Quando os juízes fazem política no Brexit
Colocar juízes numa situação onde deveriam estar decisores políticos não é solução. Nunca foi uma escolha sensata, nem para a política, nem para a justiça, seja a nível nacional ou europeu.
1. A ideia da existência de uma separação nítida entre o Direito e a política, segundo a qual os juízes só aplicam a lei, de forma totalmente neutra e imparcial, fica bem nos manuais de Direito, mas não resiste à realidade. Em várias áreas do Direito a sua interligação com a política é grande e tem naturalidade. A questão mais crítica começa quando se judicializa o político. No Direito Constitucional, no Direito Internacional e no Direito da União Europeia, os tribunais/juízes, acabam, de uma forma ou de outra, por fazer política devido a essa tendência. No caso português, se a escolha dos juízes para o Tribunal Constitucional (TC) fosse apenas uma questão de competência técnica — e completamente isolada face à política/ideologia —, não faria sentido o artigo 222.º n.º1 da Constituição, o qual refere que “O Tribunal Constitucional é composto por treze juízes, sendo dez designados pela Assembleia da República”. (Ver Tribunal Constitucional, Constituição da República Portuguesa). Por outras palavras, dez dos juízes do Tribunal Constitucional são escolhidos pelos grupos parlamentares/partidos políticos, o que, para além do seu percurso judicial e competência técnico-jurídica, pressupõe, usualmente, que sejam vistos como tendo uma visão do mundo (ideologia) próxima de quem os escolhe. Se nos lembramos das polémicas à volta de vários acórdãos do Tribunal Constitucional durante o governo anterior, em medidas/leis relacionadas com o programa de assistência económica e financeira do FMI/CE/BCE (medidas de austeridade), percebemos o problema. O TC português dá-nos pistas para compreender a questão na União Europeia. Aí o judicial “invade” há muito o político, sem oposição de relevo na opinião pública, e sem uma crítica democrática consistente a essa forma enviesada de construção europeia. Para o establishment europeísta-federalista, a opacidade do assunto é muito conveniente porque permite contornar os humores do eleitorado.
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1. A ideia da existência de uma separação nítida entre o Direito e a política, segundo a qual os juízes só aplicam a lei, de forma totalmente neutra e imparcial, fica bem nos manuais de Direito, mas não resiste à realidade. Em várias áreas do Direito a sua interligação com a política é grande e tem naturalidade. A questão mais crítica começa quando se judicializa o político. No Direito Constitucional, no Direito Internacional e no Direito da União Europeia, os tribunais/juízes, acabam, de uma forma ou de outra, por fazer política devido a essa tendência. No caso português, se a escolha dos juízes para o Tribunal Constitucional (TC) fosse apenas uma questão de competência técnica — e completamente isolada face à política/ideologia —, não faria sentido o artigo 222.º n.º1 da Constituição, o qual refere que “O Tribunal Constitucional é composto por treze juízes, sendo dez designados pela Assembleia da República”. (Ver Tribunal Constitucional, Constituição da República Portuguesa). Por outras palavras, dez dos juízes do Tribunal Constitucional são escolhidos pelos grupos parlamentares/partidos políticos, o que, para além do seu percurso judicial e competência técnico-jurídica, pressupõe, usualmente, que sejam vistos como tendo uma visão do mundo (ideologia) próxima de quem os escolhe. Se nos lembramos das polémicas à volta de vários acórdãos do Tribunal Constitucional durante o governo anterior, em medidas/leis relacionadas com o programa de assistência económica e financeira do FMI/CE/BCE (medidas de austeridade), percebemos o problema. O TC português dá-nos pistas para compreender a questão na União Europeia. Aí o judicial “invade” há muito o político, sem oposição de relevo na opinião pública, e sem uma crítica democrática consistente a essa forma enviesada de construção europeia. Para o establishment europeísta-federalista, a opacidade do assunto é muito conveniente porque permite contornar os humores do eleitorado.
