O “homem sem qualidades” que conduziu o mundo até ao fim da Guerra Fria sem disparar um tiro
Era um moderado, privilegiava a “diplomacia pessoal”, não acreditava em ideologias e defendia a necessidade de ouvir os outros. Morreu aos 94 anos.
George H. W. Bush presidiu aos destinos da América durante quatro anos que mudaram o mundo para além de todas as previsões. Coube-lhe criar as condições que permitiram o fim da Guerra Fria e o impensável desaparecimento da União Soviética. Sem ter de disparar um tiro. Era um moderado, privilegiava a “diplomacia pessoal”, não acreditava em ideologias e defendia a necessidade de ouvir os outros. Anunciou uma “nova ordem mundial” na qual as leis internacionais eram para cumprir. “Foi uma ponte entre uma das maiores linhas de fractura da História”. Os americanos agradeceram-lhe mas recusaram-lhe o segundo mandato. Morreu na sexta-feira aos 94 anos.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
George H. W. Bush presidiu aos destinos da América durante quatro anos que mudaram o mundo para além de todas as previsões. Coube-lhe criar as condições que permitiram o fim da Guerra Fria e o impensável desaparecimento da União Soviética. Sem ter de disparar um tiro. Era um moderado, privilegiava a “diplomacia pessoal”, não acreditava em ideologias e defendia a necessidade de ouvir os outros. Anunciou uma “nova ordem mundial” na qual as leis internacionais eram para cumprir. “Foi uma ponte entre uma das maiores linhas de fractura da História”. Os americanos agradeceram-lhe mas recusaram-lhe o segundo mandato. Morreu na sexta-feira aos 94 anos.
Subsistiu sempre uma espécie de mistério na carreira política do 41.º Presidente dos Estados Unidos da América. Como foi possível que o homem que levou a bom porto, pacificamente, o fim do comunismo, da Guerra Fria e a implosão do império soviético em apenas um mandato, falhasse a eleição do segundo? Hoje, à luz das memórias e dos ensaios que já foram escritos sobre esses quatro anos verdadeiramente prodigiosos (1989-1993), em que muita coisa poderia ter corrido mal, o mistério encontra várias explicações.
Algumas delas são as características pessoais (mais do que políticas) de um homem mediano que passou quase toda a vida activa vendo-se a si próprio como um servidor público, pragmático mais por ausência de ideologia do que por escolha política, instintivamente moderado, capaz de ouvir os outros mesmo que fossem adversários ou inimigos, rodeado de um escol de conselheiros de primeira água. Não tinha carisma, era mau orador, não parecia capaz de um assomo de paixão.
Foram, porventura, estas características pessoais que lhe permitiram ser “vice”, durante oito anos, de um dos Presidentes mais ideológicos, carismáticos e desafiadores da história recente da América. Enfrentou Ronald Reagan nas primárias republicanas de 1981, criticando a sua receita económica (chamou-lhe “economia vodu”), a sua visão radical do mundo, a sua maneira de desafiar os inimigos. Serviu-o zelosamente nos seus dois mandatos. Era esse o seu dever de lealdade, facilitado pelo seu desprezo pelas ideologias, a que uma vez chamou de “vision thing” (essa coisa da visão) e porque Reagan acabou por perceber depressa a sua utilidade.
Reagan levou a cabo uma revolução conservadora, em parceria com a sua “amiga” Margaret Thatcher, que mudou radicalmente a economia americana e europeia. Foi o chamado crescimento pela via da oferta (a que hoje chamamos de neoliberalismo), facilitando a vida dos detentores do capital e das empresas com uma baixa drástica dos impostos e a destruição da regulação dos mercados, ao mesmo tempo que tentava reduzir os benefícios sociais, argumentando que cada um tinha a obrigação de fazer pela vida.
Bush não pensava nada disto. Olhava horrorizado para o aumento exponencial do défice público que, aliás, herdaria com consequências políticas pesadas. Reagan não se importava. Era, porventura, o homem mais bem preparado da equipa presidencial em matéria de política externa. Conheceu, nas suas funções de “vice”, a maioria dos líderes mundiais, a começar por Mikhail Gorbatchov, desenvolvendo com ele uma relação de confiança mútua que se revelou crucial para o seu primeiro e único mandato.
