Salazar e os direitos humanos
A Declaração Universal dos Direitos Humanos terá soado ao ditador português como uma coisa de um anarquista bêbado.
Ontem, um advogado perguntou-me num cocktail “como é que descreveria Salazar a um estrangeiro com apenas uma frase”. Tive a sorte de, na véspera, ter aprendido uma coisa nova e evitei repetir aquilo que todos sabemos.
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Ontem, um advogado perguntou-me num cocktail “como é que descreveria Salazar a um estrangeiro com apenas uma frase”. Tive a sorte de, na véspera, ter aprendido uma coisa nova e evitei repetir aquilo que todos sabemos.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em Dezembro de 1948, mas Portugal só a adoptou em Março de 1978. Por causa da ditadura de Salazar, chegámos ao texto com 30 anos de atraso.
Chegámos tarde a muitas coisas — até à própria ONU. As razões são mais do que conhecidas. Mas se hoje é difícil imaginar o mundo sem um instrumento universal que liste e defina os direitos humanos, lembrar que Portugal teve um regime com tamanha pequenez é uma pedagogia útil. Se a ausência de uma Declaração Universal dos Direitos Humanos retrata o mundo anterior à II Guerra Mundial, os 26 anos de inacção da ditadura portuguesa em relação ao texto — hoje considerado um dos maiores feitos da própria ONU — são a prova crua da incapacidade do Estado Novo em acompanhar a evolução do mundo.
Quando muitos dos actuais avós portugueses nasceram, não existia um texto universal que se dirigisse a todos os humanos da Terra. Havia cartas históricas de direitos humanos, mas eram todas de carácter nacional: a Magna Carta (1215), a Carta dos Direitos Britânicos (1689), a Declaração de Independência Americana (1776) e a Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789). Os cidadãos de três países ocidentais e ricos tinham regras e balizas. Todos os outros inspiravam-se à distância.
Nos primeiros anos, António de Oliveira Salazar, presidente do Conselho, tinha uma boa razão para não adoptar a declaração. Portugal não era membro das Nações Unidas e o pedido de adesão era chumbado pela URSS ano após ano. Portugal só foi aceite como Estado-membro da ONU em 1955. Mas teve a seguir 19 anos para o fazer. Ficar de fora foi dizer que Lisboa não aceitava a “autoridade moral” do texto, nem o via como um “ideal comum”.
Agora que estamos a dias de celebrar os 70 anos da adopção da declaração, fui relê-la com os óculos de Salazar. Era simplesmente impossível assiná-la. Cada uma das 30 alíneas é uma facada directa no coração do ditador. Alguns exemplos: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais” (menos os colonizados e as mulheres da “metrópole”); “todo o indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal” (menos os presos políticos); “ninguém será mantido em servidão” (à excepção dos povos das colónias); “ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes” (menos os inimigos e os comunistas); “ninguém pode ser arbitrariamente preso, detido ou exilado”; “o homem e a mulher têm o direito de casar sem restrição alguma de nacionalidade” (o que fazer às hospedeiras e aos diplomatas, que não podiam casar com estrangeiras?); “toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento”; “à liberdade de opinião e de expressão”; “à liberdade de reunião”; ao “acesso, em condições de igualdade, às funções públicas do seu país”. É maçador continuar. A Declaração Universal dos Direitos Humanos terá soado a coisa de um anarquista bêbado.
Sim, a declaração não é vinculativa e é uma utopia. Mas que seríamos nós sem querer mais? Escreve a jurista Patrícia Galvão Teles, membro da Comissão de Direito Internacional da ONU, que “o grande feito da declaração foi ter alterado o terreno moral das relações internacionais, que passou a orientar-se e a medir-se pelo valor do respeito dos direitos humanos” (Portugal e os Direitos Humanos nas Nações Unidas, organização de Ana Helena Marques, Carmen Silvestre e Margarida Lages, Instituto Diplomático, 2017). “Colocou o indivíduo como parte integrante de um mundo de Estados soberanos, que não podem mais utilizar a capa da soberania como um escudo na forma como os próprios cidadãos são tratados dentro de fronteiras.”
E, por tudo isto, a resposta no cocktail (que aprendi numa conferência do ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva) teve pelo menos o efeito de surpresa: “Salazar numa frase? Foi o ditador que não adoptou a Declaração Universal dos Direitos Humanos.”