2. Num artigo clássico sobre esta problemática, o jurista norte-americano, Eric Stein (ver “Lawyers, Judges, and the Making of a Transnational Constitution” in The American Journal of International Law, v. 75, n.º 1, 1981, pp. 1-27), mostrou como o federalismo do qual estavam imbuídos os juízes do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeia (TJCE) — hoje Tribunal de Justiça da União Europeia (TJCE) — foi decisivo na construção europeia. Tudo indica que o processo de integração terá ido (bastante) além das intenções dos políticos que fizeram os tratados originais, fundadores das Comunidades Europeias, nos anos 1950. Na realidade, o que se verifica é que, entre diferentes interpretações possíveis no âmbito da boa hermenêutica jurídica, os juízes do TCE/TJUE optaram, de forma sistemática, quase sempre pelas mais federalizantes. Claro que podem ser avançados múltiplos argumentos jurídicos, na aparência irrepreensíveis, para justificar que essas tenham sido as melhores interpretações dos Tratados e do Direito Comunitário, hoje Direito da União Europeia. Mas, para além de tais argumentos técnicos, há, sem qualquer dúvida, razões mais profundas e que exorbitam do campo jurídico. São o substrato último de tais decisões judiciais: uma visão (ideologia) europeísta-federalista a qual leva a um activismo judicial. Mas, assim, acabou por se entrar no terreno da política. Como é notado por Michelle Everson (autora, em conjunto com Julia Eisner, do livro The Making of the European Constitution: Judges and Lawyers Beyond Constitutive Power, Routledge, 2007), a característica mais curiosa do TJUE “não é ser tribunal político”, o que na realidade acontece. O mais estranho é como, “até há pouco tempo, foi tão bem-sucedido na prossecução do seu programa político de integração da Europa, através da lei, sem atrair muita atenção pública, ou mesmo especializada.” (Ver Michelle Everson, “Is the European court of justice a legal or political institution now?” in The Guardian, 10/08/20110).
3. No caso Brexit, como se já não bastassem as inúmeras complicações e contradições do processo, o Tribunal de Justiça da União Europeia entrou agora também em cena, supostamente para clarificar a situação legal e as opções políticas dos britânicos (ver “Possibilidade de Londres revogar Brexit ganha força” in Público, 4/12/2018). É necessário explicar aqui, de forma sumária, como este assumiu, ou pretende assumir, competência nesta questão. O caso — a possibilidade de revogação unilateral pelo Reino Unido da notificação de saída da União Europeia —, chegou ao TJUE nos termos do artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE). Trata-se de um mecanismo de colaboração entre tribunais, conhecido por reenvio prejudicial (ver EUR-Lex). Originalmente, a acção surgiu num Tribunal do Reino Unido, o Tribunal Superior de Justiça da Escócia, Secção de Recursos (Court of Session, Inner House). Esse tribunal de recurso decidiu usar o já referido mecanismo do reenvio prejudicial, previsto para questões de interpretação e/ou validade do Direito da União Europeia. Colocou, então, a seguinte questão ao TJUE: pode um Estado-Membro (o Reino Unido, no caso presente) revogar a notificação da intenção de se retirar da União, uma vez comunicada ao Conselho Europeu? (Ver o Comunicado de Imprensa n.º 187/18 do TJUE, de 4/12, sobre as conclusões do advogado-geral no caso Wightman e outros versus Secretary of State for Exiting the European Union do Reino Unido, Processo C-621/18).
