O Porto é o “rato” que come o queijo do Douro
A desgraça do Douro reside nos preços miseráveis que são pagos pelas uvas e pelos vinhos. Os durienses vivem, essencialmente, das uvas e do vinho e, se o que recebem não dá para pagar as despesas, é normal que emigrem em busca de uma vida melhor.
Álvaro Domingues publicou no passado domingo, no PÚBLICO, um extraordinário ensaio: “Desemparados- Para uma geografia emocional do interior". Um zoom hiper-realista sobre os chamados “territórios de baixa densidade”. Devia ser de leitura obrigatória, para se perceber como chegámos até aqui, com uma grande parte do país a penar por ter calhado “no lado errado do mapa”.
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Álvaro Domingues publicou no passado domingo, no PÚBLICO, um extraordinário ensaio: “Desemparados- Para uma geografia emocional do interior". Um zoom hiper-realista sobre os chamados “territórios de baixa densidade”. Devia ser de leitura obrigatória, para se perceber como chegámos até aqui, com uma grande parte do país a penar por ter calhado “no lado errado do mapa”.
Apenas uma citação: “O ciclo vicioso — emigração, envelhecimento, quebra da natalidade, despovoamento, escassez de oferta de emprego —, deixou a maioria do país em estado de coma. A rapidez do processo provocou um certo atordoamento. Chega a haver escolas novas para alunos que não há; sem os serviços de apoio aos idosos que são cada vez mais, e mais fragilizados e ainda mais idosos. O paradoxo é que mesmo onde há investimentos agrícolas fortes — Douro Vinhateiro, perímetros de rega do Mira e do Alqueva —, a saída de população continua e o emprego não aparece."
O paradoxo do Douro, sempre o paradoxo, o mesmo que durante muito tempo se explicava com a figura do rato e do queijo, como lembrava num debate recente António Magalhães, o responsável pela viticultura da Taylor's e das outras empresas do grupo Fladgate Partnership. O queijo era a riqueza do Douro, o seu vinho; o rato era o “inglês”, o comerciante que comprava e vendia o vinho e só ia ao Douro na vindima.
Ainda há quem insista que a culpa de o Douro ser uma região rica habitada por pobres e velhos continua a ser do papão “inglês”. Não faço parte desse grupo. Houve um tempo, quando a região vivia só do vinho do Porto e o negócio era dominado por famílias britânicas, em que esse chavão podia fazer algum sentido. Eram elas que tinham o poder de definir os preços. Foi, basicamente, para combater esse poder que nasceu a Casa do Douro. Ao intervir no mercado, comprando os vinhos que não se vendiam, evitava assim uma maior degradação dos preços. Mas um dia a Casa do Douro quis ser ela própria o “rato” e passar também a produzir e a vender vinho, através da Real Companha Velha. Comprou 40% da empresa, pelos quais pagou 9,6 milhões de contos, nunca retirou qualquer dividendo e acabou com a língua de fora, asfixiada em dívidas. A gula dá nisto. A propósito: o que é feito desses 40% da Real Companhia Velha?
Há uns 30 anos, a região passou a fazer vinho tranquilo. O negócio diversificou-se, entraram novos operadores e deu-se o boom do turismo. Mesmo assim, o paradoxo continua imutável. Mas, agora, já não podemos culpar só o “inglês”. Dos cinco grandes colossos do negócio do vinho no Douro, dois são ingleses (Symington e Fladgate Partnership), um é francês (Gran Cruz), outro é venezuelano (Sogevinus) e outro é português (Sogrape).
Tenho uma tese sobre o paradoxo do Douro. Na minha opinião, o “rato” morou sempre no Porto e falou sempre várias línguas, português incluído. Para o Douro (como para Trás-os-Montes), o centralismo do Porto é muito pior do que o centralismo de Lisboa. A tutela dos vinhos do Douro e Porto nunca esteve verdadeiramente em Lisboa. Na capital ninguém percebe nada de vinho. O negócio foi sempre tutelado a partir do Porto. Ainda hoje. É o eixo Porto-Gaia, com o seu directório, que decide os destinos do Douro e que avaliza as escolhas políticas. O “rato” anda entre a Ribeira (um pouco mais acima, na verdade) e o cais de Gaia.
A desgraça do Douro reside nos preços miseráveis que são pagos pelas uvas e pelos vinhos. Os durienses vivem, essencialmente, das uvas e do vinho e, se o que recebem não dá para pagar as despesas, é normal que emigrem em busca de uma vida melhor. Não há explicação possível para se continuar a pagar 30 ou 40 cêntimos por cada quilo de uvas produzidas na região, quando, por exemplo, se paga mais de um euro por cada quilo de uvas de Alvarinho em Monção-Melgaço. O custo real de produção de um quilo de uvas no Douro, que é uma região de montanha, anda entre os 70 e os 90 cêntimos. Para não terem prejuízo, era este o valor que os agricultores deviam receber. Mas deviam receber mais, porque não basta trabalhar para não ter prejuízo. Quem tem uma vinha, herdada ou comprada, devia poder ganhar dinheiro com ela e, dessa forma, ter uma vida digna e poder pagar justamente aos assalariados. As grandes empresas não vendem vinho apenas para pagar as despesas. Vendem para ganhar dinheiro. Um agricultor que ganha dinheiro é um emigrante a menos e mais uma fonte de mão-de-obra para a região.
De quem é a culpa dos preços baixos? Do mercado, respondem sempre as grandes empresas, como se o mercado fosse uma coisa abstracta, como se elas próprias não influenciassem o mercado. Se há um desfasamento entre a oferta e a procura, então resolva-se esse desfasamento. Não é possível impor preços administrativos, mas pode-se introduzir mecanismos que ajudem a corrigir os preços. E é sempre possível ser-se mais justo e generoso e, com o exemplo, influenciar o mercado.
O mercado tem as costas largas, mas não foi o mercado que, por exemplo, levou o IVDP, há uns anos, a diminuir a quantidade de “benefício” por hectare (autorização para produzir vinho do Porto) às vinhas com as letras mais baixas. A medida, tomada em nome da qualidade e sem qualquer contrapartida para os atingidos, beneficiou sobretudo os proprietários das quintas maiores, situadas junto ao rio, e acelerou ainda mais a desertificação e a pobreza das aldeias dos altos, que foram sempre as principais fornecedoras de mão-de-obra da região.
Foi o “rato” do Porto. O mesmo “rato” que colocou Manuel Cabral como presidente do IVDP e que, através dele, foi revertendo a regionalização deste instituto, centralizando-o de novo no Porto. É admissível que não haja uma feirinha, um Wine Day, uma coisinha chique tipo sunset party no Douro, o local onde se produz o vinho, e se continue a investir fortunas apenas no Porto? (Ah, este ano fizeram uma regata!) Os turistas estão no Porto e, se os turistas comprarem vinho, quem ganha, são os durienses, contra-argumenta o directório do Porto-Gaia. É um patusco, este “rato”. Sempre a zombar.