Fisco fica a saber quem ocultou dinheiro e foi perdoado
Dados sobre as amnistias fiscais a que aderiram Ricardo Salgado ou Zeinal Bava vão ser enviados à autoridade tributária. Entre advogados há quem conteste.
A Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) vai ficar a saber quais foram os contribuintes portugueses que aderiram às três amnistias fiscais aprovadas pelos Governos de José Sócrates e Pedro Passos Coelho, informação que hoje não conhece.
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A Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) vai ficar a saber quais foram os contribuintes portugueses que aderiram às três amnistias fiscais aprovadas pelos Governos de José Sócrates e Pedro Passos Coelho, informação que hoje não conhece.
O fisco ganha margem para justificar diligências durante novas investigações tributárias aos cidadãos que, ao aderirem a estes regimes, ficaram a salvo de infracções tributárias por terem ocultado dinheiro ao fisco no estrangeiro e puderam regularizar os valores pagando um IRS mais baixo. Mas não poderá ir tão longe quanto o Bloco de Esquerda queria ir.
A iniciativa partiu do BE e foi aprovada na especialidade com os votos a favor do PS e PCP. A proposta recebeu a abstenção do PSD e o voto contra do CDS. A medida vai obrigar o Banco de Portugal a enviar ao fisco todas as fichas de regularização tributária entregues ao supervisor bancário dos contribuintes que em 2005, 2010 ou 2012 aderiram aos famosos Regimes Excepcionais de Regularização Tributária (RERT).
Hoje, por causa de megaprocessos de investigação que passaram pelo Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) sabe-se o nome de algumas pessoas que aderiram aos RERT, entre eles o ex-presidente do BES Ricardo Salgado ou o ex-líder da PT Zeinal Bava. O Ministério Público só conseguiu as fichas com autorização de um juiz. Mas essa é uma informação que o próprio fisco desconhece de antemão, porque actualmente só o Banco de Portugal (e os bancos comerciais dos amnistiados) é que têm acesso às declarações.
O BE apresentou esta medida porque actualmente, se o fisco for investigar algum desses contribuintes, pode ficar de pés e mãos atadas. Porquê? Não consegue saber se o valor que está a reclamar já foi pago ou se está em causa um novo montante oculto. Se o contribuinte for confrontado pelos inspectores tributários pode dizer que já regularizou o valor que o fisco pensa ter sido ocultado, mas o próprio fisco, não conhecendo as declarações de regularização, não consegue dizer com toda a certeza se esse montante corresponde à operação investigada ou se está em causa um novo valor. Foi o que aconteceu com muitos dos cidadãos descobertos no caso Swissleaks, que ficaram blindados pelos RERT.
A iniciativa é bem recebida pelos representantes dos funcionários da máquina fiscal – tanto pelo presidente do Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos como pelo presidente da Associação dos Profissionais da Inspecção Tributária e Aduaneira – mas não é consensual entre fiscalistas e há quem a considere inconstitucional por violar o princípio da confiança. Isto porque as leis dos RERT previam a declaração de regularização “não pode ser, por qualquer modo, utilizada como indício ou elemento relevante para efeitos de qualquer procedimento tributário, criminal ou contra-ordenacional, devendo os bancos intervenientes manter sigilo sobre a informação prestada”.
O posicionamento de cada um dos partidos em relação a cada norma concreta da proposta do BE foi determinante para saber o que pode agora o fisco fazer com essas declarações.
A proposta do BE salvaguarda que as declarações não podem ser utilizadas contra os contribuintes amnistiados como prova dos factos, mas permite que a informação possa ser usada “para fundamentar diligências” durante as investigações judiciais. E este ponto da lei conseguiu luz verde com os votos a favor do BE, PS e PCP, com o voto contra do PSD e a abstenção do CDS.
Outro ponto aprovado permite que o fisco, se estiver a investigar um contribuinte e este invocar que aderiu ao RERT e já regularizou a dívida que o fisco está a reclamar, notifique a pessoa para o obrigar a colaborar dentro de 90 dias. A pessoa terá de indicar quais foram os factos tributários omitidos (os que estão sob investigação), quais foram as operações que permitiram obter o rendimento e a data e local dos factos. Esta parte foi aprovada com votos a favor do PS, BE e PCP, e a oposição do PSD e do CDS.
Foi chumbada uma alínea deste ponto da lei que previa obrigar estes contribuintes a indicarem também quem é que prestou aconselhamento ou consultoria nas operações investigadas – em relação a esta iniciativa só o BE e o PCP votaram a favor, em contraponto ao PS, PSD e CDS, que votaram contra.
