(Mulheres + Startups) x Sexo = Vida Muito Difícil
Mystery Vibe, Dame e Unbound são empresas criadas por mulheres que trocaram empregos bem pagos por uma carreira numa indústria mal vista, mas em mudança.
Se abrir uma empresa de tecnologia é uma tarefa espinhosa, experimentem fazê-lo na indústria do sexo. É um facto que a Internet parece ter sido inventada para a pornografia, mas isso não facilita a vida dos empreendedores sex tech. Quem arrisca pode contar com um rosário de minas e armadilhas.
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Se abrir uma empresa de tecnologia é uma tarefa espinhosa, experimentem fazê-lo na indústria do sexo. É um facto que a Internet parece ter sido inventada para a pornografia, mas isso não facilita a vida dos empreendedores sex tech. Quem arrisca pode contar com um rosário de minas e armadilhas.
Primeiro problema: os investidores fogem a sete pés. "No sex, no drugs, no vices" (Não a sexo, drogas ou vícios) é uma espécie de mandamento para muitos fundos de investimento e empresários de venture capital (capital de risco), que recusam projectos com base nesta "cláusula do pecado", descreve a fundadora da Mystery Vibe, Stephanie Alys, que desenha, produz e vende acessórios sexuais com tecnologia.
Segundo problema: é mais difícil publicitar produtos ou serviços. Muitas plataformas online, como o Facebook e outras que chegam a centenas de milhões de pessoas e ganham a vida com publicidade, recusam anúncios da indústria do sexo. Alex Fine, criadora da empresa Dame, sentiu isto na pele. "Tínhamos consciência dos desafios que tínhamos pela frente, quando começámos. Os nossos produtos eram muitas vezes encarados como imorais ou de maus vícios", recorda.
Terceiro problema: a incompreensão das pessoas que nos são mais chegadas. Quando Polly Rodriguez disse à mãe que iria trocar uma carreira na Deloitte pela vida de empresária e fundar a Unbound, a resposta foi uma pergunta: "O que é que queres fazer com a tua vida?!"
"Para ela foi um choque, mas fui percebendo que, entre as minhas relações profissionais e pessoais, toda a gente quer ter uma conversa sobre sexo. Acabei por ouvir muitas palavras de incentivo entre colegas da Deloitte, que achavam o meu projecto fantástico", recorda.
Mas Polly não esperava um mar de rosas. "No início, foi muito difícil sermos levados a sério. Foi preciso mostrarmos primeiro que tínhamos a capacidade de gerar receitas para sequer conseguir uma reunião com alguém importante. Apresentei o meu pitch a mais de 500 investidores, demorei dois anos a conseguir resultados", conta.
De ignoradas a convidadas
Ultrapassadas as dificuldades iniciais, Stephanie Alys (formada em Relações Internacionais), Alex Fine (psicóloga clínica) e Polly Rodriguez (licenciada em Gestão e Economia) são reconhecidas como mulheres que vingaram numa milionária indústria dominada por homens. E não são reconhecidas por serem mulheres, mas porque estão a inovar numa indústria que "se habituou a operar na sombra" e que, por essa razão, "passou décadas e décadas sem qualquer inovação", sublinha Polly.
Esse cenário está a mudar: "Muitas das empresas novas que estão a chegar foram fundadas e são geridas por mulheres, o que faz com que os produtos que estão a ser criados sejam necessariamente diferentes", salienta por seu lado Stephanie.
Polly exemplifica: "Quando eram só homens a desenhar produtos eles perguntavam o que é que as mulheres querem e a resposta era invariavelmente um pénis. Mas hoje sabemos que 70% das mulheres, ou mais, preferem a estimulação clitoriana ou têm mais prazer sexual com estimulação externa. Daí que o design e as funções estejam a mudar."
