas formas de discriminação, social, económica e racial, mas, “sem querer legitimar ou desculpabilizar” este período, diz que também ele faz parte da história do continente africano e não deixa de fora as relações que entre colonizados e colonizadores se estabeleceram. “Embora compreenda o movimento de restituição do património africano às ex-colónias, tenho sobre ele reservas”, admite, pedindo também uma análise cuidadosa das práticas de preservação patrimonial de cada país, da capacidade das instituições para receber, proteger e divulgar os bens, e da importância e do uso que lhes vão ser dados pela sociedade.
“O continente africano vive enormes problemas e os países não contemplam, em geral, nas suas prioridades a preservação do património cultural”, explica esta académica. “Veja-se o número de museus existentes, de profissionais, e a carência de recursos de muitas das nossas instituições. Considero mais importante desenvolver as relações de trabalho entre países, incluindo as ex-metrópoles, o acesso a arquivos e museus por parte dos investigadores ou mesmo a criação de facilidades para a sua recuperação digital. No caso de Moçambique/Portugal houve já numerosas iniciativas de colaboração.”
António Sousa Ribeiro, professor da Universidade de Coimbra e autor de Geometrias da Memória: Atitudes Pós-coloniais, compreende que a restituição não esteja entre as prioridades das ex-colónias portuguesas, mas não tem dúvidas de que os pedidos de restituição chegarão. Porque o direito ao objecto é um direito à memória.
“A devolução de património às ex-colónias não é diferente da das obras confiscadas aos judeus pelo nacional-socialismo na Segunda Guerra – tem de ser feita. Pode demorar décadas, mas é preciso começar. E é urgente fazê-lo com verdadeira vontade política porque são processos para muitas gerações.”
Lembra Sousa Ribeiro que Portugal devia ser dos primeiros a compreender a situação das ex-colónias porque “sempre foi visto pelos países do Norte como semi-bárbaro” e porque foi saqueado várias vezes ao longo da história: “Nas Invasões Francesas e muito antes. A principal biblioteca de Oxford tem entre os seus volumes iniciais cerca de 100 que pertenciam ao bispo de Faro e que foram roubados pelo conde de Essex no século XVI.”
O mito do bom colonizador
Portugal devia ser dos primeiros a compreender, mas ainda não o faz. Porquê? Porque tarda a assumir as suas responsabilidades na colonização, sublinha o professor de Coimbra. “O esbulho só foi possível no seio das relações de poder e de violência que são as relações coloniais. Há que dizer em primeiro lugar que a colonização foi um erro. E o roubo do património das ex-colónias é apenas um aspecto. Portugal tem de assumir as responsabilidades dos crimes cometidos nas ex-colónias, e não estou a falar só do período da guerra.”
Reflectir sobre a colonização, defende Sousa Ribeiro, não é um exercício fútil de autocrítica porque nos ajuda a entender fenómenos contemporâneos como o das migrações. É claro que descolonizar o senso-comum não é tarefa fácil e deve começar a fazer-se, diz, por cima. “Os nossos políticos têm de deixar de papaguear chavões herdados da propaganda do Estado Novo e que falam dos portugueses como colonizadores bons. Não há colonizadores bons. O mito da excepcionalidade do nosso colonialismo prolonga-se no nosso presente e isso é gravíssimo.”
O historiador Francisco Bethencourt lembra que as guerras de ocupação foram devastadoras e que embora a escravatura fosse já antes da chegada dos europeus um fenómeno interno africano a globalização do tráfico de escravos teve enormes consequências demográficas. “A colonização deve ser vista como um crime contra a humanidade, tal como outras formas de perseguição e tentativas de extermínio de povos em diversos períodos e diversas partes do mundo.” O facto de boa parte da opinião pública portuguesa não o reconhecer ainda, diz, deve-se a “um défice de educação cívica num país que preferiu curar as feridas da ditadura e do colonialismo através da amnésia”.
Sem o reconhecimento de responsabilidades neste processo histórico, qualquer acto de restituição de objectos ou documentos pouco ou nada significará, defende por seu lado a antropóloga Elsa Peralta. “O reconhecimento de que a colonização foi um erro deve ser universal e imediato, mas a devolução é sobretudo simbólica. E não tem de ser generalizada e absoluta.”
Para esta investigadora da Faculdade de Letras de Lisboa, “Portugal nunca descolou da narrativa da excepcionalidade do colonialismo português” porque ela é fácil de adaptar e foi recuperada pela democracia. “Passar de uma lógica de propaganda para outra de maior complexidade histórica e intelectual demora. Aquilo a que eu chamo o ‘senso-comum colonial’ está enraizado e só se combate com medidas pedagógicas.”