Dúvidas de constitucionalidade
Pelo caminho ficou também o ponto que previa que os esclarecimentos pedidos pelo fisco a quem aderiu a um RERT sobre “sobre o teor das declarações de regularização tributária e sobre os factos tributários que lhes deram origem, incluindo esclarecimentos sobre as operações subjacentes à obtenção do rendimento, à sua ocultação e à sua não tributação anterior ao RERT”, passassem a estar abrangidos pelo dever de colaboração.
Entre os fiscalistas que receberam mal a notícia está um dos secretários de Estado dos Assuntos Fiscais do Governo de António Guterres, o advogado Rogério Fernandes Ferreira, cujo escritório de advogados tem informação publicada sobre o âmbito da aplicação dos RERT.
Numa nota ao PÚBLICO, o advogado considera que a proposta do BE, “além de violar o direito à protecção de dados dos contribuintes, viola, despudoradamente, o princípio da confiança e da segurança jurídicas, enquanto pilares do Estado de direito”. Isto porque, considera, a lei previa que a declaração de regularização tributária não poderia “ser utilizada como indício ou elemento relevante para efeitos de qualquer procedimento tributário, criminal ou contra-ordenacional, devendo os bancos intervenientes manter sigilo sobre a informação prestada”. O legislador, afirma, “não pode, agora, violar limites constitucionalmente impostos a essa mesma transmissão de dados e, em especial, o princípio da confiança, atenta a necessidade do consentimento e que esse consentimento seja dado para uma finalidade específica, não podendo ser utilizado para qualquer outra”.
“Interessante” mas “limitada”
Se o PS acabou por votar ao lado do BE para dar mais margem de manobra ao fisco, nunca Mário Centeno a comentou. Só no debate desta quarta-feira no Plenário é que o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais da sua equipa, António Mendonça Mendes, se pronunciou. Considerou a proposta “interessante”, mas refreou os ânimos em relação ao que o fisco conseguirá fazer com a nova informação. “É muito limitada do ponto de vista de descobrir esquemas do passado para ver para o futuro”, disse.
Em resposta à deputada do BE Mariana Mortágua, o governante frisou que a proposta não é “tão linear” quanto Mortágua a colocara nem “tão linear como muitas vezes a questão é colocada na praça pública”. Mendonça Mendes sublinhou o facto de os dois primeiros RERT (aprovados pelos Governos de Sócrates) exigirem a repatriação de capitais e o conhecimento do esquema subjacente, o que não aconteceu no último RERT (lançado pelo Governo de Passos). E acrescentou: “[Também] não é totalmente verdade aquilo que muitas vezes é dito na opinião pública, como se fosse uma verdade absoluta, que há uma obrigação de destruição de documentos [as declarações de regularização], porque essa obrigação não decorre da lei – o que decorre da lei é a obrigação de os documentos estarem no Banco de Portugal durante dez anos”.
O governante concede o argumento de que a proposta coloca uma questão sobre o princípio da confiança no Estado. “As coisas não são preto e branco. São complexas”. “É preciso agirmos com as cautelas necessárias para que, garantindo que todos os direitos consagrados na lei, também não se tenha expectativas demasiado elevadas sobre aquilo que efectivamente pode ser conseguido com esta iniciativa”, disse.
Antes, durante duas semanas, Mendonça Mendes nunca respondera à pergunta do PÚBLICO sobre se concorda com o facto de o fisco passar a conhecer todas as declarações de regularização tributária, sem afectar “a extinção das obrigações tributárias e a exclusão da responsabilidade por infracções tributárias que resulte da aplicação dos RERT”. Favorável ao objectivo da medida é o seu antecessor, o actual deputado do PS Fernando Rocha Andrade.
Notícia corrigida às 19h38: O PÚBLICO escreveu na primeira versão desta notícia que o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais não comentara até hoje, quarta-feira, a iniciativa do BE, o que se revelou incorrecto porque António Mendonça Mendes falou da medida durante o debate do plenário nesta manhã. Foi a primeira vez que o secretário de Estado se pronunciou sobre a iniciativa, apresentada a 2 de Novembro. Há duas semanas, quando Mário Centeno foi interpelado no Parlamento sobre a medida, nem o ministro das Finanças nem o secretário de Estado responderam às perguntas da deputada do BE Mariana Mortágua.