A sobrevivência artística de Abrunhosa

Espiritual deixa pressentir o quanto o músico investe cada vez mais numa marca autoral, cortando no seu protagonismo. O que demonstra a sua sábia sobrevivência artística.

Foto
arlindo camacho

Não parece haver grande evidência científica que certifique a tendência natural numa voz masculina para baixar de tom com a idade, passando a soar mais grave. Há, na verdade, indícios de que, a existir uma alteração de tom mais comum entre os homens, tratar-se-á daquela que correlaciona a acumulação dos anos com um timbre mais agudo. Mas não é regra, e basta pensarmos em nomes como Tom Waits, Leonard Cohen ou Johnny Cash (quaisquer que sejam ou tenham sido os seus hábitos nas categorias de líquidos e fumos ingeríveis) para acolher com simpatia qualquer argumentação que aponte no sentido de as vozes – pelo menos algumas, pelo menos aquelas que mais nos interessam – poderem cobrir-se de grão, gravilha e aspereza à medida que a juventude se vai tornando um ponto mais distante no retrovisor.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Não parece haver grande evidência científica que certifique a tendência natural numa voz masculina para baixar de tom com a idade, passando a soar mais grave. Há, na verdade, indícios de que, a existir uma alteração de tom mais comum entre os homens, tratar-se-á daquela que correlaciona a acumulação dos anos com um timbre mais agudo. Mas não é regra, e basta pensarmos em nomes como Tom Waits, Leonard Cohen ou Johnny Cash (quaisquer que sejam ou tenham sido os seus hábitos nas categorias de líquidos e fumos ingeríveis) para acolher com simpatia qualquer argumentação que aponte no sentido de as vozes – pelo menos algumas, pelo menos aquelas que mais nos interessam – poderem cobrir-se de grão, gravilha e aspereza à medida que a juventude se vai tornando um ponto mais distante no retrovisor.

Pensa-se nisto quando se ouve os primeiros versos de Vamos levantar voo, tema de abertura do sétimo álbum de estúdio de Pedro Abrunhosa, intitulado Espiritual. Não só porque é evidente a rugosidade extra que lhe vai na voz, mas também porque, desde que em 2007 inflectiu a sua música no sentido de uma sonoridade de clara filiação pop-rock norte-americana, a sombra de figuras como Tom Waits, Leonard Cohen, Bruce Springsteen, Tom Petty e Elvis Costello (sim, é inglês, e então?) vem ocupando um espaço cada vez maior. Ao desmembrar os Bandemónio e pôr de pé o Comité Caviar que agora o acompanha, Abrunhosa prescindia dos sopros – e do funk, da soul e do acid-jazz – que nortearam a sonoridade dos seus primeiros tempos, trocando-os pelo peso das guitarras e da bateria – e do rock, nas suas variações mais derivativas de blues ou folk.

Espiritual é o seguimento lógico de Longe (2007) e de Contramão (2013). É a confirmação de que Abrunhosa percebeu o quanto a inevitável renovação da sua linguagem musical o aproximava de uma escrita de canções mais clássica e que, desta vez, reforça esse pensamento autoral ao fazer-se acompanhar por muitas outras vozes. Não é novidade que o sucesso e a sobrevivência artística de Pedro Abrunhosa sempre dependeram de um inteligente e cirúrgico recurso a uma voz de recursos limitados; em Espiritual, essa consciência expande-se no interior do próprio disco, como reconhecimento de que a fixação num mesmo território estético corria o risco de tornar-se pantanoso se não se rodeasse de figuras que, paradoxalmente, o levassem a sair de si mesmo.

E essa noção de que a sua qualidade de escrita só tem a beneficiar quando se entrega a outras vozes é por demais evidente quando escutamos temas como Se tens de partir não me contes e Não vás embora hoje, em que Abrunhosa arranca de Lucinda Williams e Elisa Rodrigues duas soberbas interpretações – das melhores que ouvimos a qualquer uma delas até hoje. Williams, uma das mais espantosas cantoras deste dias, de um fervor country-folk que caiu em desuso, oferece um canto devastador, de dor em queda livre, voz da fatalidade de um abandono amoroso que há-de chegar, num tema que tresanda ao universo de Cohen (o canadiano, de resto, ciranda boa parte de Espiritual); da portuguesa, o músico consegue a mais certeira confirmação de que, com a devida orientação, estará aqui uma das mais notáveis vozes deste país, numa canção intoxicada por um ambiente de nouvelle chanson, como se inventada por Benjamin Biolay.

São os dois exemplos mais flagrantes dos benefícios trazidos por outras vozes à música de Abrunhosa, num disco em que se rodeia ainda de Ana Moura, Lila Downs, Carla Bruni e Ney Matogrosso (chamado para um tema que segue de perto a cadência de People ain’t no good, de Nick Cave), num disco sintonizado nas dores do mundo – os muros mais ou menos literais que guilhotinam laços de amor, a crise dos refugiados quando “caem anjos na praia porque há lobos no mar”, a tentativa de quebrar com o ciclo da violência doméstica –, mas também nas mazelas amorsas da mais pequena escala e no vocabulário da sedução.

Álbum em que Abrunhosa aparece também a navegar em águas que conhecemos a Jorge Palma e abrilhantado pela pedal steel de Greg Leisz (com créditos espalhados por álbuns de Emmylou Harris, Grant Lee Buffalo, Haim, Whiskeytown, Springsteen ou Grant Lee Buffalo), Espiritual deixa pressentir o quanto o músico investe cada vez mais numa marca autoral, cortando no seu protagonismo (bem defendido, ainda assim, em Vamos levantar voo ou Leva-me para um sítio melhor). O que demonstra, uma vez mais, a sua sábia sobrevivência artística.