Genética sugere que nós e os neandertais nos reproduzimos várias vezes
Temos um pouco de neandertal no nosso ADN. Terá resultado de um único encontro da nossa espécie com os neandertais? Não, dois cientistas dos EUA defendem que esse encontro ocorreu muitas vezes.
Ainda falta saber muito sobre a relação da nossa espécie – Homo sapiens – com os neandertais, outro grupo de humanos. Ou melhor: ainda há muitos mistérios sobre as relações que os humanos modernos tiveram com os neandertais. Afinal, num estudo publicado na última edição da revista científica Nature Ecology & Evolution, dois cientistas dos Estados Unidos defendem que os neandertais e os humanos anatomicamente modernos se cruzaram – ou seja, reproduziram-se – várias vezes ao longo de dez mil anos.
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Ainda falta saber muito sobre a relação da nossa espécie – Homo sapiens – com os neandertais, outro grupo de humanos. Ou melhor: ainda há muitos mistérios sobre as relações que os humanos modernos tiveram com os neandertais. Afinal, num estudo publicado na última edição da revista científica Nature Ecology & Evolution, dois cientistas dos Estados Unidos defendem que os neandertais e os humanos anatomicamente modernos se cruzaram – ou seja, reproduziram-se – várias vezes ao longo de dez mil anos.
Se hoje os humanos modernos estão praticamente em todo o planeta, há menos de 100 mil anos estavam confinados a África. Nessa altura, já os neandertais e os denisovanos (outros humanos) habitavam o Oeste e o Leste da Eurásia, respectivamente. “Quando grupos de humanos anatomicamente modernos começaram a espalhar-se para fora de África, todas essas populações se encontraram”, escreve Fabrizio Mafessoni – do Instituto Max Planck, na Alemanha, e que não fez parte do trabalho – num comentário também publicado na Nature Ecology & Evolution sobre este estudo.
As marcas desses encontros estão registadas no nosso ADN. Em 2010, depois de uma sequenciação com grande qualidade do genoma de uma mulher neandertal, revelou-se que os humanos modernos (de origem não africana) tinham entre 1% e 4% de ADN neandertal. Mais tarde, em 2017, publicou-se a sequenciação de um segundo genoma de outra mulher neandertal e essas percentagens foram actualizadas. Se antes desse estudo se tinha concluído que as populações não africanas actuais da nossa espécie tinham no genoma entre 1,5% e 2,1% de ADN neandertal, passou a saber-se que temos mais ADN neandertal do que pensávamos: será entre 1,8% e 2,6%.
“A descodificação do genoma neandertal confirmou o quão semelhante era ao da nossa espécie a nível molecular e revelou que a maioria dos actuais humanos de descendência não africana carrega pequenos fragmentos do genoma de neandertal”, referem Joshua Schraiber e Fernando Villanea, ambos da Universidade de Temple e autores do estudo agora publicado numa explicação no site da Nature. “A questão que nos vem imediatamente à cabeça é: ‘Com que frequência se cruzou a nossa espécie com os neandertais?’”
Pensava-se que tudo isto resultasse de um único episódio de cruzamento entre neandertais e a nossa espécie. Esse episódio teria acontecido algures no Médio Oriente logo quando os primeiros humanos modernos deixaram África. “Esta hipótese era sustentada pelo facto de todos os humanos não africanos terem a mesma quantidade de ancestralidade neandertal (aproximadamente 2%), tal como seria de esperar se o cruzamento ocorresse com um antepassado de todos os não africanos”, explicam os autores.
Contudo, havia uma peça que não se encaixava nessa hipótese. Numa análise genómica verificou-se que as populações de humanos modernos do Leste asiático carregam no seu genoma entre 12% e 20% mais ADN neandertal do que as populações europeias. Ou seja, abriu-se assim a hipótese de que a nossa espécie se tenha cruzado do ponto de vista reprodutivo mais do que uma vez com os neandertais.
Como tal, Joshua Schraiber e Fernando Villanea decidiram estudar a forma como os fragmentos de ADN neandertal diferem nos genomas de indivíduos actuais do Leste asiático e da Europa. Para isso, através de um modelo matemático e computacional, analisaram a distribuição desses fragmentos nos genomas de pessoas dessas duas populações. Desta forma, construíram modelos teóricos sobre a quantidade de “encontros” entre neandertais e humanos modernos.
Duradouros ou discretos?
“Encontrámos uma forte sustentação de que o cruzamento dos humanos modernos com os neandertais aconteceu múltiplas vezes, primeiro e principalmente no Médio Oriente, mas também no Leste asiático e na Europa mais tarde”, explica ao PÚBLICO Fernando Villanea. “O segundo cruzamento genético no Leste asiático foi um pouco mais extenso, resultando numa contribuição elevada para os genomas dos indivíduos do Leste asiático.”
Quando é que tudo aconteceu? “A grande contribuição genómica dos neandertais para os humanos modernos pode ser traçada há entre 50 mil e 60 mil anos. Mas uma pequena porção de fragmentos de neandertais nos genomas humanos tem uma origem mais recente”, responde Fernando Villanea. Contudo, o cientista refere que não é claro se o cruzamento entre os dois grupos de humanos foi contínuo ao longo do tempo ou se foi limitado a pequenas (e discretas) ocasiões.
“Ambas as espécies estiveram em contacto aproximadamente durante dez mil anos, mas antes pensávamos que só se tinham cruzado uma vez”, destaca Fernando Villanea. “Sabemos agora que mais tarde houve pequenas ocasiões em que se cruzaram. Ainda não sabemos muito bem por que é que o contacto mais tardio entre as duas espécies resultou apenas num pequeno contributo na sua ancestralidade”, interroga-se o cientista. E adianta que há questões a responder como: esses encontros mais tardios foram raros devido ao declínio dos neandertais (extinguiram-se há cerca de 28 mil anos)? Ou ambas as espécies estavam menos predispostas para o cruzamento?
Sobre se esses encontros foram violentos ou consentidos, Joshua Schraiber responde ao jornal espanhol ABC: “Não há forma de saber isso através dos dados genéticos. Isso é uma questão para os arqueólogos!”
“Os autores exploraram estas questões quantitativamente [a interacção entre neandertais e a nossa espécie], mostrando que um modelo com múltiplos encontros entre os primeiros humanos modernos e os neandertais é robusto”, considera Fabrizio Mafessoni no seu comentário. O cientista – que foi um dos autores de um estudo publicado este ano sobre uma menina que viveu há 50 mil anos e que teria uma mãe neandertal e pai denisovano – ilustra assim o cruzamento entre grupos humanos: “O cenário de múltiplos episódios de cruzamento entre neandertais e humanos modernos encaixa na visão emergente de que houve interacções complexas e frequentes entre diferentes grupos de hominíneos.”
Para Fabrizio Mafessoni, será preciso sequenciar mais genomas antigos para se desvendar outras informações sobre esses encontros. Quanto a Joshua Schraiber e Fernando Villanea, já têm um projecto a caminho: querem compreender como os neandertais e os denisovanos – por exemplo – se cruzaram com espécies como o Homo erectus. Que histórias estarão para ser reveladas?