Sem acção, isto é, atuado
É assim que o Estado, de facto, aplica o AO90. O resto é arena atirada para os nossos óculos.
"Se tutoyer, os franceses têm o vous / E eu tenho-te a ti"
GNR
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
"Se tutoyer, os franceses têm o vous / E eu tenho-te a ti"
GNR
“Se queremos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude"
Tomasi di Lampedusa
1. Efectivamente, atuado. Há dias, folheava uma obra de Gonçalves Viana (Apostilas aos Dicionários Portugueses, de 1906) e encontrei este atuado, originalmente indicado por Leite de Vasconcelos, no final de um artigo sobre dialectos alentejanos, publicado na Revista Lusitana (vol. II, p. 43, 1890-2). Aquilo que a um incauto poderia parecer uma pouco verosímil adopção muito avant la lettre das propostas do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) ou, hipótese mais plausível, uma gralha na redacção de actuado, afinal mais não era do que o significante de “sem acção” na “linguagem popular de Serpa”. Aliás, Leite de Vasconcelos explica com o exemplo “as sanguessugas ficaram atuadas” que as sanguessugas “não tiraram sangue” (acrescentando que atuado terá raiz attenuatum < attenuare < tenuis). Felizmente, naquele tempo, Gonçalves Viana e Leite de Vasconcelos deram o mote para o rigor teórico imperar na feitura de ortografias, portanto, seria pouco provável que um artigo científico de um deles tivesse atuado em vez de actuado.
De facto, tendo em conta o “portuguez lingua escripta” (denominação cunhada em 1881 por Francisco Adolfo Coelho) do tempo de Gonçalves Viana e Leite de Vasconcelos, nunca lhes ocorreria ao lerem uma forma atuado que esta pudesse ser um actuado despojado do seu cê. Todavia, isso acontecerá a um leitor de português na actualidade, afectado pela imposição do AO90 e levado a fazer uma interpretação errada de uma palavra portuguesa, neste caso, de uso dialectal.
Convém recordar que actuar e actuado justificam a consoante cê, por pertencerem ao grupo de “palavras de derivação ou afinidade evidente” (Gonçalves Viana, Ortografia Nacional, 1904), mantendo-se a consoante quando há “derivação manifesta de outro vocábulo” (Gonçalves Viana e Vasconcelos de Abreu, Bases da ortografia portuguesa, 1885) em que a consoante “influi na pronúncia da vogal precedente” (Gonçalves Viana, ON, 1904). Acrescente-se uma perspectiva curiosa. Com o AO90, temos a mesma palavra gráfica atuado a significar uma coisa e o seu contrário: por um lado, atuado “sem acção”, por outro, *atuado de actuar “exercer acção”.
Além destes dois atuado, convém lembrar um terceiro: o particípio passado de atuar significa na norma padrão “tratado por tu”. Também aqui a supressão do cê de actuado nada ilumina, antes pelo contrário. Este é um aspecto prático importante, embora menos popular entre os detractores do AO90, comparado com as críticas à perda das indicações diacríticas, cujo valor se verifica em pares mínimos (coacção/coação; facção/Fação; corrector/corretor; espectador/espetador; pára/para), ou às confusões morfológicas (por exemplo, aspecto passa a *aspeto, mas aspectual pode manter o cê e pode perdê-lo).
Gonçalves Viana, Leite de Vasconcelos e Adolfo Coelho fizeram parte da comissão responsável pela ortografia de 1911, cuja modernidade é patente pela ausência até hoje de corrente científica a propor a transformação do alfabeto latino num alfabeto fonético — o programa de 1945 de Rebelo Gonçalves constituiu uma continuação de 1911 e não uma ruptura. Há uns anos, o professor Jorge Morais Barbosa (1937-2015) indicava, num fórum selecto de opositores ao AO90, uma entrevista do linguista Alain Bentolila, em que este criticava o conceito “simplificação ortográfica”, que não conduz a uma melhor compreensão da palavra escrita, sublinhando que correspondência entre letra e som já existe no alfabeto fonético internacional.