Pelas histórias que estas três empresárias apresentaram no início de Novembro em Lisboa, onde foram oradoras convidadas pela Web Summit, percebe-se que querem afastar a indústria sex tech da imagem de empresas de vão de escada. Querem trabalhar às claras, e fazem questão de dar a cara. Querem fazer negócio, mas também "promover conversas saudáveis sobre sexo" e "combater estereótipos, estigmas e tabus". De ignoradas pelos investidores passaram a convidadas para falarem em todo o mundo. Sentem que a missão delas é também representar as mulheres que arriscam estar numa indústria que reservava ao elemento feminino um papel completamente diferente.
Para elas, "falar de saúde sexual é falar de saúde, são dois conceitos inseparáveis". "O sexo é muito importante para a nossa saúde mental e física. Ajuda a aliviar o stress e a ansiedade, é bom para o coração, para a saúde em geral e, por isso, deveríamos estar a pensar nisto, no nosso bem-estar e no dos nossos filhos", advoga uma delas.
"Há dez ou 20 anos, entrava-se numa sex shop à procura de produtos para mulheres e o Rabbit era um dos grandes sucessos. Tinha a forma de um pénis. Pelo contrário, se entrarmos hoje numa loja e olharmos para os produtos premium, nenhum tenta replicar a genitália masculina. São produtos muito bem desenhados, ergonómicos, suaves, cheios de curvas. Não são imitações de pénis", anota Stephanie, que criou o negócio dela sem apoio de investidores.
Optou pelo caminho mais difícil, mas ganhou respeito da indústria e também fora dela. A circunspecta The Economist já lhe deu atenção; publicações do mundo da tecnologia como a Wired aprenderam a não ignorá-la. Nos últimos anos (a ideia da empresa nasceu há dez, mas a startup começou em 2014), angariou diversas distinções: ganhou prémios no The Europas, no Young Guns e integra o PathFounders Top 100 European Founders; foi eleita pela revista Management Today como uma das melhores 35 gestoras com menos 35 anos em 2017 e uma das mais relevantes 50 mulheres com menos de 30 anos para a The Drum em 2017.
"Melhorar a experiência"
Stephanie, inglesa, apresenta-se como fundadora e chief pleasure officer da Mystery Vibe. Chegou a Lisboa acompanhada pelo produto mais vendido, o Crescendo, e de um protótipo do novo produto que está em pré-venda, o Tenuto. É o primeiro artigo para homens concebido pela Mystery Vibe, composto por um anel que, tal como o Crescendo, foi concebido por uma equipa multidisciplinar. O Crescendo é "um vibrador altamente personalizável, que pode ser dobrado de todas as maneiras até se obter a forma que se pretende. Que pode vibrar com diferente intensidade e padrão e que se pode controlar remotamente através de uma aplicação no telemóvel", explica, enquanto mostra um exemplar para as câmaras.
Fez as delícias de alguma imprensa britânica, em Maio deste ano, quando anunciou que iria mandar um exemplar para Buckingham Palace, residência da monarquia, como prenda de casamento para o Príncipe Harry e Meghan Markle. Respeitam-na por ter criado do nada um negócio cuja facturação anual deve ultrapassar os cinco milhões de euros em 2018, com vendas para 58 países.
"Apesar de neutro em termos de género, o Crescendo é percepcionado como sendo para um público feminino. Mas 50% dos nossos clientes são homens, que nos questionavam quando é que teríamos alguma coisa para eles." A equipa de Stephanie olhou então para o que havia no mercado e entendeu "que havia muito espaço para inovar e pôr à venda alguma coisa diferente". Daí nasceu o Tenuto, seguindo a lógica habitual da empresa: "A nossa preocupação é conceber algo que pode ser levado para dentro de uma relação e não para substituir alguém que esteja numa relação. Nem é para dar algo a alguém que não consegue ter uma relação. Não queremos substituir pessoas, queremos melhorar a experiência."
Fazer história no crowdfunding
Alex Fine, norte-americana, também aterrou em Lisboa com novidades. Depois dos sucessos de venda Eva e Fin, apresentou Pom, um acessório sem estrutura interna, feito de silicone não poroso, e equipado com diversos motores, tal como os produtos da concorrente Mystery Vibe, e ao contrário do que é prática habitual neste segmento, que geralmente aposta em um ou dois motores, no máximo.
