Cultura - afinal 1% porquê?
Se há que saudar que o orçamento para a cultura tenha de facto aumentado um pouco, há também que falar verdade e dizer que continuamos a milhas – e a muitas milhas, pese embora o que o primeiro-ministro tem afirmado - dos mínimos, ou seja, do tão justamente reclamado 1% do OE para a Cultura.
O primeiro-ministro anunciou repetidamente, para 2019, “o maior orçamento de sempre para o sector de Cultura”. É pena, mas tratou-se de mais uma fake new que, de tão repetida, terá enganado muita gente. Agora, na Feira do Livro de Guadalajara, foi mais longe, afirmando que “as verbas para a Cultura já excedem hoje o 1% do Orçamento de Estado”.
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O primeiro-ministro anunciou repetidamente, para 2019, “o maior orçamento de sempre para o sector de Cultura”. É pena, mas tratou-se de mais uma fake new que, de tão repetida, terá enganado muita gente. Agora, na Feira do Livro de Guadalajara, foi mais longe, afirmando que “as verbas para a Cultura já excedem hoje o 1% do Orçamento de Estado”.
Lê-se e não se acredita, de tão incontroversos que os números são sobre esta matéria. Basta lembrar, por exemplo, para se avaliar a situação com um mínimo de rigor e verdade, que o orçamento para a cultura em 2019 está - conforme os parâmetros de referência - entre 4 e 10 milhões de euros abaixo (repito, abaixo) do orçamento pelo qual fui responsável em 2000, há já, portanto, 18 anos!...
Ou seja, quando não havia Casa da Música, nem “rede” de cineteatros, nem Museu dos Coches, etc., tudo a pedir mais financiamento. E havia, pelo contrário - antes de José Sócrates o liquidar - o Programa Operacional de Cultura, com cerca de mais de dois milhões de euros...
Assim, se há que saudar que o orçamento para a cultura tenha de facto aumentado um pouco, há também que falar verdade e dizer que continuamos a milhas – e a muitas milhas, pese embora o que o primeiro-ministro tem afirmado - dos mínimos, ou seja, do tão justamente reclamado 1% do Orçamento de Estado para a Cultura.
Valor que se justifica inteiramente e não deve ser objecto de manigâncias contabilísticas. Mas antes de explicar porquê, tenho de dizer – porque tudo está ligado – que o principal problema é o de continuar a não haver em Portugal, no domínio das políticas públicas de cultura, o mais pequeno vislumbre de qualquer estratégia.
A questão é essa, ela é de fundo e atinge todo o campo da cultura: as artes como o património, a música como o cinema, o livro como as artes plásticas (deixo as touradas para o Manuel Alegre, que infelizmente ignorou durante todos estes anos o brutal garrote da cultura...). Em nenhum sector se conhecem políticas sectoriais, se definem objectivos claros ou se vislumbram prioridades orientadoras.
A Cultura encontra-se na realidade à beira do caos, procurando sobreviver em condições de indigência (já com o apregoado aumento para 2019, ela vai andar agora apenas nos 0,2% do Orçamento do Estado, esta é que é a verdade!), com o Governo a ver se a coisa passa por entre os pingos da chuva, as oposições a fingirem que se interessam pelo sector, os agentes aguentando tudo à espera de remendos quando as coisas chegam ao limite e se aproximam da ruptura.
Este é o retrato do que temos. Defendo por isso que a primeira coisa que é preciso fazer é pensar com verdade e clareza a situação para, de seguida, se agir com visão e eficácia.E para pensar com verdade e clareza é preciso perceber-se que são dois, e bem distintos, os objectivos de uma política pública de cultura: por um lado, cumpre-lhe velar pelo bom funcionamento do que se pode chamar as “Instituições Nacionais da Cultura”, que são uma marca de civilização que não se pode, sob pretexto algum, descurar.