Ele próprio relata com humor as circunstâncias dessa relação, no livro de memórias que escreveu com Brent Scowcroft, o seu conselheiro nacional de segurança. Entre 1982 e 1985, teve de ir a Moscovo três vezes para representar Reagan em três funerais de três secretários-gerais do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) que haviam de marcar a história mundial: Leonid Brejnev (Novembro de 1982), Yuri Andropov (Fevereiro de 1984), Konstantin Chernenko (Março de 1985). No último, Gorbatchov já tinha sido escolhido para liderar o PCUS. Diz Bush na nota que enviou a Reagan depois do encontro: “ Gorbatchov, mais do que qualquer dos seus antecessores, fará o necessário para orientar a União Soviética para o modo de consumo ocidental. (…) Tem um sorriso desarmante, um olhar caloroso.”
Encontrou-o depois muitas vezes, quando Reagan o desafiou para negociarem a redução do armamento nuclear estratégico. Já era um amigo que tratava pelo próprio nome quando chegou à Casa Branca para presidir aos destinos da América. Com uma convicção profunda, talvez a única que tinha: o que é mais importante na política externa é a “diplomacia pessoal”, à qual acrescentava a capacidade de “ouvir os outros”. Talvez tenham sido estes dois condimentos que permitiram a este “guerreiro” da Guerra Fria gerir a inesperada revolução que Gorbatchov desencadeou na União Soviética e que abalou o mundo até aos alicerces, abrindo as portas a uma nova era. Ninguém admitia nessa altura – é bom recordar – que o comunismo e a União Soviética pudessem ser derrotados por dentro, sem causar um conflito de dimensões épicas. Não era isso que a História ensinava.
Os aliados
Bush não agiu sozinho. O mérito tem de ser distribuído por Helmut Kohl e pelo próprio Gorbatchov, cuja coragem foi a chave dos extraordinários acontecimentos vividos entre 1989 e 1991. O chanceler alemão foi determinante na unificação da Alemanha, o maior problema que se colocava ao mundo livre quando o Muro caiu. Mas Kohl nunca teria conseguido responder à velocidade dos acontecimentos, se Bush não estivesse ao seu lado para tranquilizar Moscovo, mas também Paris e Londres. Foi o primeiro a apoiar os planos de Kohl para a unificação, e Kohl ficou-lhe grato para sempre.
A máxima na Casa Branca era “seguir Kohl, apoiá-lo e não fazer declarações que possam envenenar a situação”, escreve Scowcroft. Quando o Muro de Berlim caiu, havia em Washington pontos de vista diferentes sobre a questão alemã. Na Casa Branca, predominava a ideia de que a unificação era imprescindível para pôr fim à Guerra Fria, mesmo que levasse algum tempo. O Departamento de Estado tinha uma posição mais prudente, que levava em conta as preocupações de Paris e Londres. As duas potências europeias temiam o ressurgimento de uma Grande Alemanha no centro do continente. Conta Bush que, num encontro com Margaret, como ele dizia, ela tinha subitamente retirado da sua eterna mala de mão um mapa com as fronteiras da Alemanha em 1937. Era difícil prever o futuro. Mas o fim da ordem de Ialta não dispensava a liderança americana. Foi esse o papel que Bush soube desempenhar com bastante mestria: garantir a segurança dos aliados europeus e, ao mesmo tempo, fazer as coisas de tal forma que ajudassem o líder soviético a enfrentar internamente a velha guarda do Partido Comunista e os militares.
A sua moderação foi criticada por muitos, que preferiam o estilo de Reagan em Berlim: “Senhor Gorbatchov deite este muro abaixo”. Era exactamente o que Gorbatchov tencionava fazer.
