Os Maias: a “vasta máquina” onde Eça despejou o saco todo
A exposição ‘Tudo o que tenho no saco’ – Eça e Os Maias, comissariada por Isabel Pires de Lima, abre esta sexta-feira na Gulbenkian. Organizada a pretexto dos 130 anos da publicação do romance, procura mostrá-lo como uma suma do heterodoxo realismo queirosiano.
Em 1881, sete longos anos antes de Os Maias verem finalmente a luz do dia, Eça de Queirós (1845-1900) escrevia de Bristol ao seu amigo Ramalho Ortigão, explicando-lhe que tinha o livro “praticamente pronto” e avisando: “Decidi logo fazer não só um romance, mas um romance em que pusesse tudo o que tenho no saco”. Enquanto título da exposição que esta sexta-feira abre ao público na Gulbenkian – Tudo o que tenho no saco’ – Eça e Os Maias, comissariada por Isabel Pires de Lima –, a expressão adquire um duplo sentido: se o escritor utilizou Os Maias para deitar cá para fora tudo o que pensava da sociedade portuguesa da época, o romance também lhe serviu para exprimir as diversas facetas que o seu realismo foi adquirindo.
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Em 1881, sete longos anos antes de Os Maias verem finalmente a luz do dia, Eça de Queirós (1845-1900) escrevia de Bristol ao seu amigo Ramalho Ortigão, explicando-lhe que tinha o livro “praticamente pronto” e avisando: “Decidi logo fazer não só um romance, mas um romance em que pusesse tudo o que tenho no saco”. Enquanto título da exposição que esta sexta-feira abre ao público na Gulbenkian – Tudo o que tenho no saco’ – Eça e Os Maias, comissariada por Isabel Pires de Lima –, a expressão adquire um duplo sentido: se o escritor utilizou Os Maias para deitar cá para fora tudo o que pensava da sociedade portuguesa da época, o romance também lhe serviu para exprimir as diversas facetas que o seu realismo foi adquirindo.
“É muito curto dizer que Eça foi um realista”, observa a ensaísta. “A ideia é que a exposição vá mostrando a diversidade de práticas realistas que ele vai concebendo, e como ultrapassa o impasse do realismo ortodoxo, e ao mesmo tempo dar a ver como a opção realista conviveu com uma dimensão de esteta, de artiste, que Eça sempre adoptou."
Organizada com a Fundação Eça de Queiroz, que emprestou um conjunto de móveis e outros objectos (como o famoso monóculo do romancista) conservados na quinta de Tormes, vários deles nunca antes mostrados fora da casa que serviu de cenário ao romance A Cidade e as Serras, esta é, assume Isabel Pires de Lima, “uma exposição para o grande público”, com uma forte componente visual – filme, vídeo, fotografia, ilustração, pintura (incluindo duas telas da série que Paula Rego criou a partir de O Crime do Padre Amaro) – e alguma dimensão didáctica, a pensar nas visitas escolares. Mas se a comissária, ex-ministra da Cultura e reconhecida especialista na obra de Eça de Queirós, prescindiu de uma componente documental mais pesada, a exposição permite dois níveis de leitura: o visitante pode ficar-se pelos objectos expostos e pelos materiais afixados nas paredes (ou pendurados do tecto, como as personagens de Eça caricaturadas por Abel Manta), mas ao longo de todo o percurso vai encontrando também pequenas mesas onde se oferecem textos do escritor relativos aos temas tratados em cada núcleo. E “oferecem” tem aqui um sentido literal: se algum desses excertos lhe agradar particularmente, ou lhe despertar a curiosidade, pode simplesmente tirar um exemplar e levá-lo para casa.
Promovida a pretexto dos 130 anos decorridos sobre a primeira edição d’Os Maias, em 1888, e possivelmente aproveitando a recente polémica provocada pela notícia de que o romance poderia deixar de ser leitura obrigatória no secundário, a exposição abarca na verdade toda a obra literária de Eça, incluindo o conto, a crónica ou a epistolografia, mas está sempre a regressar a Os Maias, confirmando a ideia de que poucos tópicos relevantes haverá na criação queirosiana que não estejam de algum modo reflectidos na sua obra-prima.
Quando entra na exposição, o visitante tem à sua frente um extenso corredor: do lado direito sucedem-se os sete núcleos em que a mostra se divide, ocupando como que uma fiada de aposentos que dão para um mesmo corredor, em cuja parede encontra uma detalhada biobibliografia queirosiana, acompanhada de imagens alusivas a cada ano, desde o nascimento do escritor, em 1845, até quase ao presente, com notícia de publicações queirosianas importantes, como a edição crítica d’Os Maias lançada na Imprensa Nacional em 2017, com edição de Carlos Reis e Maria do Rosário Cunha.
