Nas voltas da língua, por entre cá e lá
Duas revistas, a Linguará brasileira e a Luzes galega, reforçam a importância da diversidade da língua, a despeito das distopias “unificadoras” dos novos tempos.
Entre tantas, e por vezes tão falsas, declarações de amor eterno à língua portuguesa, há uma verdadeiramente notável. Escreveu-a o poeta brasileiro Manoel de Barros (1916-2014) e foi aliás destacada na contracapa da edição portuguesa da sua Poesia Completa (ed. Caminho, 2010). Diz assim: “A única língua que estudei com força foi a portuguesa. Estudei-a com força para poder errá-la ao dente.” Ora este errar não deve ser confundido com desacerto ou engano, porque significa (e quem o lê facilmente o confirma) vaguear, não se fixar, andar de um lugar para outro. E se o fez com mestria o poeta, fê-lo igualmente a língua portuguesa.
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Entre tantas, e por vezes tão falsas, declarações de amor eterno à língua portuguesa, há uma verdadeiramente notável. Escreveu-a o poeta brasileiro Manoel de Barros (1916-2014) e foi aliás destacada na contracapa da edição portuguesa da sua Poesia Completa (ed. Caminho, 2010). Diz assim: “A única língua que estudei com força foi a portuguesa. Estudei-a com força para poder errá-la ao dente.” Ora este errar não deve ser confundido com desacerto ou engano, porque significa (e quem o lê facilmente o confirma) vaguear, não se fixar, andar de um lugar para outro. E se o fez com mestria o poeta, fê-lo igualmente a língua portuguesa.
Tirando partido dessas errâncias, e do resultado delas, acaba de ser lançada uma revista de nome Linguará, editada por Carla Paoliello, Maria José Amorim e Priscilla Ballarin, todas elas brasileiras e residentes em Portugal, onde a revista é editada. Quadrimestral, começou na primeira letra do alfabeto, o A, e conta percorrê-las todas, incluindo K, W e Y, colhendo nessa viagem frutos da errância do idioma. Ou, como escrevem em editorial, navegarão “na fonética, morfologia, léxico, sintaxe, acordo, desacordo, o comum, o incomum, as inúmeras transformações da língua portuguesa. O que nos une, o que nos separa. A conexão feita pela via da palavra, igual e diferente, dos países desta mesma língua.” E isso faz-se com poesia, artes plásticas, paisagens (e lá estão, lado a lado, Aveiro ou Alter do Chão, as de cá e as do Brasil, ambas no Pará), palavras diferentes para um mesmo objecto ou coisa. Há um léxico breve, no final, na linha do levantamento que, entre Lisboa e Belém do Pará, haviam feito em livro a portuguesa Anete Costa Ferreira e as brasileiras Rosa Assis e Ana Cerqueira. O livro, lançado em Abril de 2006, chamou-se De Olho na Língua – Palavras de Cá e Lá. Mas a revista Linguará (lançada esta quarta-feira na Livraria-Bar Menina e Moça, ao Cais do Sodré) é também “desmontável”, o que faz com que, tiradas duas das suas páginas, surjam lado a lado o ananás português e o abacaxi brasileiro, o primeiro representado num jarro de cerâmica (de Bordallo Pinheiro) e o segundo numa popular jarra de plástico (da Trol). Além dos nomes do fruto, diferem os do recipiente (jarro, jarra) e as frases que, inscritas no verso, querem dizer a mesma coisa: “Faz crescer água na boca” (cá) e “Dá água na boca” (lá). Se nesta primeira edição o jogo linguístico e vocabular se faz essencialmente entre o Brasil e Portugal, prometem vir a alargar fronteiras aonde quer que a língua viva e se transforme.
Antes de Linguará, porém, saiu Luzes, revista que se edita na Galiza e que dedica a sua 59.ª edição às ligações culturais com Portugal. Sob o título “PortuGaliza, saudade de futuro”, a revista dirigida por Manuel Rivas e Xosé Manuel Pereiro inclui um lote interessantíssimo de artigos e é inteiramente escrita em galego, mesmo os textos de portugueses (Rui Reininho ou Francisco Teixeira da Mota). Isto quer dizer que, apesar do movimento reintegracionista (que quer, na sequência da lei Paz Andrade, instituir na Galiza o “português-padrão”), a língua galega ainda se afirma como veículo cultural identitário. A Rede da Galilusofonia, constituída em Braga, em 23 de Novembro, ainda emitiu dois comunicados paralelos, um em português e outro em galego. Mas é uma riqueza que a visão estreita ameaça, ao tentar anular as diferenças para fazer valer a “novilíngua” imposta pelo dito “acordo ortográfico”.
Enquanto as botas cardadas dos “unificadores” marcam passo, a língua vive. E é bom ler, no editorial da Luzes: “O que máis ten que unirnos é a historia por facer: encher a saudade de porvir. E que este novo espazo, a Portugaliza, sexa unha referencia de navegar valente na Europa varada.” Precisaram de tradutor? Não, nem agora nem antes. Nas peças quinhentistas apresentadas na semana passada na Sá da Costa pelo Teatro Maizum (que faz um trabalho meritório na afirmação do Teatro Clássico), lá estavam representados, como personagens, o “português”, o “galego” e o “castelhano”. Nos respectivos falares e a séculos de distância da distopia “unificadora” do “acordo ortográfico”. Poderia o célebre Luís de Matos fazê-lo desaparecer, num passe de mágica, no Impossível Ao Vivo que vai apresentar no Tivoli? Milhões de portugueses, brasileiros, africanos e galegos agradecer-lhe-iam de bom grado.