O início
Quando Bush chegou ao poder, em Janeiro de 1989, o fim do domínio soviético sobre a Europa Central e de Leste já estava em marcha. O espírito do Presidente era ainda o de alguém que participara directamente na Guerra Fria nos mais diversos postos. Nixon nomeou-o embaixador na ONU; Ford enviou-o para Pequim e nomeou-o, mais tarde, director da CIA. Como nota Stephen Knott, do Miller Center, Bush ganhou as eleições de 1988 ainda com a fórmula status quo plus.
Não teve de esperar muito para ver os polacos, checoslovacos, húngaros, romenos e alemães de Leste encherem as praças de Varsóvia, Praga, Budapeste, Bucareste e Berlim a reivindicar liberdade. A explicação estava na nova “doutrina Sinatra” do líder soviético: cada um é livre de seguir o seu caminho sem medo de ver os tanques russos entrarem pela porta dentro. Bush chegou a duvidar, no que não foi excepção. Temia um banho de sangue a qualquer altura, a que dificilmente os EUA conseguiriam responder. Tinha gravadas na mente as vezes em que Moscovo esmagou as revoltas contra os seus lacaios europeus. Na Alemanha, em 1953, na Hungria, em 1956, na Checoslováquia, em 1968 e na Polónia, em 1981.
Não acreditava em milagres. Mas conhecia Gorbatchov e confiava nele. Em casa, democratas e republicanos criticavam-no porque não anunciava ao mundo com a devida fanfarra a vitória da liberdade sobre o totalitarismo, da América sobre a URSS, a libertação dos países de Leste. Não era bem assim. Em 1990, visitou Lech Walesa em Gdansk, nos estaleiros navais onde tudo começou. Era preciso perceber as circunstâncias. Diz o próprio Bush sobre essas críticas: “Os democratas queriam que eu fosse a Berlim e dançasse em frente ao Muro – puro disparate”. E não havia apenas a libertação da Europa de Leste. Bem mais perigosa parecia ser a vontade de independência que alastrava em quase todas as repúblicas soviéticas que foram integradas pela Rússia depois das duas guerras. Visitou Kiev, advertindo os líderes independentistas para os riscos do “nacionalismo suicidário”. Os críticos qualificaram o seu discurso de “Chicken Kiev”, qualquer coisa como “galinha à moda de Kiev”, acusando-o de falta de coragem política. “O único caminho para a independência dos Bálticos era o consentimento do Kremlin”, escreve Scowcroft sobre as decisões cruciais que Bush teve de tomar. “A nossa tarefa era levar Gorbatchov até aí.” Nas suas memórias, Bush faz uma pergunta com sentido: “Se Moscovo resolvesse esmagar as independências, como é que nós responderíamos?”
A eterna questão alemã
As tropas das quatro potências vencedoras da II Guerra ainda estavam presentes em Berlim. A fórmula negocial encontrada para a reunificação foi a de “dois mais quatro” – as duas Alemanhas e as quatro potências ocupantes. Começaram em Fevereiro de 1990 e ficaram concluídas em Setembro desse mesmo ano. Entre uma data e outra, Bush percebeu que a unificação era inadiável. Kohl tinha-lhe explicado porquê: milhares de alemães de Leste iam diariamente para a RFA e os que ficavam, se alguém os tentasse travar, podiam facilmente recorrer à violência.
O ponto mais difícil foi, naturalmente, a permanência da Alemanha unificada na NATO. Nesse capítulo, Bush foi intransigente. Temia que Kohl se deixasse tentar pela neutralidade, se fosse essa a condição para reunir de novo os alemães. Gorbatchov defendia também a velha ideia da neutralidade. Mais uma vez, o impossível aconteceu. Conta Scowcroft que, quando finalmente Gorbatchov aceitou a permanência da Alemanha na NATO, viu dois dos seus conselheiros militares discordarem dele em voz alta e à frente da delegação americana. “Eu não podia acreditar no que estava a ver, quanto mais pensar o que havia de fazer.”
Nas suas reflexões, Bush escreve que o pior que poderia acontecer era “humilhar” ou “enfraquecer” o líder soviético, que iniciara um jogo de altíssimo risco do qual tudo afinal dependia. Devia também ouvir François Mitterrand e Margaret Thatcher. O Presidente francês queria garantias de que a Alemanha permaneceria na NATO, mas também na Comunidade Europeia. Mitterrand e Thatcher queriam ter a certeza de que os EUA continuavam na Europa, para afastar todos os seus receios sobre o renascimento de uma Grande Alemanha no centro do continente.