A título de apêndice, Isabel Pires de Lima acrescentou a esta cronologia – enriquecida por uma banda sonora concebida por Rui Vieira Nery a partir de referências musicais de Eça – uma lista de obras de autores posteriores que reficcionalizaram a ficção do autor d’Os Maias e que constituem, sugere, “uma espécie de posteridade queirosiana”. Apresentadas não através das suas capas originais, mas como se todas elas integrassem uma colecção imaginária, com um desenho gráfico próprio, estas obras incluem o Soneto de José Matias que José Régio publicou no final dos anos 20 em Biografia, mas concentram-se sobretudo na literatura posterior ao 25 de Abril, com títulos como O Regresso do Conde Abranhos (1976), de Artur Portela Filho, As Batalhas do Caia (1995), de Mário Cláudio, Nação Crioula (1997), de José Eduardo Agualusa, Madame (1999), de Maria Velho da Costa, Do Conserto do Mundo, incluído nos Contos Vagabundos (2000) de Mário de Carvalho, ou A Visão de Túndalo por Eça de Queirós (2000), de Miguel Real, e terminam com as Treze Cartas e Três Bilhetes de Rachel Cohen, uma saborosa ficção de Mário Cláudio, inserta como separata numa recém-lançada edição de luxo de Os Maias (Modo de Ler, 2018), e que se apresenta como uma troca epistolográfica real entre várias personagens do romance, ele próprio assumido, a bem do argumento, como relato de um enredo verídico.
Um romance mal recebido
Ao primeiro núcleo chamou Pires de Lima A vasta máquina, desta vez citando uma carta a Oliveira Martins, de 1884, na qual Eça descreve Os Maias como uma “vaste machine com proporções enfadonhamente monumentais de pintura a fresco”. A peça central é uma peculiar escrivaninha de banco alto em que o romancista escrevia, e em cujo tampo foi colocado o manuscrito original da já citada carta a Ramalho que deu titulo à exposição. Edições marcantes de Os Maias – Episódios da Vida Romântica, incluindo a primeira, publicada em 1888 no Porto, em dois volumes, pela Livraria Internacional de Ernesto Chardron, e a que a Livraria Lello, sucessora da Chardron, lançou em 1946 para comemorar o centenário do nascimento de Eça, que se celebrara no ano anterior, são algumas das peças desta primeira sala, onde se pode ainda ver uma escolha de algumas das muitas edições estrangeiras do romance ou ver projectado o trailer do filme que João Botelho realizou em 2014 a partir do livro. Nas paredes, várias referências à modesta recepção que Os Maias tiveram na época: os seus cinco mil exemplares não se venderam facilmente e o livro nunca foi reeditado em vida do autor, “ao contrário de O Primo Basílio?, que teve uma segunda edição logo no ano em que saiu [1878]”,. lembra Isabel Pires de Lima.
E a obra foi bastante fustigada pelos críticos, a começar por Fialho de Almeida, a quem Eça responde numa longa carta privada, na qual lamenta que, segundo ele, Fialho não ataque o livro pelas suas debilidades literárias mas por apoucar Portugal e os portugueses. “Você distingue os homens de Lisboa uns dos outros? Você nos rapazes do Chiado, acha outras diferenças que não sejam o nome e o feitio do nariz? Em Portugal há só um homem – que é sempre o mesmo ou sob a forma de dandy, ou de padre, ou de amanuense, ou de capitão: é um homem indeciso, débil, sentimental, bondoso, palrador, deixa-te ir; sem mola de carácter ou de inteligência, que resista contra as circunstâncias (…)”. Eça espanta-se ainda que o seu interlocutor duvide “da exactidão de certos detalhes, traços de sociedade, como as senhoras falando de criadas ou apostando dez tostõezinhos nas corridas”, e interpela-o: “Oh homem de Deus, onde habita você? Em Lisboa ou Pequim? Tudo isso é visto, notado em flagrante, e por mim mesmo aturado sur place!”
Com o título Aprendizagens, o núcleo seguinte explora os anos de formação: a vida universitária em Coimbra, as estadias em Lisboa, o encontro com Antero, a direcção do jornal Distrito de Évora, inaugurando uma ligação à imprensa que irá manter ao longo da vida, e ainda a visita ao Oriente. Pires de Lima considera que esta viagem, que Eça fez aos 20 e poucos anos com o seu futuro cunhado, Luís de Castro, conde de Resende, para assistir à inauguração do Canal do Suez, em 1869, não só se reflectirá em obras como A Relíquia ou O Mandarim como foi decisiva “para abrir os horizontes” do jovem escritor. Daí que lhe tenha reservado um lugar à parte na exposição, delimitado por véus com imagens alusivas ao Oriente, que escondem uma das mais valiosas peças agora expostas na Gulbenkian: a famosa cabaia chinesa oferecida a Eça pelo Conde Arnoso, Bernardo Pinheiro Correia de Melo. “Oh Bernardo, onde tenho eu as qualidades precisas para me poder encafuar com coerência dentro daquelas sedas literárias? (…) Onde tenho eu sobretudo a pança para encher aquelas pregas amplas e mandarinais?”, pergunta o escritor ao amigo.