Alex também passou ao lado dos investidores, mas fez história com as campanhas de crowdfunding em que apostou para contornar o bloqueio do venture capital. Angariou 575 mil dólares em 45 dias para o primeiro produto, lançado há quatro anos na Indiegogo. E dois anos depois, conseguiu mais 400 mil dólares para o segundo produto, em 30 dias, pela plataforma Kickstarter. "Foi aliás o primeiro produto sexual admitido na Kickstarter", salienta Alex, que fundou a Dame com Janet Lieberman, uma engenheira mecânica formada no MIT.
"Sentimo-nos abençoados pela comunidade e por isso não estivemos activamente à procura de financiamento. Tivemos conversas com investidores, mas foi sempre um desafio. Eu olho para o que faço como algo de bom, penso que levo alegria e prazer, que estou a ajudar a humanidade e, por isso, esbarrar na “cláusula do pecado”, que me tenta dizer que o que faço é imoral e mau para a sociedade, era algo que me magoava", acrescenta.
A Forbes elegeu-a este ano como um dos 30 empreendedores mais relevantes do mundo com menos de 30 anos. Ela vê-se como "empreendedora, inventora e activista". "Costumava ouvir uma frase que me parece cada vez mais verdade: tentares ser tu mesmo é uma forma de activismo. Não compreendia toda a resistência e radicalização contra aquilo que faço, mas penso que tentar ser eu mesma, uma mulher, uma empreendedora, já me faz sentir uma activista. E se a isto somar a conversa sobre sexo, isso faz-me sentir também uma activista que defende as mulheres, o prazer sexual, a verdade pela compreensão do nosso corpo."
A empresa "vende bem em sítios urbanos". No último Verão, uma reportagem do New York Times fez disparar o negócio. "A maioria das vendas foi para pessoas com 65 anos ou mais", descreve. O que aprendeu com isto? "Que o sexo é para todos. Muitas pessoas acham que isto é um divertimento para jovens, mas não é verdade. Por outro lado, mostra como o mercado é enorme e que há muitos segmentos por explorar, muita gente a quem vender" Embora diga que a Dame se foca "em pessoas com vulva", 35% das compras são feitas para homens.
A gestão na Dame é muito semelhante à da Mystery Vibe e da Unbound. A equipa é pequena, inclui engenheiros, especialistas em saúde e de marketing. "Começamos por falar com os nossos clientes, perguntamos qual o produto favorito, porquê, do que gostam. Depois idealizamos um grupo de produtos, fazemos alguns modelos, recorremos a impressoras 3D, moldamos silicone, fazemos todos os elementos, cerca de 50 exemplares e mandamos aos clientes para testar. Só depois passamos para a produção", revela.
Polly derrotou a "cláusula do pecado"
Polly Rodriguez, dos EUA, acabou por ser a única destas três empresárias que conseguiu contornar a tal "cláusula do pecado". Mas diz que "foi a coisa mais difícil" que fez na vida. Isto, para uma mulher a quem foi diagnosticado um cancro aos 20 anos, com 30% de hipóteses de sobrevivência. Dez anos depois, continua viva e a lidar com o facto de ser uma sobrevivente, que se define como uma pessoa "bastante resiliente".
Para a empresa dela, angariou quase três milhões de dólares em venture capital, mas teve de começar sem apoio. "Quando mostras ter um crescimento orgânico, torna-se impossível continuarem a ignorar-te", justifica. "Precisei de dois anos para levantar uma Série C [terceira ronda de investimento]. A empresa estava a portar-se muito bem. Quando as finanças são fortes, os investidores têm de te levar a sério", destaca. Mas confessa que é preciso ser capaz de resistir para singrar neste meio, não ligar ao que os outros dizem. "Por vezes, torna-se cansativo."