4. Importa notar que não temos ainda uma decisão do TJUE neste caso. O que agora foi tornado público são apenas as conclusões do advogado-geral nomeado para este caso, o magistrado espanhol Manuel Campos Sánchez-Bordona? (ver TJUE, apresentação dos membros). Trata-se de uma espécie de parecer jurídico. Todavia, o facto de as conclusões do advogado-geral serem amplamente divulgadas, tendo surgido exactamente nesta altura — ou seja, nas vésperas de uma votação decisiva no Parlamento Britânico, sobre a aprovação, ou não, dos termos do acordo do Brexit efectuado com a União Europeia —, mostra um timing que vai além do processual ou jurídico. É fundamentalmente político. (Em parte, isso pode ser explicado pela data em que o processo chegou ao TJUE e pelo pedido de urgência do tribunal nacional na decisão.) Neste caso, como referiu o advogado-geral nas suas conclusões (ponto 59), há fundamentalmente três opções de resposta face à questão de saber se há possibilidade legal de revogação unilateral da saída pelos britânicos: “a) não, em nenhum caso; b) sim, incondicionalmente; c) sim, sob certas condições.” Ao mesmo tempo, como nota ainda Sánchez-Bordona?, o “raciocínio para justificar qualquer destas respostas é sem dúvida complexo, como demonstra o debate que existiu nos Estados-Membros (em especial, no Reino Unido) e na doutrina jurídica”. Face a estas possíveis múltiplas interpretações jurídicas, a proposta de decisão de Sánchez-Bordona? para o TJUE é a seguinte: “Quando um Estado-Membro tenha notificado o Conselho Europeu da sua intenção de se retirar da União Europeia, o artigo 50.º do Tratado da União Europeia admite a revogação unilateral dessa notificação, até ao momento em que o acordo de retirada tenha sido concluído, desde que a revogação tenha sido decidida em conformidade com as respectivas normas constitucionais, seja formalmente comunicada ao Conselho Europeu e não implique uma prática abusiva”. (Ver EUR-Lex, Conclusões do Advogado-Geral Manuel Campos Sa´nchez-Bordona apresentadas a 4/12/2018, Processo C-621/18). Quer dizer, sim, é legalmente possível.
5. O Governo Britânico, a Comissão Europeia e o Conselho, embora por razões substancialmente diferentes, discordam dessa possibilidade. O Governo Britânico usa, desde logo, um argumento processual contra o TJUE: este não é, sequer, competente para apreciar tal questão “dado o seu carácter hipotético e teórico (académico), pois não existe nenhum indício de que o Governo ou o Parlamento Britânicos venham a revogar a notificação da intenção de retirada” (ponto 33 das Conclusões). Claro que o governo do Partido Conservador — em grande parte favorável ao Brexit —, não pretende, politicamente, que o processo possa de saída possa ser parado, ou revertido, por essa via. Já para a Comissão Europeia e o Conselho, o problema político é outro. Está relacionado com o poder que daria a quem pretende sair da União Europeia — neste caso aos britânicos. Poderia sempre revogar, unilateralmente, a intenção de saída até ao limite do prazo de dois anos previsto no artigo 50.º do TUE, se não lhe agradasse o resultado. Ou, então, retirá-la e voltar a avançar depois com outra notificação de saída, “iniciando, assim, um novo período de negociação de dois anos. Prolongaria, dessa forma, “o período de negociação, contornando o artigo 50.º, n.º 3 do TUE” (ponto 150 das Conclusões). Toda esta argumentação e receios, de ambos os lados, são perfeitamente compreensíveis face ao que está em jogo no Brexit. Mas estamos num terreno (puramente) jurídico ou estamos a entrar num terreno político? O ponto crítico é que uma decisão deste tipo nunca poderá ser justificada só por critérios jurídicos, por mais brilhante que seja a argumentação em nome de ideais elevados com a integração europeia. Claro que a redacção ambígua do artigo 50.º do TUE explica também o problema (e não é da responsabilidade dos juízes). Mas a judicialização do Brexit, a ocorrer, será mais um passo negativo num processo já extraordinariamente complexo e confuso. Colocar juízes numa situação onde deveriam estar decisores políticos não é solução. Nunca foi uma escolha sensata, nem para a política, nem para a justiça, seja a nível nacional ou europeu.