Tinha outro problema, que ele próprio reconhece: um défice federal de tal modo gigantesco que afectava seriamente a sua capacidade de apoio financeiro às forças democráticas dos países que se iam libertando, justamente quando mais precisavam dela. A superpotência era vencedora mas estava sem dinheiro. Kohl encarregar-se-ia dessa parte, gastando triliões de marcos para ajudar Gorbatchov, incluindo na retirada das forças militares que estavam na Alemanha de Leste (380 mil homens) e em outros países do Pacto de Varsóvia, que teriam de regressar à base sem convulsões.
Em dois anos, o mundo mudou. Podia ter sido de um maneira trágica. A qualquer momento, um acontecimento banal poderia ter deitado tudo a perder. Os EUA foram fundamentais para que isso não acontecesse. No dia 19 Agosto de 1991, alguns saudosistas do passado e unidades de elite do KGB sequestraram Gorbatchov, de férias na Crimeia, e tentaram um derradeiro golpe em Mosco. Durante três dias, os líderes ocidentais viveram de respiração suspensa. Era um golpe contra a História e, portanto, fracassou.
No dia 25 de Dezembro de 1991, Bush viu a bandeira da URSS ser hasteada pela última vez no Kremlin. Estava com a família em Camp David para celebrar o Natal. Gorbatchov preparava-se para anunciar, nessa noite, o fim oficial da URSS. A última pessoa a quem telefonou, duas horas antes, foi a George Bush. “George, querido amigo, é bom ouvir a tua voz.” “Aprecio o facto de me teres telefonado”, retorquiu o Presidente americano. Gorbatchov: “Queria reafirmar directamente que valorizo grandemente o que nós conseguimos fazer juntos, primeiro como vice-presidente e, depois, como Presidente dos EUA.” Bush: “Escrevi-te hoje uma carta onde expresso a convicção de que aquilo que fizemos juntos vai ficar na História e será devidamente apreciado.”
Nem tudo correu bem
George Bush sempre teve uma visão realista da política externa americana, mesmo antes da sua “hora decisiva”. Nunca deu demasiada importância à defesa dos direitos humanos, seguindo esta escola de pensamento, cujo maior cultor foi Henry Kissinger. Teve como principal conselheiro um dos alunos dilectos do mestre, Brent Scowcroft. Talvez isso explique um dos episódios mais lamentáveis que marcaram a sua gestão do fim da Guerra Fria. A 4 de Junho de 1989, o governo de Pequim esmagou pela força militar os manifestantes que tinham ocupado a Praça Tiananmen para exigirem mais liberdade, provocando um banho de sangue intolerável. A maior preocupação de Bush foi manter um bom relacionamento com Pequim. Conhecia bem Deng Xiaoping, o líder chinês que anunciou, em 1979, que era “glorioso enriquecer”. As sanções que decidiu aplicar à China não estavam à altura da tragédia.
Quem era este homem prudente e sem rasgo, que desapareceu ontem aos 94 anos. Que acontecimentos marcaram a sua personalidade?
WASP até ao tutano
George Herbert Walker Bush nasceu a 12 de Junho de 1924, no Massachusetts, numa família rica da Costa Leste. O seu pai, Prescott Bush, tinha um banco de investimento e era senador. A mãe vinha das velhas famílias tradicionais. Bush fazia parte de uma elite cujo destino era fácil. Os melhores colégios, a Ivy League (Yale), uma educação de responsabilidade e de humildade em relação aos outros, que a mãe lhe transmitira desde criança.
Era o segundo de seis irmãos e também o mais prometedor. Aluno mediano, mas com alguma actividade nos selectos clubes de discussão que se organizavam em Yale ou em Harvard. Cumpridor do que se esperava dele, houve um momento que lhe ficou, porventura, para a vida. Tinha 17 anos quando a aviação japonesa destruiu a esquadra americana do Pacífico, estacionada em Pearl Harbour.
