Venice, Malibu, Oxnard: qual a próxima paragem de Anderson .Paak?
A fasquia estava altíssima e, por isso, apetecível para a decepção: .Paak não desilude, mas o coelho também não sai da cartola.
Em Left To Right — cuja letra, dando o “mote” para o disco, pertence, curiosamente, à última faixa de Oxnard —, Anderson .Paak interpela o ouvinte assim: “Real life, I know you miss me like you miss Obama / Real time, I been gettin’ busy with them commas” (ele que chegou a viver, no passado, como sem-abrigo, momentos existindo neste disco em que se questiona sobre a fama que dele entretanto se acercou). O primeiro verso tem razão de ser: depois de Malibu, disco aclamado por crítica e público em 2016 (estranha contabilização, parece que foi há bem mais tempo), o aguardadíssimo regresso do músico californiano pairou durante todo o ano como um dos prometidos pontos altos. Outra forma de dizer que, depois desse encantador LP, uma das melhores peças soul editadas no século XXI (medimos as palavras), a expectativa era elevadíssima, e o próprio .Paak disso estava ciente, como o comprova a preocupação em limar os “finalmentes” latente no segundo verso do trecho acima citado (“The dot stands for detail”, explicou ele um dia sobre o ponto que insiste em manter atrás do seu segundo nome).
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Em Left To Right — cuja letra, dando o “mote” para o disco, pertence, curiosamente, à última faixa de Oxnard —, Anderson .Paak interpela o ouvinte assim: “Real life, I know you miss me like you miss Obama / Real time, I been gettin’ busy with them commas” (ele que chegou a viver, no passado, como sem-abrigo, momentos existindo neste disco em que se questiona sobre a fama que dele entretanto se acercou). O primeiro verso tem razão de ser: depois de Malibu, disco aclamado por crítica e público em 2016 (estranha contabilização, parece que foi há bem mais tempo), o aguardadíssimo regresso do músico californiano pairou durante todo o ano como um dos prometidos pontos altos. Outra forma de dizer que, depois desse encantador LP, uma das melhores peças soul editadas no século XXI (medimos as palavras), a expectativa era elevadíssima, e o próprio .Paak disso estava ciente, como o comprova a preocupação em limar os “finalmentes” latente no segundo verso do trecho acima citado (“The dot stands for detail”, explicou ele um dia sobre o ponto que insiste em manter atrás do seu segundo nome).
No plano “macro”, a primeira impressão a sublinhar é a de que o ouvinte encontra aqui um disco muito mais rappado do que cantado (o inverso, portanto, do que acontecia em Malibu), logo, mais hip-hop (e funk) do que soul (Saviers Road é, na sua cadência clássica, disso paradigmática). Algo, de certa forma, expectável quando o senhor aos comandos da produção executiva responde pelo nome de Dr. Dre (Snoop Dogg, outro embaixador do G-Funk californiano, tem participação em Anywhere), que viu em .Paak (como viu, no passado, em Eminem ou, claro, Kendrick Lamar) um prodígio de som e energia, assim se selando um encontro geracional de fascínio mútuo — “I had the vision back in 12th grade / That I’d be killing shit with Doc Dre”, atira .Paak, flow estonteante, em Who R U, faixa que, juntamente com 6 Summers, Mansa Musa e Left To Right (na qual .Paak adopta a pronúncia jamaicana do dancehall), parece saída das produções de Pharrell e Chad Hugo nos auspícios dos 2000 (nomeadamente, aquele funk-rap-rock dos NERD dos melhores tempos). Devemos confessar que, aquando do anúncio de Dre como produtor do disco, receámos um disco de rap demasiado esquemático (ou “clássico”, neste sentido, se se preferir), até pelo facto de o seu último LP, banda-sonora do filme Straight Outta Compton, nos ter deixado indiferentes. Não é isso, porém, o que aqui, felizmente, se escuta, o que, desde logo, se deve ao dedo de .Paak, ele próprio talentoso produtor e multi-instrumentista (quem o viu em Lisboa no SBSR deste ano, não esquece o show que deu na bateria), razão pela qual os arranjos orgânicos, preciosos, continuam a abrilhantar o conjunto. O que, diga-se, só beneficia o próprio .Paak, que não é nem só rapper nem só cantor, antes um espantoso performer capaz de fazer as duas coisas (e ainda dança!) com iguais doses de brilhantismo (e não há muitos assim: André 3000, Lauryn Hill, Pharrell, Frank Ocean, J. Cole), carregando um património que vai de James Brown a Michael Jackson, de Prince a Marvin Gaye (embora, a usar da rouquidão, daquele grão tão sábio como sexy, só nos lembremos de uma mulher a fazê-lo desta forma: Macy Gray). Ou, ainda, uma outra dimensão