2. Referi há pouco que o aspecto passa a *aspeto, sim, mas convém recordar que isso só acontece fora do Brasil. Sabe-se que, devido a uma quimera sem qualquer tradução linguística, mencionada em inúmeros discursos políticos, chamada “unidade essencial da língua”, decidiram fazer, publicitar e aplicar o AO90. Ora, entre as várias formas ortográficas mudadas pelo AO90 na norma europeia, mas mantidas intactas no Brasil (cf. PÚBLICO, 15/03/2015), encontramos então aspecto transformado num aspeto afim de espeto e recepção feita receção semelhante a recessão. Isto é, um autor português que adopte o AO90 e envie um texto para publicação numa editora brasileira, também ela adoptante do AO90, verá o cê reposto no aspecto e o pê devolvido à recepção. Portanto, tanto trabalho em prol da “unidade essencial da língua” e, pior, tanto trabalho do nosso autor a tirar consoantes para nada. De facto, a parte da “unidade essencial da língua” no mundo de expressão portuguesa assegurada pelo aspecto e pela recepção perdeu-se, justamente, devido ao AO90. Aparentemente, tudo continua como está porque decidiram mudar tudo. Todavia, de facto, nada está como dantes: tudo está bem pior.
3. Há dias, pelo PÚBLICO, soubemos que uma estátua de Cristóvão Colombo fora retirada do Grand Park, em Los Angeles, nos EUA, “ao abrigo de uma moção aprovada em 2017 que substituiu o feriado do Dia de Colombo pelo Dia dos Povos Indígenas na cidade”. Curiosamente, Steve Hackel, professor de História na Universidade da Califórnia, Riverside, e apoiante e promotor desta moção, manifestou dúvidas sobre esta acção da vereação da cidade, por ter sido decidida “quase em segredo e sem debate”. Como vemos, não é só em Portugal que determinadas decisões são tomadas de forma pouco transparente e sem discussão.
António Costa disse recentemente que Portugal “fez a sua parte”, ao seguir os trâmites conducentes à adopção do AO90. Não é verdade. Aliás, só pode tecer uma afirmação dessas quem nunca leu os pareceres de 2005 da Associação Portuguesa de Linguística e do Departamento de Linguística Geral e Românica da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (cf. PÚBLICO, 18/5/2016). Os pareceres recomendavam que Portugal não ratificasse o Segundo Protocolo Modificativo. Sublinho que na frase anterior há um ‘não’ antes do ‘ratificasse’. Para que não haja dúvidas: Portugal não fez a sua parte. O poder político não fez aquilo que devia.
Sabendo-se que ao poder político não interessam nem estas linhas, nem os pareceres de Inês Duarte e de Ivo Castro, é no mínimo estranho que também ignore as palavras do linguista mais citado na Assembleia da República nos últimos 36 anos: João Malaca Casteleiro. Durante o ano passado, Malaca Casteleiro declarou: “até admito que se venha a colocar o acento em para”. É importante que o poder político preste atenção a estas sábias palavras, para evitar infelicidades na literatura (“Ninguém pára para o socorrer”, José Saramago) e ambiguidades na imprensa (“Bloqueio nos fundos da União Europeia pára projecto na área do regadio”). Convinha que as ideias ortográficas de Malaca Casteleiro também tivessem consequências quando, além de correctas, são manifestamente inconvenientes para o poder político.
Dias depois de António Costa ter dito que Portugal fizera a sua parte, o ministro das Finanças entregou ao presidente da Assembleia da República a proposta de Orçamento do Estado (OE) para 2019. Sucessivos governos têm tentado adoptar o AO90 nos OE desde 2012. Para se ter uma ideia da estabilidade desta adopção, no relatório do OE 2012 tínhamos “caráter acomodatício” e “carácter universal e extraordinário”; no relatório do OE 2019 encontramos “caráter pontual ou extraordinário” e “carácter pornográfico ou obsceno”; em 2012, havia “despesa efectiva” e “despesa efetiva”; para 2019, há “medidas para tornar efetiva” e “despesa efectiva”. É assim que o Estado, de facto, aplica o AO90. O resto é arena atirada para os nossos óculos (cf. PÚBLICO, 14/6/2017).