Guerra ao Romantismo, a etapa seguinte, mostra como a formação de Eça se processa a partir de uma concepção ainda ligada “a um certo romantismo social e fantástico”, diz Pires de Lima, e como “a afirmação do seu realismo se faz sempre em contraponto ao romantismo”. Um núcleo onde se dá o justo realce à personagem do Alencar, o vate romântico d’Os Maias, no qual Pinheiro Chagas viu retratado Bulhão Pato, para azar deste último, que levou por tabela com a mordaz réplica de Eça, que, em carta aberta, negou a identificação e, argumentando que “nada agora pode justificar a permanência do sr. Bulhão Pato no interior do sr. Tomás de Alencar, causando-lhe manifesto desconforto e empanturramento”, rogou ao poeta “o obséquio extremo de se retirar” de dentro do seu personagem.
Uma das peças em destaque é a grande caricatura de Bordallo Pinheiro às Conferências do Casino, onde se vê Eça a moer o idealismo com o pilão do realismo, ou um retrato de grupo onde o romancista, Antero e outros organizadores aparecem com rolhas na boca, numa alusão à suspensão forçada das conferências.
A força do desejo
Mas é nos núcleos seguintes – Norma e Desejo e Olhares Cruzados – que se tornam mais claras algumas das questões centrais que Isabel Pires de Lima quis levantar com esta exposição. O primeiro mostra que se Eça – sem propriamente trair o que se espera de um romance realista, com propósitos de moralização social –, “escapa a um certo moralismo”, é em boa medida, defende a ensaísta, "porque os seus romances exibem o desejo como uma força que subverte a normatividade social, um instrumento de desregramento e desregulação do mundo”. Os Maias são um exemplo óbvio dessa operação, mas a exposição chama também à colação O Crime do Padre Amaro ou Alves & Companhia. A que se podia somar, por exemplo, O Primo Basílio, onde Eça, lembra Pires de Lima, descreve com ousadia “a fascinação da Dona Felicidade, senhora retirada no Convento da Encarnação, pelo conselheiro Acácio, e em particular pela sua careca”. Careca pela qual a dita senhora, diz Eça, chegava a sentir-se “penetrada”. Para a contemplação dos quadros de Paula Rego foi criado um pequeno reduto intimista neste núcleo, onde se podem ainda ver imagens do filme que o mexicano Carlos Carrera fez a partir de O Crime do Padre Amaro.
A sala dos Olhares Cruzados distingue-se visualmente das restantes porque a exposição abandona as paredes e concentra-se num conjunto de estruturas colocadas numa disposição labiríntica e que funciona como uma espécie de sala de espelhos onde se reflectem as múltiplas estratégias – “ironia, caricatura, sonho, grotesco” – de que Eça se servia para, na expressão da comissária, “deturpar a lente objectiva” exigida pela norma realista e levar para os seus romances uma multiplicidade de perspectivas do real. A exposição destaca três aspectos dessa inovadora transgressão queirosiana da cartilha realista mais estrita: a ironia, o excesso e a prática do romance histórico, género que o credo realista repudiava.
A Arte É Tudo, sexto núcleo, remete para o já referido esteticismo queirosiano, mostrado através da obra, mas também de algumas dimensões biográficas do autor, como o seu dandismo: numa das peças expostas, José Rodrigues imagina um encontro parisiense entre Eça e Oscar Wilde. Um dispositivo que permite aos alunos das escolas fotografarem-se vestidos de dândi é uma das peças deste núcleo, a par de provas d’Os Maias que mostram como o autor emendava e voltava a emendar o que escrevia. Mas “este perfeccionismo articula-se em Eça com a procura constante de soluções técnicas inovadoras, num caminho que aponta claramente para a modernidade estética”, sugere a comissária, apontando como “testemunho óbvio” a Correspondência de Fradique Mendes.
A dimensão mais patrimonial comparece em força na última sala, Lugares, onde estão expostos diversos móveis vindos de Tormes, alguns originalmente oriundos de Paris, como um belíssimo arquivador, mas outros que pertenceram à casa, como a chamada “cadeira do Jacinto” ou uma algo carcomida mesa que corresponderá mesmo àquela onde terá sido comido o arroz de favas imortalizado em A Cidade e as Serras. Mas este núcleo evoca também os muitos lugares por onde Eça andou, designadamente no âmbito da sua carreira diplomática: de Lisboa ao Egipto, de Havana a Nova Iorque. “Foi um homem do mundo, que viajou muito e pôs as suas personagens a viajar muito”, diz Pires de Lima. “O Fradique Mendes, então, é um verdadeiro globe trotter”.
Aberta até 18 de Fevereiro de 2019, a semana inaugural da exposição conta ainda com uma programação paralela, que incluirá a exibição de vários filmes inspirados na obra de Eça de Queirós, mesas-redondas, leituras de textos, um espectáculo musical e um ciclo de jantares queirosianos confeccionados pelo chef Miguel Castro Silva.