Justiça lenta: culpa dos megaprocessos ou de excesso de garantias?

Mudança nas regras dos recursos deixou muitos casos fora do Supremo, mas recurso para o Tribunal Constitucional impede cumprimento da pena.

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Alguns defendem que as garantias de defesa se têm vindo a encurtar. NELSON GARRIDO

Ninguém discute que a Justiça ainda é demasiado lenta a lidar com os megaprocessos criminais, que são uma gota de água no oceano de casos penais que passam pelos tribunais. Vários apontam a concentração de muitos factos e de múltiplos suspeitos num só processo como a principal causa da demora, enquanto outros atiram a culpa para o excesso de garantias dos arguidos. Não há receitas nem diagnósticos consensuais.

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Ninguém discute que a Justiça ainda é demasiado lenta a lidar com os megaprocessos criminais, que são uma gota de água no oceano de casos penais que passam pelos tribunais. Vários apontam a concentração de muitos factos e de múltiplos suspeitos num só processo como a principal causa da demora, enquanto outros atiram a culpa para o excesso de garantias dos arguidos. Não há receitas nem diagnósticos consensuais.

“A existência dos megaprocessos corresponde a uma opção das autoridades judiciárias, opção essa que é questionável sob o ponto de vista da eficácia, mas que torna esses processos mais mediáticos”, critica Cláudia Santos, professora em Direito Penal na Universidade de Coimbra.

O bastonário da Ordem dos Advogados, Guilherme Figueiredo, concorda. “Não podemos continuar a juntar uma enorme quantidade de factos em megaprocessos. Devemos separá-los por matérias e intervenientes”, sugere o bastonário.

Já o juiz do Supremo Tribunal de Justiça, Maia Costa, realça que a separação de processos tem desvantagens e lembra que por isso é que se determinou como regra que os factos conhecidos no âmbito de um processo devem ser ali investigados. “A unificação do processo resulta numa maior justiça relativa entre os vários intervenientes”, sublinha o juiz conselheiro, defendendo que quando os processos são separados começam a surgir decisões díspares.

Apesar de reconhecer problemas na fase de investigação – como a excessiva demora na resposta aos pedidos de cooperação às autoridades judiciais de outros países e nas perícias –, Maia Costa considera que os principais entraves à celeridade estão na fase de recurso e culpa o excesso de garantias previstas no processo penal. “Apesar de ter havido melhorias, temos um processo penal onde se abusa sistematicamente das garantias de defesa”, afirma o juiz conselheiro. E acrescenta: “O processo penal está feito para não andar.”

Elege uma razão como a principal causa dos atrasos na fase de reanálise do caso. “O recurso para o Tribunal Constitucional tem um efeito suspensivo [a condenação não pode ser executada], o que é a fonte da generalidade dos atrasos nos tribunais superiores”, considera Maia Costa, defendendo que este recurso não devia impedir que a pena começasse a ser cumprida. 

“A esmagadora maioria dos recursos para o Constitucional são rejeitados liminarmente, nem sequer chegam a ser analisados”, constata o juiz do Supremo. Mas mesmo que um juiz entenda que o caso não merece ser analisado do ponto de vista constitucional, os arguidos podem reclamar dessa decisão e mais tarde invocar nulidades, exemplifica Maia Costa.

Parar para pensar

Cláudia Santos tem uma visão bastante diferente. A professora universitária considera que “há cada vez menos garantias para os arguidos e cada vez mais recursos para os investigadores”, lembrando, por exemplo, que já é possível fazer um arresto alargado de bens dos arguidos antes mesmo da condenação. “Temos assistido, nos últimos anos, a um claro encurtamento das garantias. Além disso, foram criminalizadas condutas, como o recebimento indevido de vantagem, que suscitam muito menos dificuldades probatórias”, nota.

Realça que, em 2010, o Código de Processo Penal alargou os prazos do inquérito nomeadamente para as investigações da criminalidade complexa e critica a violação desses prazos. “Quando os aplicadores do direito violam os prazos previstos na lei, estão a desrespeitar o princípio da legalidade e a presunção de inocência, mas também a separação de poderes inerente aos sistemas democráticos”, sustenta a docente da Universidade de Coimbra. E, acrescenta: “Os prazos não são impostos só pela protecção de direitos fundamentais dos arguidos, eles resultam também dos prejuízos que a passagem do tempo acarreta para a descoberta da verdade.”

Conceição Gomes, coordenadora do Observatório Permanente da Justiça, considera que “não tem havido condições para se fazer uma boa reflexão sobre se as garantias de defesa estão devidamente acauteladas”, mas recusa o chavão do excesso de garantias. “As pessoas têm que ter os seus direitos de defesa”, acredita.

“Deve-se reflectir mais sobre o que correu bem e mal em cada caso. Mas não vejo que essa reflexão seja feita”, afirma a socióloga do Direito. Conceição Gomes lembra que a alteração das regras de recurso fez com que muito menos casos chegassem ao Supremo e lamenta que as leis sejam mudadas com frequência. “As regras estão sistematicamente a ser alteradas e isso cria caos e dúvida sobre a lei que se aplica”, critica.

O bastonário dos advogados defende que o Estado tem de criar condições nas diversas instâncias para responder de forma rápida e sugere que nos tribunais superiores, nestes megaprocessos, haja juízes auxiliares e um apoio técnico pluridisciplinar.

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