No dia em que completou 18 anos, alistou-se na Marinha, da qual foi o mais jovem piloto de combate. Formou-se na Phillips Academy, em 1943. No ano seguinte, o seu esquadrão foi integrado no porta-aviões San Jacinto. Foi promovido a tenente em Agosto de 1944, quando o navio de guerra iniciou as operações contra as bases japonesas no Pacífico. Numa das muitas missões, o seu avião foi atingido por artilharia antiaérea antes de atingir o alvo, o motor incendiou, ele cumpriu a missão antes de se ejectar do aparelho. Os outros dois membros da tripulação desapareceram. Ele teve sorte. Foi recolhido por um submarino americano. Pertencia à última geração dos que combateram na II Guerra. Nunca conseguiu compreender como foi possível que um obscuro governador do Arkansas, que tinha “fugido” à tropa durante a Guerra do Vietname, o tivesse vencido em 1992.
O Texas
Depois de Yale, rumou ao Texas para fazer fortuna com o petróleo. Mudou para lá com a família em 1948. Aos 40 anos, tornou-se milionário. Tentou o Senado em 1964 e perdeu. Escreveu a um amigo: “Quando a palavra moderação passa a ter uma conotação negativa, temos alguma introspecção a fazer.”
Em 1966 é finalmente eleito para a Câmara dos Representantes, cumprindo dois mandatos (1967-71). Votou a favor do Civil Rights Act de 1968 (Lyndon Johnson), sabendo que os seus eleitores do Texas não eram propriamente entusiastas. Casou-se com a sua companheira de sempre, Barbara Pierce, em 1945. Tiveram seis filhos. Criaram uma dinastia.
Foi um dos dois únicos presidentes americanos que viu um filho entrar na Casa Branca. Viveu até ao fim da vida nos arredores de Houston. Apesar do orgulho próprio de um pai, discordou profundamente de muitas das decisões de George W., incluindo a segunda guerra do Golfo para derrubar Saddam. Deu vários sinais de desagrado, mas deixou para os antigos membros da sua administração a missão de “desancar” o “wilsonismo com botas” (a doutrina, sem botas, de Woodrow Wilson depois da Grande Guerra, assente numa visão idealista de autodeterminação e de cooperação entre os povos), defendido pelos principais conselheiros do filho.
Na biografia de Jon Meacham, Destiny and Power (2015), acusou Dick Cheney, que foi seu secretário da Defesa, de ser “outra pessoa”, arrogante e radical, mas reservou a pior parte para Donald Rumsfeld, o chefe do Pentágono do filho. “Nunca fomos próximos. Serviu mal o Presidente.”
Não resistiu a deixar correr a ideia de que votaria em Hillary Clinton e nunca em Donald Trump. Percebe-se. Quando, em 1988, o seu director de campanha, Lee Atwater, andava à procura de nomes para o cargo de vice-presidente, apresentou-lhe o de um rico empresário da construção de Nova Iorque, que dera alguns sinais de disponibilidade. Chamava-se Donald Trump. Bush, que registou o episódio no seu eterno bloco de notas (às vezes era um gravador), classificou a sugestão de disparate.
Nunca se interessou particularmente por grandes discussões ideológicas. Alguns dos que conviveram com ele dizem que não era “uma pessoa profunda” em matéria de ideias. Por vezes surgiam dúvidas sobre o que realmente pensava. Quando, em 1988, um míssil de cruzeiro disparado do USS Vincennes atingiu acidentalmente um avião civil iraniano, matando 290 passageiros, reagiu de forma, no mínimo, muito estranha: “Nunca pedirei desculpa em nome dos Estados Unidos da América. Nunca. Não quero saber quais são os factos.” Quando se estreou, em Janeiro de 1989, ainda tinha a noção de que os EUA podiam agir livremente na América Latina, o seu “quintal”. O Panamá de Noriega tinha-se transformado num narco-Estado, com o ditador a comandar o tráfico de droga para o mercado americano. Noriega perdeu as eleições mas não aceitou os resultados. Bush enviou dois mil marines para resolver o problema.