desse património afro-americano, a cinéfila: The Chase (que, por si só, nos remete para filmes como os de Arthur Penn ou Arthur Ripley), abrindo o disco, podia ser banda-sonora de um blaxploitation dos 70 ou, então, de uma sua revisão nas mãos de Quentin Tarantino (a maravilhosa Across 110th Street de Bobby Womack podia, por momentos, ser substituída por .Paak a musicar a Pam Greer de Jackie Brown na passadeira rolante do aeroporto). Nem por acaso, e depois de se ouvir a porta de um carro fechar, .Paak referencia o filme Bad Boys, logo de seguida baralhando para voltar a dar: “But no Will Smith / Only real friction”. Da mesma forma que, em Trippy, pega numa daquelas one-line jokes do famoso actor americano Rodney Dangerfield (“One girl told me, ‘Come on over, there’s nobody home’ / I went over, there was nobody home”) como uma das muitas formas para abordar o amor, ou, melhor dizendo, para abordar as muitas formas do amor (ou, enfim, das mulheres, uma pluralidade delas divertidamente descrita em Sweet Chick). Fá-lo na companhia de J. Cole, chamando depois Kendrick Lamar, com uma participação surpreendentemente curta e desinteressante (de modo algum fazendo o steal the show habitual das malhas em que colabora), para Tints (ficando apenas a faltar Oddisee para ficar completo o santo quarteto do hip-hop americano contemporâneo). Mas oiça-se, também, a belíssima letra de Smile/Petty, poética sinestesia seguida de uma sensualíssima aliteração: “What is it about my smile that makes you lie to my face? / If I close my eyes to your bullshit, I could still smell it on you / I could smell it from a mile away / You can’t be the truth and be loved”. Num outro plano, e voltando àquele primeiro verso com que iniciámos estas linhas, ele carrega, como se intui, um outro sentido, próprio de um álbum que, não pretendendo ser “político”, vai transpirando inúmeros apontamentos e observações sobre a América pós-Obama (da qual resultou também, em bom rigor, um mundo pós-Obama, cujas repercussões só agora se começam mais claramente a sentir). Com a vantagem de o fazer de modo ágil, humorístico e, claro, com groove, mesmo muito groove, de tal modo que por vezes nos podemos esquecer de que se está a falar sobre fé, a escalada do consumo de drogas e ansiolíticos entre jovens ou a violência armada nas escolas. Isso, então, o que afasta .Paak de um discurso tratadista, panfletário (quando não simplesmente aborrecido), antes seguindo sempre uma máxima: celebrar a vida, dançar, having fun no matter what —“They label me a criminal / Like me some type of animal / They wan’ call me cannibal / Celebratin’ like it’s carnival!”. Ou ainda: “Cheers!”, como se ouve na canção de homónimo título, que aqui e agora mesmo se elege, oficial e oficiosamente, como a melhor malha funk do ano, de par com What’s The Use, do malogrado Mac Miller (amigo íntimo com quem .Paak colaborou na melhor malha funk de 2016, Dang!). E, na verdade, a canção é, tanto no caso de .Paak como no do convidado Q-Tip, uma comovente dedicatória aos que amamos e já cá não moram, casos de Miller (“Wishin’ I still had Mac wit’ me (Yes Lord!) / How do you tell a nigga ‘slow it down’ when you livin’ just as fast as ‘em?”) e Phife Dawg, respectivamente. O reverso do atrás citado Obama está no refrão de 6 Summers, na qual .Paak, aludindo subtilmente ao famigerado caso de uma filha que Trump terá tido de uma antiga empregada doméstica, a descreve como possuindo todas as características que um cretino da estirpe do actual presidente norte-americano detestaria ver numa progénita: “Trump’s got a love child and I hope that bitch is buckwild / I hope she sip mezcal, I hope she kiss señoritas and black gals / I hope her momma’s El Salv’”. Se, genericamente falando, Venice era R&B, Malibu soul e, agora, o hip-hop a matriz de Oxnard, a verdade é que eles são tudo isso (e ainda mais) ao mesmo tempo — 6 Summers é exemplar no modo como, usando do mesmo hook, transita de um amargo “lado A” rock para um “lado B” jazzy e sacarino (a mesma bipartição de Brother’s Keeper, a única e prazerosa aproximação ao trap). Esta a contínua riqueza que tem correspondência na coerência dos títulos (a toponímia pessoal, afectiva: Oxnard é o nome da pequena cidade californiana onde .Paak nasceu) e das capas, collages modernistas, pop-artescas. Quatro discos editados depois (acresce O.B.E. Vol.1, gravado ainda como Breezy Lovejoy), sempre a um ritmo bi-anual, e este ainda não é, quanto a nós, o patamar mais alto que .Paak pode atingir, mas confirma-o, em qualquer caso, como um dos mais estimulantes músicos para os próximos anos.