Para o investigador António Pinto Ribeiro, Portugal está completamente arredado deste debate. “Aqui ainda estamos a discutir se deve haver um museu sobre os descobrimentos e o que lhe vamos chamar, o que é uma discussão de século XIX e de grémio literário… Estamos atrasados 100 anos nesta questão que é fracturante.” Porquê? “Pela nossa condição periférica, pelo facto de as nossas elites serem ainda muito conservadoras… Continuamos a olhar sempre para nós isoladamente, para o nosso caso particular, quando este debate não pode separar-se de outro que diz respeito à história global – é a partir dela que temos de considerar o nosso passado, também ele colonial.”
Para já, diz, urge fazer um inventário do património das antigas colónias que está nos museus portugueses e rever o direito do património começando, desde logo, por redefinir o seu conceito, sem delimitações materiais e ideológicas, e sem esquecer a tal história global. Difícil? “Certamente. Mas urgente.”
O que não se pode esquecer
O que há a fazer na melhoria da relação dos portugueses com o passado colonial do país não passa só pela restituição; passa também, defendem os especialistas ouvidos pelo PÚBLICO, pela revisão dos currículos escolares de vários graus de ensino e pela renovação da museografia nas instituições que têm à sua guarda colecções relacionadas com este período. “Os nossos museus continuam, por exemplo, a mostrar obras em que se vêm negros em posições subalternas sem uma linha de contexto. É preciso rever as narrativas à luz das grandes questões coloniais”, argumenta Pinto Ribeiro.
Todo este debate vai também obrigar a repensar a circulação de obras entre instituições para que a Europa não fique privada de objectos deste período que também faz parte da sua história. “Agora agitar o fantasma de que os arquivos e museus europeus de etnologia e antropologia vão ficar vazios é um disparate. Nem todas as ex-colónias estão a exigir restituições. As coisas vão ser feitas com dimensões e velocidades diferentes. Tudo vai depender das negociações entre Estados. E algumas delas poderão levar a soluções intermédias de depósito ou empréstimo.”
Joaquim Pais de Brito, antropólogo que durante 22 anos dirigiu o MNE e que deixou o cargo depois de renovado o projecto expositivo das colecções no seu núcleo central, concorda com o movimento de restituição que se desenha há décadas e diz que ele obriga a uma reflexão interna sobre a pertinência dos museus etnológicos e antropológicos, que começaram a perder públicos e poder nas décadas de 1960 e 70.
“Quando nasceu o Museu do Homem, em Paris, já estava em crise. Já se debatia com problemas de legitimidade. O do Quai Branly [que reuniu grande parte do acervo vindo das ex-colónias francesas] tem meia dúzia de anos e, mesmo sendo um museu de arte e não de etnologia, até antes de abrir levantou polémica. Os museus antropológicos, hoje num limbo, têm de questionar a sua pertinência para levar a uma renovação que faça sentido, mesmo dependente dos objectos”, diz este antropólogo.
Lembrando que os objectos mais prestigiados, singulares e por isso “essenciais à construção de discursos de identidade nas ex-colónias” chegaram à Europa no final do século XIX, Pais de Brito defende que o Ocidente tem de retomar os aspectos dolorosos da sua história e pôr fim à fragilidade das narrativas que acompanham os objectos nos museus. “Os museus ainda querem esquecer o que não se pode esquecer. E como transferiram as funções do conhecimento para as universidades, foram ficando ausentes do pensamento crítico, fora do debate, do tempo. Como os próprios objectos”, que no caso do MNE são na maioria "peças produzidas em série nos ateliers que África montou, de forma notável”, desde os anos 1960.
Quanto à relação da opinião pública portuguesa com a memória colonial, Pais de Brito reconhece que está cheia de “buracos”, mas o mesmo se passa noutros países. “O relatório Macron tem uma circulação restritíssima, não traduz a vontade de um colectivo. Não é a sociedade francesa a dizer que a colonização foi um crime.”
A Portugal, e segundo a Direcção-Geral do Património Cultural, entidade que tutela os museus públicos, não chegou até à data nenhum pedido de restituição. O mesmo se passa no universo dos arquivos, onde são já múltiplos os programas de colaboração com os países de língua portuguesa, de que são exemplo Cabo Verde (centenas de imagens digitais sobre a Colónia Penal do Tarrafal) e Moçambique (foram enviados pelo menos 15 mil documentos produzidos pelos serviços de informação do Estado Novo relativos às lutas de libertação). “Não temos qualquer pedido de restituição. A troca de documentação digital com os territórios que estiveram sob administração portuguesa tem acontecido com muita regularidade, o que significa que o acesso está garantido”, diz Silvestre Lacerda, director-geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas.
O PÚBLICO procurou contactar os ministérios da Cultura em Moçambique e Angola para apurar se estariam a trabalhar no dossier da restituição, mas não obteve qualquer resposta. Em Lisboa, Graça Fonseca, a nova titular da pasta, também optou por não comentar a pertinência do debate em torno da eventual devolução de património às ex-colónias.