Primeiro vendia online produtos de outras empresas. O catálogo era enorme: 2500 produtos. Ao fim de três anos, tinha reunido muita informação sobre o mercado. "Sabíamos o que vende, qual o intervalo de preço mais atractivo, o que é que as pessoas querem, qual a cor favorita". Pegaram nesses dados e idealizaram o primeiro produto próprio. "Fizemos pesquisas de mercado e cruzámos as respostas com as tendências de outras indústrias, como a moda e a tecnologia".
O resultado foram wearables de sexo, acessórios que se podem usar como se fossem artigos de moda. Um deles é um anel vibratório que se pode usar como se fosse uma jóia. E que muda o padrão vibratório ou a intensidade com base em tecnologia semelhante à dos smartphones que estão equipados com um acelerómetro, que permite por exemplo mudar de faixa musical sem carregar num botão ou ajustar a imagem em função da posição do ecrã.
"Há muita ciência por detrás disto, a minha equipa é toda feminina. Não foi uma escolha consciente, é assim porque essas pessoas tinham o talento de que precisamos. Uma delas é uma engenheira biomecânica, formada em Medicina e especializada em dispositivos médicos – que é como estes acessórios eram categorizados numa perspectiva de produto", explica Polly. "Quando olhamos para história desta indústria, vemos que era dominada por homens de meia-idade, por empresas familiares, em que a gestão passava de pais para filhos e que não se guiava propriamente pelo talento", sustenta.
Isso está a mudar e a transformar também como a tecnologia vai connosco para a cama. Os produtos da Unbound são todos para mulheres, mas Polly diz que é apenas uma "decisão de gestão". "Não ponho o foco no homem ou na mulher, mas sim na aprendizagem da anatomia. Não se ensina a uma mulher em crescimento que não há problema em masturbar-se, não lhe ensinam o que é o clitóris, o que pode ser o prazer, ao contrário do que acontece com um rapaz ou homem… por isso, nesta altura, estamos focados no segmento de mercado em que a procura é maior."
Ainda que tenha conseguido atrair investidores, Polly é muito crítica em relação ao funcionamento do mercado que, por exemplo, rejeita anúncios de vibradores para mulheres mas aceita publicidade aos preservativos ou medicamentos contra a impotência sexual nos homens.
"É uma política sexista porque as coisas focadas na experiência do homem são vistas como questões de saúde e podem ser publicitadas, mas se forem vibradores para mulheres já não aceitam. O sexo não é uma coisa má, viciante ou prejudicial, e se continuarmos a proibir empresas que estão a promover um debate saudável em torno do sexo, prolongamos a ideia de que é uma coisa má, de que esse debate se deve fazer atrás das cortinas, de que não é apropriado. Isso fortalece o estigma quando temos apenas pessoas a querer aprender mais sobre o corpo delas. Isto cria um mal social e há-de acabar por mudar. Sites como o eHarmony ou o Match.com também eram proibidos de anunciar porque eram considerados pornográficos, quando afinal eram sites de encontros. É uma questão de evolução e de mudança cultural."
A Internet é então uma boa ou má influência sobre a nossa saúde sexual? "Isso é uma óptima questão! Por causa de todas estas políticas restritivas, o que começámos por ver foi o lado feio e negro da indústria do sexo. Hoje em dia, a idade média de uma criança que vê porno pela primeira vez é de oito anos. Uma loucura, certo?! Portanto o porno tornou-se ubíquo, não tenho nada contra, acho bom, deveria florescer mas penso que por não estarmos a ter mais conversas saudáveis sobre sexo, a Internet abriu as portas a uma espécie de vida dupla, que todos levamos. Ninguém fala sobre o assunto, mas depois toda a gente consome pornografia em casa. A Internet tem o poder de resolver este problema, mas temos de mudar, como sociedade, permitir conversas francas, consciencializar para o consentimento, permitir que empresas que estão a tentar normalizar a descoberta sexual cheguem aos consumidores e, dessa forma, impedir que só se aprenda sobre sexo através da pornografia."