E que são a Biblioteca Nacional, a Torre do Tombo, a Cinemateca Nacional, os Teatros Nacionais (D. Maria, S. João e S. Carlos), a Companhia Nacional de Bailado, os Museus e Palácios Nacionais. A par disto, deve o Estado cumprir escrupulosamente os seus compromissos que estão na base da existência e do funcionamento de instituições como Serralves, a Casa da Música, o CCB ou, ainda, as redes de Bibliotecas, de Museus, de Cineteatros.
Nos cálculos que fiz, sempre num austero quadro de grande rigor, o mínimo de que estas instituições necessitam em termos de financiamento para funcionarem com a dignidade a que elas e os cidadãos que servem têm direito, é de cerca de 0,5% do Orçamento do Estado. É um orçamento que, se – e só se – estas instituições funcionarem bem, poderá ser robustecido em função de projectos e de iniciativas concretas, pela via dos patrocínios, das parcerias e do mecenato.
Por outro lado, e este é o segundo objectivo de uma política pública de cultura, o Estado tem a obrigação - esta mais matizada pelas opções eleitorais sufragadas pelos cidadãos - de apoiar as actividades culturais, artísticas e criativas, sobretudo onde e quando o mercado é incapaz de as sustentar. Incapacidade que, infelizmente, é tanto maior quanto mais pequeno é o mercado, como é o caso português.
É evidente que, enquanto no primeiro objectivo os consensos não são difíceis de alcançar, neste segundo objectivo as diferenças políticas fazem-se sentir mais intensamente. Donde, naturalmente, que seja aqui que é preciso mais conhecimento e mais ponderação, mais diálogo e mais ousadia, mais talento e mais tacto nas decisões a tomar. Tendo em conta que, dada a quantidade e heterogeneidade das áreas implicadas, que vão do cinema à música, das artes plásticas ao teatro, da dança à ópera, etc., tudo isto num quadro de imperativa internacionalização, nunca este objectivo pode ser atingido se não tiver um financiamento de 0,5% do Orçamento de Estado.
O que é preciso, é que se compreenda que estamos a falar de um sector de enorme potencial, que se trata - como há tempos escreveu Augusto Mateus – de um “recurso estratégico para o progresso económico e social num mundo onde a inovação e a digitalização se articulam estreitamente com a diversificação e a diferenciação” (Jornal de Negócios, 18/04/2018)
É isto, e não uma qualquer miragem cabalística, que justifica a ambição do 1% para a Cultura. Donde a necessidade da clareza e da eficácia que referi. Elas só podem decorrer de uma estratégia que fixe objectivos e estabeleça prioridades. Que se assuma, não como uma “flor na lapela” dos governantes, mas como uma opção nuclear para o país em termos de qualificação dos cidadãos, do território e das instituições. Para lá, bem entendido, da projecção global das suas obras, dos seus valores e dos seus criadores.
Para terminar, há dois pontos que não posso deixar de enfatizar. O primeiro, é que a política pública de cultura existe para o país, ela visa garantir o direito constitucional dos cidadãos à cultura. Não é um direito dos artistas ou dos agentes culturais, apesar de serem eles os preciosos e indispensáveis instrumentos daquele objectivo maior.
O segundo, é que vivemos em 2018, não estamos nos alvores das políticas culturais que na Europa se começaram a desenvolver nos anos 50, e em Portugal sobretudo nas últimas décadas do século passado. Muito do que há vinte anos parecia pacífico tornou-se, entretanto, extremamente controverso (pense-se na questão dos direitos de autor), muitos dos seus sectores fundamentais (da edição ao património) foram sismicamente abalados pelas possibilidades abertas pelas novas tecnologias, muito de novo se impôs tornando instáveis realidades seculares.
Uma política de cultura para o nosso tempo tem por isso de assumir todos estes difíceis e fascinantes desafios – na verdade, é de uma nova visão da cultura, das suas características e potencialidades que hoje se trata, visão que tem tragicamente faltado aos nossos governantes.