Scowcroft e o Golfo
É aqui que entrar o homem que, provavelmente, marcou todas e cada uma das decisões de George Bush perante os gigantescos desafios internacionais que teve de enfrentar. Já o referimos. Chama-se Brent Scowcroft. Já sabemos que foi discípulo de Henry Kissinger, expoente máximo da realpolitik. Mas “realista” não queria dizer “fraco” – uma imagem que sempre ficou colada ao Presidente.
A sua posição sobre o segundo grande momento do mandato de Bush foi decisiva. No primeiro dia de Agosto de 1990, Saddam Hussein resolveu invadir o Koweit. Terá cometido o erro de pensar que o mundo bipolar ainda não tinha acabado. A primeira reacção de Bush, que chegou a transmitir aos jornalistas, foi que não considerava o recurso à força. Colin Powell, então o chefe das Forças Armadas, também não era um entusiasta. “Ainda se se tratasse da Arábia Saudita…”. Scowcroft pensava o contrário. Olhava para Bagdad como a primeira tentativa de pôr em causa a nova ordem que os EUA anunciavam ao mundo. Também ele estava preocupado com a Arábia Saudita, mas tirava a conclusão contrária. “Esta agressão pura e dura não podia ser permitida como parte desta nova ordem.” Seria um perigoso precedente. Thatcher, que tinha uma boa relação com Bush desde Reagan, disse-lhe: “Don’t go all wobbly on us, George” (qualquer coisa como: “Não te ponhas agora com hesitações, George!”). O Presidente acabou por aceitar a visão do seu principal conselheiro. Quis que a sua decisão seguisse as vias normais do sistema multilateral, centrado nas Nações Unidas, libertas do colete-de-forças do mundo bipolar.
James Baker contactou, um a um, todos os países que tinham assento no Conselho de Segurança, os permanentes e os outros. Bush fez tudo para sossegar Moscovo, que apenas queria uma negociação diplomática. Conseguiu reunir à sua volta uma coligação de 32 países, entre os quais os aliados europeus e muitos Estados árabes. Convenceu Israel a ficar de fora da guerra, condição necessária para manter a coligação. Seguiu a “doutrina Powell”: se é para intervir, então é com a máxima força.
Os EUA iniciaram em Setembro o transporte de uma força militar verdadeiramente avassaladora para a região: cerca de 400 mil homens, aos quais se juntaram mais 100 mil dos países da coligação. O Conselho de Segurança adoptou uma resolução que dava a Bagdad uma data limite para retirar do Koweit: 15 de Janeiro. A partir daí, haveria luz verde para utilizar “todos os meios necessários”.
No dia 16, Bush anunciou o início da guerra. Os primeiros bombardeamentos a alvos militares iraquianos começaram nessa mesma noite. Foi uma guerra rápida, que nem chegou a durar três meses. Cumprindo o que prometera, Bush recusou-se a avançar sobre Bagdad para derrubar o regime. A operação era para libertar o Koweit e mostrar ao mundo que as leis internacionais tinham de ser respeitadas. Foi bastante criticado nos EUA. O seu filho viria a “corrigir” a sua decisão da pior forma. Quando os primeiros soldados regressaram a casa, foram recebidos em Washington por uma imensa multidão. Ao contrário do Vietname, que dividira profundamente a sociedade americana, a guerra do Golfo era a guerra justa, que todos podiam aplaudir. Tinha quebrado o complexo da derrota de Saigão. A popularidade de Bush atingia valores inacreditáveis de 80 por cento.
Nunca elaborou uma nova doutrina para uma nova ordem internacional, porque o seu cérebro fora formatado pela Guerra Fria e era-lhe difícil pensar noutros moldes. Deixou a desintegração violenta da Jugoslávia para os europeus. Mas quando os “senhores da guerra” tomaram conta da Somália, deixando milhões de pessoas literalmente a morrer de fome, enviou uma força militar cujo objectivo era apenas humanitário. Marines com sacos de arroz às costas. Num país a ferro e fogo. A operação acabou mal, quando 18 soldados americanos foram capturados no centro de Mogadishu, amarrados e arrastados pelas ruas da cidade para o mundo ver. Uma imagem insuportável aos olhos dos americanos. A primeira coisa que Bill Clinton fez foi retirar a missão.
A agenda interna
No seu discurso inaugural, em Janeiro de 1989, falou das “pragas dos sem-abrigo, do crime e das drogas”. Defendeu o voluntariado e o envolvimento das comunidades, que seriam, lembra Stephen Knott, “os mil pontos de luz das organizações comunitárias espalhadas, como estrelas, por toda a nação fazendo o bem”. Prometeu controlar o défice. Foi por causa dele que defendeu uma “agenda limitada”. Do seu mandato ficaram duas leis importantes que também ajudam a explicar o antagonismo do seu próprio partido. “Americans with disabilities Act”, 1990, garantindo mais apoio e mais direitos. Os Republicanos acusaram-no de aumentar as despesas sociais do Estado em vez de diminui-las. Ele respondeu que, se as pessoas com deficiência pudessem trabalhar, isso compensaria largamente o dinheiro gasto. A outra foi o “Clean Air Act”, também de 1990, para reduzir a poluição urbana, as chuvas ácidas e eliminar as emissões de químicos tóxicos pelas empresas.
O desastre de 1992
Voltamos ao princípio. Bush convenceu-se que ninguém o poderia derrotar nas eleições de Novembro de 1992 para o segundo mandato. Ganhou as primárias a um rival da direita mais conservadora, Pat Buchanan, que deu voz às críticas da ala radical dos Republicanos, acusando-o de ser demasiado condescendente com os apoios sociais, ao mesmo tempo que aumentava os impostos aos ricos.
“Read my lips: no new taxes”, dissera o Presidente na campanha para as eleições de 1988. A dimensão do défice e a negociação com os Democratas (maioritários) para aprovar o Orçamento obrigaram-no a quebrar a promessa. A campanha foi um fracasso total. Não conseguiu encontrar uma mensagem que se tornasse dominante. Bush manteve-se distante. Merecia ganhar e, portanto, ganharia. Ross Perot, um milionário populista (mais moderado que Trump, mas na mesma linha), resolveu candidatar-se, desistiu e voltou a regressar, minando a base eleitoral republicana. As qualidades de Clinton fizeram o resto.
Era um comunicador nato, que chegava a toda a gente com a maior das naturalidades. Mas, mais do que tudo isso, percebeu qual devia ser a mensagem com uma frase que ainda hoje é citada: “It’s the economy, stupid!”. Era mesmo. Depois da vitória na Guerra Fria e na Guerra do Golfo, os americanos olhavam agora para si próprios, queixando-se de uma prolongada recessão que fazia aumentar o desemprego e baixar os salários reais. Clinton ofereceu-lhes a mensagem que ia ao encontro das suas aspirações. Era da geração dos baby boomers, que tinham contestado a guerra do Vietname e olhavam para o mundo de forma mais optimista. Bush não tinha um particular interesse pela política interna e a política externa, naquilo que lhe dizia respeito, estava resolvida. Não gostava de visões e de estratégias. Precisava delas para oferecer aos americanos aquilo que esperavam, depois do anúncio da Paz Americana. Perdeu.
Saiu amargurado da Casa Branca, atribuindo a sua derrota aos media, que só queriam falar de Clinton. Em 2015, regressou à ribalta, merecendo o reconhecimento tardio daquilo que conseguiu fazer. Obama agraciou-o com a medalha presidencial da Liberdade, que ainda ninguém lhe tinha atribuído. O anterior Presidente apreciava a moderação com que geriu o fim da Guerra Fria, a sua capacidade para estender a mão aos outros, a sua ideia de que as alianças e o multilateralismo eram úteis ao poder americano. Obama foi um idealista realista. Faltou a Bush uma dose, mesmo que pequena, de idealismo. Mesmo assim fica na História. “Foi uma ponte entre uma das maiores linhas de fractura da História”, resume David Rothkopf, na Foreign Policy.